No dia 14 de fevereiro de 2023 foi publicada a Medida Provisória 1.162/2023 para reformular as regras do Programa Minha Casa, Minha Vida (anterior Programa Casa Verde e Amarela, instituído pela lei 14.118/2021) e alterar outras leis.
Algumas disposições que modificaram regras do Direito Civil e do Direito Notarial e Registral merecem uma análise mais aprofundada a fim de se extrair as consequências práticas da Medida proposta. Neste espaço, dedicar-se-á ao estudo do art. 10, §§ 2º e 3º, a saber:
Art. 10. Os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, preferencialmente, no nome da mulher e, na hipótese de ela ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos art. 1.647, art. 1.648 e art. 1.649 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.
- 1º O contrato firmado na forma prevista no caput será registrado no cartório de registro de imóveis competente, sem a exigência de dados relativos ao cônjuge ou ao companheiro e ao regime de bens.
- 2º Na hipótese de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado no âmbito do Programa na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável.
- 3º Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída.
- 4º O disposto neste artigo não se aplica aos contratos de financiamento firmados com recursos do FGTS.
Parte dessa redação já vinha prevista no art. 14 da lei 14.118/2021, sobre o Programa Casa Verde e Amarela[1].
A redação do §2º prevê que, quando o casal (casados ou em união estável) tiver adquirido o título de propriedade de imóvel no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida e dissolver a união ou o vínculo conjugal, o bem será registrado ou transferido para a mulher, independentemente do regime de bens estabelecido.
O §3º, por sua vez, aduz que, existindo filhos do casal e a guarda sendo atribuída ao homem, a propriedade, na verdade, será registrada em seu nome. Caso a guarda seja posteriormente atribuída à mulher, a propriedade se reverterá em seu favor.
Identifica-se, desde logo, uma série de problemas decorrentes do texto legal. Inicialmente, o estabelecimento de uma real desigualdade de gênero na busca de proteção à mulher.
Muito embora se reconheça a boa intenção do legislador em proteger a mulher que, muitas vezes, apenas cuida do lar sem ter condições financeiras para manter seu próprio sustento após o divórcio ou, ainda trabalhando, lhe é atribuída a guarda de filhos menores, criou-se uma nova forma de transmissão da propriedade, ou de sua aquisição, com base no gênero.
A igualdade de gênero está consagrada no art. 226, §5º da Constituição Federal, bem como no art. 1.511 do Código Civil, entre outros tantos dispositivos legais. A referida igualdade é substantiva e imputa isonomia de direitos e deveres. A propriedade está intimamente ligada à questão econômica e, no caso do programa em questão, tanto pode o homem quanto à mulher, ou mesmo ambos, ter custeado as parcelas do imóvel. A referida isonomia só implica desigualdade quando visa evitar um enriquecimento sem causa. Ademais, a lei não contemplou situações de casais homoafetivos ou de pessoas não binárias[2].
Na situação de um casal homoafetivo composto por duas mulheres sem filhos, por exemplo, não se saberia para qual das duas o imóvel seria transferido, criando-se uma discrepância entre elas. Caso elas permanecessem em condomínio equitativo, estariam também em desvantagem em comparação com a mulher do casal heteroafetivo que receberia a integralidade do bem, tudo a denotar que o gênero não pode ser forma de aquisição ou transmissão de propriedade.
O mesmo ocorre na situação de um casal composto por dois homens. Caso não tenham filhos, não seria possível determinar para qual deles seria transferida a propriedade, presumindo-se, portanto, o condomínio entre eles; nesse caso, eles são privilegiados em comparação com o homem do casal heteroafetivo, que perderia sua fração sobre o bem.
Ainda nesse cenário, se tivessem filhos, caso um deles tenha a integralidade da propriedade por ter a guarda dos menores, se posteriormente houver a reversão em favor do outro, teria ele direito à transferência do bem, na medida em que a lei prevê esse benefício expressamente para a mulher? Ademais, a guarda pode ser alterada inúmeras vezes, de forma que a propriedade seria transferida indefinidamente entre os ex-cônjuges ou companheiros.
