O testamento vital é diferente do testamento em que a pessoa dispõe sobre seus bens após a morte

 

Quem primeiro me falou sobre testamento vital foi Eliana Barros, arquiteta de 68 anos, moradora de São Paulo. Como é filha única, nunca teve filhos e os pais já morreram, seus parentes mais próximos são uma tia e dois primos. Numa conversa recente, ela me disse: “morro de medo de ficar vegetando, sem controle” sobre a própria vida. Eliana quer decidir como e quando vai morrer – e está deixando isso registrado em cartório nesse documento chamado de testamento vital. Isso significa, entre outras coisas, que ela não quer ser mantida viva de forma artificial, por aparelhos. Filha de militar, Eliana saiu de casa muito cedo, sempre foi independente e quer continuar assim até seus últimos dias.

 

O testamento vital é diferente do testamento em que a pessoa dispõe sobre seus bens após a morte. Segundo a advogada Luciana Dadalto, de Minas Gerais, especialista no assunto, “o testamento vital é um documento feito por uma pessoa com discernimento, civilmente capaz, com o objetivo de dispor acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos que deseja ou não ser submetida quando estiver com uma doença ameaçadora da vida, fora de possibilidades terapêuticas curativas e impossibilitado de manifestar livremente sua vontade”. Ela alerta que ainda não há lei sobre o assunto no Brasil. Por isso, recomenda o apoio de um advogado e também uma consulta ao médico de confiança.

 

Decidida a fazer o seu testamento vital, Eliana foi a um cartório. Lá, ela recebeu um rascunho de outro tipo de documento, a “Escritura pública de diretivas antecipadas de vontade e outras disposições”, mais completo, pois abrange dois documentos que podem ser feitos separadamente: o testamento vital propriamente dito e a procuração para cuidados de saúde (também conhecido com Mandato Duradouro). Lendo o rascunho, vê-se que ele inclui também cláusulas sobre a “administração de seu patrimônio na eventualidade de moléstia grave ou acidente que a impeça de expressar a sua vontade”. Eliana foi orientada a eliminar as cláusulas que não a interessavam, o que lhe tem tomado mais tempo do que ela esperava. “O que ainda me perturba é assinar o certificado de finitude; é como se batesse o martelo reconhecendo que sou finita”, disse ela.

 

Quando falamos, no começo deste ano, ela já estava há alguns meses às voltas com as sete páginas recebidas do cartório, analisando cláusulas como: “a declarante entende que a sua vida termina quando, face a um diagnóstico médico seguro, não terá mais a possibilidade de se manifestar. Viver estado de saúde com moléstia irreversível, sem a perspectiva de cura e com dor ou dependente de aparelhos ou no denominado ‘estado vegetativo’ significaria, para a declarante, a negação de sua vida, de sua dignidade, de sua honra, da imagem que deseja ter em vida e na posteridade”. Eliana também não havia decidido a quem daria “representação e poderes em face de médicos, clínicas, hospitais e necrotério”; em outras palavras, quem será a pessoa capaz de autorizar, se for o caso, uma eutanásia caso seja “permitida pelo ordenamento legal ou o seu transporte para país onde a legislação permita a eutanásia”, nas palavras do cartório.

 

Desde que a Eliana me falou sobre o seu testamento vital, sempre que posso faço referência a ele com as pessoas do meu círculo de amigos e parentes. Dessas conversas, tirei duas conclusões: ninguém conhece o documento e, quando explico do que se trata, todos acham que é um procedimento necessário. Como mostra o caso de Anita Harley, maior acionista das Pernambucanas, que ficou em coma aos 68 anos depois de sofrer um AVC, em 2016, sem filhos biológicos e que não deixou escrito quem deveria cuidar de sua saúde e do seu patrimônio, nunca é cedo para tomar essa decisão. Hoje, inconsciente, ela é alvo de uma disputa judicial que vale alguns bilhões de reais.

 

*Maria Tereza Gomes é jornalista, mestre em administração de empresas, CEO da Jabuticaba Conteúdo e mediadora do podcast “Mulheres de 50”

 

Fonte: Época Negócios

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