NFT é uma sigla para non-fungible tokens, ou “tokens não fungíveis”, em tradução livre. Esses itens se popularizam cada vez mais: já há relatos do uso da ferramenta no setor imobiliário, na indústria musical, do entretenimento e, especialmente, da arte. Obras de arte relevantes foram recentemente negociadas nesse formato, movimentando grandes cifras e atraindo a atenção de investidores, curadores e apreciadores. Em março de 2021, a Christie’s, uma das maiores casas de leilão do mundo, vendeu uma arte em NFT por mais de US$ 69 milhões [1].
Token é termo que pode ser entendido como a representação de um bem no ambiente virtual, de forma que esse bem pode ser mantido em meio exclusivamente digital, como pode ser a representação de um bem físico, existente no mundo concreto. Esses dispositivos são armazenados virtualmente através da tecnologia de blockchain.
Blockchain, ou “cadeia de blocos” em tradução livre, é termo que remete a uma sequência de informações que, ligadas entre si, armazenam dados online, de forma imutável e protegida por meio de criptografia. Na definição mais acurada de João Pedro Freire, blockchain é “uma tecnologia distribuída e descentralizada de registro eletrônico de dados. É distribuída, ou seja, os utilizadores da blockchain têm uma cópia atualizada da informação nela armazenada e é descentralizada, porque nenhuma entidade controla a blockchain, sendo antes os utilizadores que, em conjunto, controlam a informação que entra nesta” [2].
Já o termo “fungível”, esse de mais fácil definição, remete a itens que são passíveis de serem substituídos por outras coisas da mesma espécie, qualidade e quantidade [3]. Nessa toada, o item “não-fungível” é aquele insubstituível, único, especial. “Noite estrelada”, de Van Gogh, é um item não-fungível: embora possa ser copiado pelo trabalho de um imitador, a réplica jamais substituirá o quadro original em relevância ou valor.
Unindo todos esses conceitos, tem-se que o NFT é uma espécie de certificado digital insubstituível que garante ao seu proprietário a autenticidade de um arquivo exclusivo. Essa propriedade é armazenada de forma automática na rede blockchain, que, por meio de criptografia, garante a imutabilidade das informações ali cunhadas, garantindo maior segurança aos usuários da rede. Esses últimos podem confirmar a autenticidade das informações simplesmente consultando o que for necessário dentro desse sistema, sendo prescindível a figura de uma entidade centralizadora, posto que a atualização das informações é feita pelos próprios usurários.
Assim, o NFT é utilizado para indicar aos usuários daquele sistema que o indivíduo “X” é proprietário de um certificado “Y”, que aponta para um ativo digital, que pode representar tanto um bem físico, como um bem inteiramente digital. É possível inclusive que esse certificado esteja atrelado ao recebimento de um ativo específico, garantindo sua propriedade.
Um mercado que tem se utilizado dos NFTs é o da arte. Diversas obras de arte foram recentemente comercializadas nesse formato. No caso da comercialização de obras de arte em NFT, questiona-se se o token asseguraria a propriedade do item, posto que o bem físico ao qual ele faz referência não está inserido na blockchain. Sobre esse ponto, Daniel de Paiva Gomes e Eduardo de Paiva Gomes concluem acertadamente que o NFT faz referência ao bem e aos direitos a ele relativos. Os autores traçam um paralelo com a questão da compra e venda de um imóvel, afirmando que “obviamente, nenhum jurisdicionado firma um contrato de compra e venda de um bem imóvel porque deseja adquirir uma escritura. O que se adquire é aquilo que a escritura representa. A linguagem, portanto, molda a realidade. A escritura viabiliza a aquisição de um conjunto de direitos referentes ao bem imóvel” [4].
Diante de todo esse cenário, é mister entender se os NFTs são ativos que se inserem na classe dos criptoativos. Isso porque, na declaração do Imposto de Renda da Pessoa Física 2022 (ano-calendário 2021) a Receita Federal indicou que esses bens devem ser declarados na categoria “Bens e Direitos”, dentro do grupo “08 — Criptoativos” e do código “10 — Criptoativos conhecidos como NFTs (Non-Fungible Tokens)”.