Também não houve qualquer previsão acerca da pessoa não binária, que acaba ficando desprotegida em qualquer cenário, visto que o texto legal menciona tão somente o casal composto por homem e mulher.
Outro problema que se verifica é o descumprimento das regras do Código Civil sobre regime de bens, desconstituindo-se todas as seguranças estabelecidas.
O Legislador confunde a copropriedade, situação em que ambos são titulares de domínio, com a situação da vênia matrimonial, em que uma das partes é a proprietária e o outro apenas consente nas transmissões ou onerações feitas pelo único titular. Afastar a aplicação dos art. 1.647 a 1.649 nada tem a ver com a copropriedade (comunhão), tendo relação direta apenas com a propriedade exclusiva de um e a autorização de outro para alienação ou oneração.
Parece que o legislador pensou apenas nos regimes de comunhão, nos quais ocorreria a perda da fração de 50% por um dos cônjuges após a quebra do vínculo conjugal. Porém, não é nem um pouco razoável se vislumbrar a aplicação dessa regra para regimes de separação.
Na separação convencional, a intenção do casal é, claramente, que não haja qualquer comunicação de patrimônio, de forma que, desde o momento da aquisição do imóvel no âmbito do Programa é realizada em nome apenas de um deles ou em condomínio por ambos (e não comunhão). Com o divórcio, não é razoável que o patrimônio se transfira para um deles além das proporções anteriormente estabelecidas, visto que a intenção da formalização do pacto antenupcial de separação de bens é justamente impedir tal comunicação de patrimônio.
Na separação obrigatória, por outro lado, haveria, na verdade, uma quebra da proteção imposta por esse regime. A obrigatoriedade legal de separação visa proteger o patrimônio dos maiores de 70 anos, menores de 18 e daqueles com causas suspensivas da celebração do casamento (art. 1.641, CC); a previsão da possibilidade de transferência da integralidade do bem em favor do cônjuge que se encontra em uma dessas categorias desconstitui totalmente a tutela proposta pelo Código Civil, pouco importando o regime de bens para a aplicação da reversão de patrimônio.
É possível observar o problema na hipótese da comunhão universal ou parcial. Embora nesses regimes já exista o compartilhamento da propriedade desde o início da sociedade conjugal e uma expectativa de divisão de patrimônio com o divórcio, há também um desrespeito, não razoável, às regras da partilha, implicando em nítido enriquecimento sem causa.
Imagine-se, ainda, na comunhão parcial, a situação de sub-rogação de patrimônio anterior ao casamento de um dos cônjuges para a aquisição na vigência da união. Seria possível a prova da sub-rogação na aquisição em âmbito do Programa para garantir a propriedade? Nesse caso, violar-se-ia também a regra sobre a preservação do patrimônio anterior ao casamento.
Outra problemática é a confusão de institutos: a guarda, que se refere ao direito de família, com o direito real de propriedade.
A aquisição da propriedade imóvel entre particulares, nos termos do Código Civil, pode ocorrer exclusivamente por sucessão, comunhão universal, acessão, usucapião ou por registro do título (arts. 1.238 e ss). Neste último caso, necessitar-se-á de título translativo da propriedade, tais como escrituras de dação em pagamento, compra e venda, permuta, doação, instituição de compromisso de compra e venda ou alienação fiduciária em garantia, conferência de bens, etc[3].
Conforme a Medida Provisória, o título translativo é o gênero e, em caso de dissolução de união estável ou casamento, é o gênero e a guarda independente do título consignar transmissão diversa.
Para a aquisição da propriedade imóvel, nos termos do art. 1.245, é necessária a confecção de um título, de caráter obrigacional, que servirá como instrumento hábil para o registro no Registro de Imóveis[4]. Ainda, importante destacar que, para a transmissão da propriedade, o ato registral adequado a se praticar é o de registro stricto sensu, o qual tem o condão de constituir o direito real e materializar a transmissão da propriedade e a outorga de disponibilidade da coisa[5].
