Especialista em Direito de Família e Sucessões analisa as possibilidades de revogação da doação no Brasil à luz do caso emblemático

 

Uma recente decisão do Bundesgerichtshof (BGH), a mais alta corte civil da Alemanha, trouxe à tona a discussão sobre a revogação de doações por ingratidão do donatário. O caso em questão envolveu a doação de quatorze imóveis feita por uma mãe a seus três filhos, com reserva de usufruto vitalício para ela. Após conflitos e ações judiciais, a mãe decidiu revogar a doação, alegando ingratidão do filho donatário.

 

O filho, que havia registrado o cancelamento do usufruto contra a vontade da mãe, teve sua conduta questionada no processo. O Tribunal de primeira instância julgou a favor da mãe, condenando o filho a devolver a propriedade dos imóveis. No entanto, em grau de recurso, o Oberlandesgericht de Frankfurt reformou a decisão, alegando falta de fundamentação para a revogação da doação e que a conduta do donatário não configurava ingratidão.

 

O caso chegou, então, ao Bundesgerichtshof em Karlsruhe, onde a corte máxima decidiu que a declaração de revogação da doação não precisa de fundamentação, dando provimento ao recurso e reconhecendo a possibilidade de revogação por ingratidão.

 

Essa decisão tem gerado debates acerca do direito do doador de revogar doações por ingratidão no direito alemão. A questão central é se a revogação deve ser fundamentada ou se basta a vontade do doador para revogar a doação.

 

Essa discussão também traz reflexões sobre a legislação brasileira. No Brasil, a doação é, em regra, irrevogável, exceto nos casos de ingratidão do donatário ou inexecução de encargo. A ingratidão está relacionada a atos atentatórios à dignidade e integridade física do doador, mas há controvérsias quanto à abrangência dessas situações.

 

Diante disso, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR) conversou com a especialista em Direito de Família e Sucessões, Marina Monteiro, para entender as possibilidades de revogação da doação no Brasil à luz do caso emblemático.

 

Marina Monteiro explicou que a doação, de acordo com o artigo 538 do Código Civil brasileiro, refere-se à transferência de patrimônio ou vantagens de uma pessoa para outra por mera liberalidade e generosidade do doador. A ingratidão do donatário ocorre quando este pratica atos atentatórios à dignidade ou integridade física do doador após receber a doação. Nesse caso, o artigo 555 do Código Civil brasileiro prevê a possibilidade de revogação da doação. Confira a entrevista na íntegra:

 

Anoreg/BR: O que é ingratidão do donatário e como ela é tratada no Direito Brasileiro?

 

Marina Monteiro: A doação, de acordo com o artigo 538 do Código Civil, trata-se da transferência de patrimônio ou vantagens de uma pessoa a outra(s) por mera liberalidade, ou seja, de forma espontânea e com caráter de generosidade por parte do doador. Nesse caso, quando o donatário – aquele que recebe a doação – pratica algum ato atentatório à dignidade ou integridade física do doador após o recebimento da doação, surge a figura da ingratidão, abrindo-se, legalmente, a possibilidade de revogação da doação, nos termos do artigo 555 do Código Civil.

 

Anoreg/BR: Em quais situações a doação pode ser revogada no Brasil?

 

Marina Monteiro: No Brasil, a doação é em regra, irrevogável. Contudo, de acordo com o artigo 555 do Código Civil, a irrevogabilidade pode ser superada em razão da ingratidão do donatário ou da inexecução de encargo. Em relação à segunda hipótese, ela ocorre quando o doador estipula alguma condição para que o doador receba o patrimônio ou vantagem, como por exemplo, alguém doa um imóvel, mas sob a condição do recebedor cuidar de algum animal de estimação do lugar: em caso de inexecução desse encargo (cuidar do animal), a doação pode ser revogada. No caso de ingratidão, as condições estão relacionadas a atos atentatórios à dignidade e integridade física do doador, cujas hipóteses estão disciplinadas no artigo 557 do Código Civil, ocorrendo quando o donatário atentar contra a vida do doador ou cometer homicídio doloso contra ele; caso cometa contra o donatário ofensa física ou se o injuriou gravemente ou o caluniou e ainda, quando, tendo condições de fornecer-lhe alimentos – aqui compreendia pensão alimentícia -, deixou o donatário de prestá-los ao doador. É importante ressaltar que já foi objeto de discussão na doutrina se as hipóteses elencadas no artigo 557 do Código Civil seriam taxativas ou exemplificativas, ou, melhor dizendo, se haveria outras hipóteses não previstas nesse artigo que autorizariam a revogação da doação, como a ocorrência de difamação, por exemplo – algo que a lei não prevê, embora preveja nos casos de injúria e calúnia. O STJ – Superior Tribunal de Justiça já decidiu no sentido de reconhecer o rol como exemplificativo, mas o tema ainda não é pacífico na jurisprudência.

 

Anoreg/BR: Qual é o prazo para ajuizamento de ação de revogação de doação por ingratidão?

 

Marina Monteiro: A ação revocatória de doação pode ser proposta no prazo de um ano a contar do conhecimento por parte doador do ato de ingratidão praticado pelo donatário. No caso de homicídio doloso praticado pelo donatário contra o doador (art. 557, inciso I), esse prazo conta-se da ciência do fato por parte dos herdeiros da vítima.