Na definição de Dayana Uhdre “o termo ‘criptoativos’ refere-se a um espectro muito mais lato de realidades que seu precedente — ou representante inicial e mais popular — ‘criptomoedas’. Destarte, o termo ‘criptoativos’ é tomado como gênero, referindo-se de forma ampla a todo e qualquer ativo digital criptografado e assente em tecnologia distribuída de registro de dados (DLT)” [5].
Em complemento, a Receita Federal do Brasil, através de Instrução Normativa [6], divulgou o seu conceito de criptoativo, determinando que:
“Instrução Normativa nº 1.888/2019. Artigo 5º. Para fins do disposto nesta Instrução Normativa, considera-se: I – criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal.”
Ora, o NFT de uma obra de arte não possui valor denominado em sua própria unidade de conta. De fato, ele pode ser expresso em moeda, como no caso dos US$ 69 milhões pagos na obra leiloada pela Christie’s; entretanto, não há unidade de medida própria para aquele ativo, já que uma obra de arte específica não pode ser utilizada como referência na aferição de valores de outros bens — como ocorre com as criptomoedas, por exemplo.
Parece um contrassenso que as autoridades fiscais tenham emitido uma orientação (declaração de obras de arte em NFT na categoria de “criptoativos”) que não se amolda ao próprio conceito de criptoativo eleito por ela. O encaixe dos NFTs com o disposto nas orientações normativas exaradas pela Receita Federal é ponto fulcral na tributação desse ativo.
Seguindo a orientação do órgão fiscal, na hipótese da obra de arte em NFT ser adquirida com a utilização de outro criptoativo (como o bitcoin), entende-se haver uma permuta entre esses dois ativos. Permuta, porque bitcoins (ou outra criptomoeda) não são verdadeiramente moedas fiduciárias, de modo que a operação realizada nesses termos representa simplesmente a troca de um ativo por outro.
Nesse cenário, e seguindo a orientação da Receita Federal, o contribuinte-adquirente deverá apurar o seu Imposto de Renda devido, comparando o valor da sua criptomoeda na data da permuta, com o valor do mesmo ativo na data da sua aquisição. Se o valor na data da permuta for superior ao custo da aquisição daquele ativo, haverá a incidência do Imposto de Renda na modalidade de ganho de capital.
Da mesma maneira, o contribuinte-alienante deverá apurar o tributo devido confrontando o valor do NFT na data da permuta, com o custo da aquisição da obra de arte em NFT, de tal maneira que se aquele valor superar este último haverá a incidência de IRPF na modalidade ganho de capital. Se o contribuinte-alienante for o próprio artista, o custo de aquisição será zero, aplicando-se a alíquota pertinente sobre todo o valor da criptomoeda recebida na operação.
Contudo, na permuta de bens e direitos, como os ativos financeiros ora tratados, não há renda realizada. O critério material da regra-matriz de incidência tributária do IRPF está intrinsicamente conectado ao princípio da realização da renda, exigindo que a renda esteja economicamente disponível para que a tributação possa se efetivar.
A visão da Receita prima pela prevalência da essência econômica sobre a forma jurídica, como determina a Contabilidade. No Brasil, especialmente após o movimento de convergência aos padrões internacionais de contabilidade, as normas contábeis estabelecem que, em contratos que objetivem a permuta, deve-se contabilizar uma receita, mensurada pelo dito “valor justo” do ativo recebido na troca. Esse critério contábil prescinde da necessidade de realização da renda, o que não pode ser transportado ao mundo jurídico, tendo em vista o disposto no artigo 43, CTN, sobre a necessidade de disponibilidade da renda.