O ato de registro sctricto sensu somente pode ser praticado por previsão legal. A Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/1973) prevê no art. 167, I um rol taxativo de títulos passíveis de registro.
Assim, para que a definição de guarda constituísse um título hábil para registro de transmissão de propriedade, seria necessária a inclusão no rol da LRP da sentença que determinasse a guarda ou homologasse o acordo entre os genitores. Sem tal alteração, não é permitido aos registradores de imóveis a prática do ato, visto que eles estão adstritos ao princípio da legalidade.
No mais, é importantíssimo analisar a situação da guarda compartilhada. O texto legal da Media Provisória afirma que a propriedade somente será transferida ao homem quando a guarda for atribuída exclusivamente a ele, ou seja, de forma unilateral.
Nos termos do art. 1.583 do Código Civil, a guarda é estabelecida preferencialmente de forma compartilhada entre os genitores, podendo o casal, inclusive, estabelecer livremente o regime de visitas e convivência. É plenamente possível, por exemplo, que os menores residam uma semana com o pai e outra semana com a mãe, alternando constantemente. É possível, ainda, que os filhos residam de forma fixa com um deles e recebam visitas do outro.
Assim, ainda que os genitores tivessem estabelecido a guarda compartilhada dos menores e eles residissem mais tempo com o homem do que com a mulher, ou ainda residissem de forma fixa com ele, o genitor não receberia a propriedade do imóvel, pois a guarda não lhe foi atribuída de forma unilateral.
Se o objetivo do legislador era proteger a moradia do menor mantendo a titularidade do bem com quem ele residisse, o correto seria que a propriedade fosse transferida para o genitor que mais tempo remanescesse com o filho, visto ser a guarda um instituto jurídico com grande incidência fática.
Por fim, deve-se considerar os aspectos tributários decorrentes das divisões e transferências.
Sobre as transferências de bens imóveis entre vivos, incide o ITBI ou ITCMD (arts. 35 e ss. do CTN) a depender se o excedente das frações for transferido a título oneroso ou gratuito.
Assim, sempre que a propriedade se reverter em favor de um único cônjuge, perdendo o outro a sua fração ideal garantida conforme o regime de bens adotado, o adquirente seria obrigado a recolher o ITBI ou o ITCMD.
Numa leitura rápida do dispositivo sob comento, como o fato gerador de transmissão é o gênero ou a guarda, e de forma potestativa, parece não haver a incidência tributária, o que é de flagrante inconstitucionalidade.
Seguiremos, na próxima coluna, com nova análise sobre a Medida Provisória nº 1.162/2023.
Sejam felizes!
[1] Art. 14. Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado pelo Programa Casa Verde e Amarela na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuadas as operações de financiamento habitacional firmadas com recursos do FGTS. (Revogado pela Medida Provisória nº 1.162, de 2023)
Parágrafo único. Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída. (Revogado pela Medida Provisória nº 1.162, de 2023)
[2] O gênero não binário já é admitido no RCPN em diversos estados: em São Paulo, pela decisão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça, no Proc. nº 1001973-14.2021.8.26.0009; na Bahia, pelo Prov. Conjunto nº 8 CGJ/CCI /2022-GSEC; no Rio Grande do Sul, Provimento nº 16/2022 da CGJ.
[3] KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2020. vol. 5, t. 1, vol. 1. p. 1069 e ss.
[4] KÜMPEL, Vitor Frederico. Sistemas de Transmissão da Propriedade sob a Ótica do Registro. São Paulo: YK, 2020. p. 260.
[5] KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2020. vol. 5, t. 1, vol. 1. p. 155.
Vitor Frederico Kümpel: Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (1991), doutorado em Direito pela Universidade de São Paulo (2003) e é Livre-Docente em Direito Notarial e Registral pela Universidade de São Paulo (2020). Atualmente é juiz de direito titular II – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, professor da Faculdade de Direito Damásio de Jesus.
Natália Sóller: Advogada.
Fonte: Migalhas
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