 

Anoreg/BR: Como funciona o processo judicial de revogação de uma doação por ingratidão no Brasil?

 

Marina Monteiro: Ação revocatória de doação pode ser proposta somente pelo próprio doador, nos casos autorizados pela lei (artigo 557 do Código Civil) contra o donatário, exceto na hipótese prevista no Inciso I do artigo 557 do Código Civil, qual seja: quando o doador é vítima de homicídio doloso cometido pelo donatário. Nesse caso, os herdeiros da vítima detêm legitimidade para pleitear judicialmente a revogação da doação. De todo o modo, é muito importante que se faça prova do ato atentatório à dignidade ou à integridade física do doador, assim como, da autoria dos fatos por parte do donatário para que seja reconhecida a ingratidão, o que pode ser feito, a depender do caso concreto, por meio de testemunhas e/ou documentos.

 

Anoreg/BR: Há algum caso concreto que possa ser utilizado como exemplo para entender melhor a revogação da doação por ingratidão no Brasil?

 

Marina Monteiro: Sim, o STJ – Superior Tribunal de Justiça – no julgamento do Recurso Especial nº 1.593.857 – MG (2015/0230088-5) criou um importante precedente quanto à revogação da doação por ingratidão. Tratava-se de uma ação de revogação de doação de imóvel ajuizada por uma senhora contra o seu irmão e outros membros da família. A senhora, que há época do julgamento contava com 68 anos de idade, narrou ter efetuado a doação com reserva e usufruto vitalício, ou seja, quando a pessoa ao fazer a doação, reserva-se ao direito de continuar residindo no imóvel. Ocorre que, após a doação, seu irmão e os demais parentes passaram a dividir o imóvel com a doadora, colocando-a, contudo, em uma situação de maus tratos e humilhação. Conforme consta nos autos, a doadora passou a sofrer constantemente agressões verbais, como “sua velha imprestável”, “sai daqui que a casa não te pertence”, rasgaram o catálogo de telefone e mandaram-na comer, sempre utilizando-se de palavras de baixo calão; proibiram a prática de as religiosidades, o acesso a determinadas dependências do próprio lar, e restringiram a sua alimentação. Testemunhas e documentos oriundos do Ministério Público e do CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) corroboraram a versão da doadora. Em sua defesa, os donatários sustentaram, em síntese, que sempre dispensaram tratamento digno à doadora, teriam realizado benfeitorias no imóvel e que não mais residiam no local motivo pelo qual, não haveria mais que se falar em revogação por ingratidão. Contudo, por unanimidade a Terceira Turma do STJ votou por reconhecer a ingratidão dos donatários em relação à doadora, declarando a revogação da doação e firmando o entendimento de que as hipóteses previstas no artigo 557 do Código Civil são meramente exemplificativas, podendo ser existir outras, como era o caso dos autos, que autorizam a revogação da doação por ingratidão.

 

Anoreg/BR: Em sua opinião, qual seria a melhor forma de evitar a ingratidão do donatário e garantir a efetividade da doação?

 

Marina Monteiro: A melhor forma de prevenir a ingratidão do ponto de vista jurídico em relação a uma doação é, sem dúvida, aumentar a proteção em relação ao doador. Isso impende, sobretudo, em firmar-se a tese jurídica de que o artigo 557 do Código Civil apresenta um rol exemplificativo e não taxativo de hipóteses de ingratidão que autorizam a revogação, uma vez que há uma infinidade de atos atentatórios à moral, à dignidade e à vida do doador que não estão legalmente previstos.

 

Anoreg/BR: Como o advogado pode auxiliar o doador que se sente lesado pela ingratidão do donatário na revogação da doação?

 

Marina Monteiro: A primeira atitude a ser tomada pelo doador que sentiu lesado pelo donatário após a doação é procurar um advogado familiar. O profissional especializado saberá orientar o doador quanto aos seus direitos e as medidas judiciais – cabíveis ou não – no caso concreto a fim de revogar a doação.

 

Anoreg/BR: Quais são as principais diferenças entre a doação na legislação alemã e na legislação brasileira?

 

Marina Monteiro: Uma das principais diferenças entre o instituto a doação do direito brasileiro e alemão diz respeito às hipóteses que autorizam a sua revogação. Recentemente, a Corte Infraconstitucional alemã, Bundesgerichtshof (BGH), proferiu uma importante decisão permitindo a revogação de uma doação sem a necessidade de justificativa por parte da doadora, solucionando uma controvérsia antiga nos Tribunais alemães. Tratava-se do caso em que o filho, donatário de imóveis da mãe, tentou à revelia da vontade da genitora, registrar documento para fins de extinguir a reserva de usufruto da doadora. Esta, então, buscou a revogação da doação e, após uma longa discussão jurídica, a justiça alemã decidiu por revogar a doação do imóvel em relação ao filho, reconhecendo que o doador não necessita justificar a declaração de revogação da doação, bastando a sua vontade para tanto. Por outro lado, no Brasil, a revogação de doação só pode ser efetuada nas hipóteses de ingratidão ou inexecução de encargo, nos termos do artigo 555 do Código Civil, sendo necessária, portanto, a justificativa por parte do doador para que a doação seja revogada, não bastando sua mera declaração de vontade.

 

Fonte: Assessoria de Comunicação da Anoreg/BR

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