A avaliação a valor justo consiste em simplesmente indicar a estimativa do que o sujeito receberia se, naquela data, transacionasse aquele bem pelo valor de mercado. Trata-se de mera presunção, estimativa, o que não se conecta com o princípio da realização da renda e com a noção de disponibilidade — que, insista-se, é essencial para a incidência do IRPF.
Nesse contexto, na permuta de um bitcoin por uma obra de arte em NFT, não há renda disponível para qualquer uma das partes. Diferentemente do que determina a Receita Federal, entende-se no presente ensaio que essa operação não enseja a incidência do IRPF, nem mesmo na modalidade de ganho de capital, já que, na permuta, há apenas a troca de ativos. O contribuinte-adquirente entregou os seus bitcoins em troca de outro ativo, mas em momento algum experimentou qualquer acréscimo patrimonial.
Outro cenário seria na hipótese em que, ainda que o NFT seja considerado criptoativo, a aquisição seja efetuada através de moeda fiduciária (dinheiro).
Nesse caso, seguindo os parâmetros determinados pela Receita Federal, não haveria a incidência de IRPF na modalidade ganho de capital para o adquirente. Ele apenas entrega moeda ao contribuinte-alienante, recebendo em troca a obra de arte em NFT almejada. Já para este segundo, haverá a incidência de IRPF na modalidade ganho de capital, entendendo que o NFT é um ativo financeiro (criptoativo).
Outro cenário surge se o contribuinte concluir que os NFTs não são criptoativos, por não se amoldarem ao conceito eleito pela própria Receita, já que esses itens não possuem unidade de conta própria.
No caso do contribuinte-adquirente que utiliza das criptomoedas, as conclusões seriam as mesmas. Ou seja, para a Receita Federal haveria a incidência de IRPF na modalidade ganho de capital, devendo o contribuinte avaliar o valor do bem adquirido na data da permuta, subtrair essa quantia do valor da criptomoeda na aquisição e, caso o resultado seja positivo, aplicar a alíquota pertinente, conforme a tabela prevista em lei. Na perspectiva do presente trabalho, não há renda realizada, mas mera permuta sem torna, na qual os dois ativos possuem, a princípio, valores equivalentes. Sem renda disponível, não há incidência de IRPF.
Já para o alienante, há o recebimento de um ativo financeiro em troca da transmissão da obra de arte em NFT. Para o Fisco, a operação seria tratada como troca de ativos, incidindo o IRPF na modalidade ganho de capital. Na perspectiva do presente trabalho, o alienante recebe um ativo financeiro incapaz de ensejar acréscimo patrimonial disponível. Essa disponibilidade só se daria em uma futura alienação do ativo, oportunidade em que a renda estaria efetivamente realizada, atraindo a incidência do tributo.
Por fim, no caso de a aquisição ser feita com a utilização de moeda fiduciária, novamente não há o que tributar para o adquirente, independentemente de se analisar a operação com base na perspectiva do presente ensaio ou com base nas orientações da Receita Federal. O que existe para o adquirente é mero dispêndio financeiro, incapaz de gerar acréscimo patrimonial ou qualquer outra materialidade tributável pelo IRPF.
Entretanto, para o contribuinte-alienante, esse ativo deverá ser avaliado de acordo com os direitos que transmite. No caso de uma obra de arte em NFT, foco do presente ensaio, o artista estaria alienando nessa operação o fruto de seu trabalho. Entende-se que haveria a incidência do IRPF nesse ponto, mas não na modalidade ganho de capital, e sim a incidência do tributo na renda ordinária do indivíduo (fruto do seu trabalho, como define o artigo 43, CTN).
Todo o universo que circunda os NFTs ainda é pouco explorado pelo direito. O crescente desenvolvimento desse mercado nos próximos anos deve atrair maior atenção dos juristas e dos intérpretes, de modo a favorecer o desenvolvimento dos debates sobre a tributação desse setor no país. Somente com uma investigação pormenorizada do tema é que será possível tratar o assunto com a maturidade necessária.
Fonte: Conjur
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