Recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, sobre o acesso à informação quanto ao sexo de embriões criopreservados, descortinou questões jurídicas relevantes [1].
A negativa proferida pela clínica de fertilização, quanto ao acesso à informação, por previsão proibitiva em regulamento deontológico, culminou na judicialização da demanda, tendo, em sua argumentação jurídica central, a violação do direito à informação (a partir da ideia de que os dados embrionários simbolizavam dados sensíveis) e à autodeterminação informativa, evocando-se, por essência, a previsão contida na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
O relator do processo considerou improcedente a argumentação, afastando a incidência da LGPD, que tem como propósito preservar os direitos de liberdade e privacidade, mas não visa garantir indiscriminadamente o acesso a qualquer dado, que pode ser motivado por uma diversidade complexa de interesses.
Pois bem. Sabe-se que a ação tramita em segredo de justiça, o que impede o conhecimento sobre a totalidade dos argumentos construídos pelo relator. A situação reclama análise epistemológica mais aprofundada, já que, no país, há dispositivos legais outros e decisão do Supremo Tribunal Federal com implicações diretamente relacionadas ao pleito.
O ponto inicial de compreensão perpassa pela aferição da natureza ou condição jurídica do embrião humano em estado extracorpóreo (ou clinicamente criopreservado). O Supremo Tribunal Federal, no histórico julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510, por maioria, reconheceu a inexistência de um direito à vida do embrião extracorpóreo, não imputando a ele a condição de pessoa e nem a condição de feto. A posição firmada foi de que juridicamente deve-se pensar a vida a partir de um fenômeno gradativo e dinâmico, portanto, sujeito a valorações normativas distintas, à medida em que se constate a evolução dos estados de embrião, feto e pessoa [2].
A posição do STF, associada às proibições contidas em legislações ordinárias quanto à manipulação e venda de embriões humanos, aponta para a real natureza jurídica embrionária: o embrião extracorpóreo tem status jurídico próprio, sua existência não deve ser equipara à condição de pessoa, nem explicada pela atribuição da natureza de coisa, revelando-se ente despersonalizado que assume a condição de categoria jurídica própria [3].
A condição ou natureza jurídica própria desse embrião evidencia que não é ele uma espécie de extensão corporal dos seus genitores, mas, sim, ente que goza de relativa proteção legal, justamente, pela relação com outros bens jurídicos já constitucionalmente protegidos. A proibição de acesso à informação quanto ao sexo embrionário é uma das formas de proteção aos valores constitucionais, como a diversidade, a não discriminação e a igualdade, assegurados quando preservada a naturalidade de manifestação do patrimônio genético humano.
Os pontos anteriormente elucidados são muito importantes para que possamos, enfim, chegar às conclusões sobre a correção da decisão no que toca à discussão sobre ser aplicável no caso a proteção de dados pessoais sensíveis.
Dado pessoal, como se sabe, é definido na LGPD como sendo qualquer “informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável”. Por outro lado, não traz a lei em seu texto conceito sobre o que seriam dados pessoais sensíveis. Preferiu, em seu artigo 5°, II, enumerar certos dados os qualificando como sensíveis [4].
O entendimento sobre o que seriam dados pessoais sensíveis, no campo doutrinário, é vinculado à ideia de proteger dados que têm maior potencial discriminatório [5] e lesivo ao seu titular, seja por sua natureza, seja por determinado contexto.
Em que pese haver na LGPD um rol elencando dados sensíveis, a interpretação da doutrina nacional tem sido no sentido de que se trata de rol exemplificativo [6]. Essa interpretação, inclusive, é a que melhor se alinha com o princípio da não discriminação, previsto no artigo 6°, XI, já que qualquer dado com maior potencial discriminatório deve ser categorizado como dado sensível.
No caso sob análise, entretanto, essas digressões sobre ser o rol enunciativo nem se colocam como essenciais, já que o dado em questão seria um dado genético, textualmente previsto no artigo 5°, II.
O foco da discussão, portanto, não se dá na questão de se dados genéticos são dados sensíveis, mas sim em se os dados relativos ao embrião extracorpóreo devem ser tratados como uma extensão da personalidade dos sujeitos que requereram a fertilização, ou mesmo se poderiam os dados ser tratados como propriedade desses. A resposta é negativa para ambas as questões.
O embrião extracorpóreo, como explicado acima, é um ente diferenciado dos sujeitos que requereram a fertilização, não possuindo tampouco o status de coisa. Portanto, correto o magistrado ao não conferir a tutela requerida, já que os fundamentos que poderiam justificar decisão nesse sentido se mostram equivocados.
Apesar de a resposta para esse caso ser razoavelmente simples, dela podem derivar outras questões para o futuro. Considerando o status do embrião extracorpóreo, enquanto ente despersonalizado, capaz de titularizar direitos, seria possível se pensar numa tutela de seus dados pessoais? É que, como já destacado, nos termos da LGPD, os dados pessoais são categoria de direitos fundamentais vinculados legalmente a uma única categoria de ente: a pessoa natural.
Caberia, então, por alguma espécie de analogia, a proteção dos dados pessoais desses entes? E, caso se responda de modo afirmativo, quem seria o sujeito apto a agir como seu representante? Os médicos? O Estado? Os interessados na fertilização?
Como se vê, diversas são as questões que se podem derivar a partir da resposta aqui oferecida, o que mostra que ainda há muito o que se refletir e explorar sobre o tema.
[1] JOTA. Bioética. Casal não tem direito de saber sexo do embrião após fertilização in vitro, diz TJ-SP. São Paulo, 02 de janeiro de 2023.
[2] MEIRELLES, Ana Thereza. A proteção ao ser humano no direito brasileiro: embrião, nascituro e pessoa e a condição de sujeito de direito. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2016.
[3] BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do Fato Jurídico. Planos da Existência, Validade e Eficácia. São Paulo: Saraiva, 2019.
[4] Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se:
(…)
II – dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;
[5] TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Dados pessoais sensíveis: qualificação, tratamento e boas práticas. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 23.
[6] KONDER, Carlos Nelson. O tratamento de dados sensíveis à luz da Lei 13.709/2018. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato. Lei geral de proteção de dados pessoais e suas repercussões no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 451.
Fonte: ConJur
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