A CF/88, ao vedar expressamente que os imóveis públicos são insuscetíveis de usucapião, acabou por não recepcionar a legislação que outrora permitia tal modalidade de aquisição prescritiva em face do poder público, por incompatibilidade material com a nova ordem constitucional

 

A Constituição de 1967, no art. 164, previu a usucapião de terras públicas, sendo efetivamente implementada pela lei 6.383, de 7-12-76, cujos artigos 29 a 31 estabeleceram as condições para a legitimação de posse e preferência para aquisição. Contudo, a Constituição Federal de 1.988 andou em caminho oposto, prevendo expressa e taxativamente a imprescritibilidade dos imóveis públicos, no artigo 183 e reafirmado no art. 191, parágrafo único.

 

A CF/88, ao vedar expressamente que os imóveis públicos são insuscetíveis de usucapião, acabou por não recepcionar a legislação que outrora permitia tal modalidade de aquisição prescritiva em face do poder público, por incompatibilidade material com a nova ordem constitucional.

 

Em Portugal inexiste norma constitucional vedando a usucapião dos imóveis públicos, já o constituinte brasileiro positivou a imprescritibilidade de todos os imóveis públicos, sem qualquer nuance relativa se estes pertencem ao domínio público ou privado1.

 

O sistema jurídico lusitano diferencia o regime jurídico protetivo dos bens. Caso o imóvel esteja cumprindo efetivamente sua função social, integrará o Domínio Público, composto por normas que impedem a usucapião e o afastamento de outras normas privatistas. Contudo, caso esse mesmo imóvel esteja sem uso, ou seja, desafetado, integrará o Domínio Privado do Estado, factível de usucapião.

 

Com efeito, o artigo 19º do DL 280 prevê que “Os imóveis do domínio público não são susceptíveis de aquisição por usucapião.” O artigo 17º do DL 280 prevê que “Quando sejam desafectados das utilidades que justificam a sujeição ao regime da dominialidade, os imóveis deixam de integrar o domínio público, ingressando no domínio privado do Estado, das Regiões Autó-nomas ou das autarquias locais.”

 

Nesse sentido, mister trazer à baila doutrina de Leitão, indicando que a usucapião só pode abranger bens que sejam objeto de direitos privados, sejam eles bens móveis ou bens imóveis, mormente por força da Lei 54, de 16 de julho de 19132.

 

Por conseguinte, pode-se afirmar que os imóveis de Domínio Privado são suscetíveis de usucapião. Nesse sentido, a jurisprudência portuguesa reconhece tal possibilidade3:

 

Acórdão Supremo Tribunal de Justiça número 0740854

 

“I – A determinação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial e questão de direito – artigo 326, n. 1, do Codigo Civil – e como tal objecto idoneo do recurso de revista. II – A autoridade do caso julgado so pode, para alem da decisão proferida, estender-se a resolução das questões preliminares que sejam antecedente logico indispensavel a emissão da parte dispositiva do julgado. III – A concessão provisoria a Real Confraria da Rainha Santa Isabel (Coimbra) das casas denominadas Hospicio da Hospedaria e do Corredor e inconfundivel com uma concessão precaria ou livremente revogavel e antes representa uma doação onerosa. IV – Os bens do dominio privado do Estado podem ser adquiridos por usucapião desde que, para alem dos prazos normais decorra mais metade dos mesmos (Lei n. 54, de 16 de Julho de 1913)” .

 

Não há na legislação brasileira dispositivo semelhante que autorize a usucapião dos imóveis públicos, apesar de existir situações consolidadas na prática, de existência de usucapião em face de imóveis públicos, na visão de alguns autores.

 

A lei 601, de 1850, “Lei de Terras” (primeira), fixou a imprescritabilidade como forma protetiva da propriedade. O art. 67 do Código Civil de 1.916 já vedava a usucapião; o decreto-lei 710, de 17 de setembro de 1938, nesse sentido o decreto-lei 9.760/1946, o  Decreto nº 19.924/1931, e o decreto 22.785/1933. O Código Civil de 2002 reitera a vedação da usucapião dos bens públicos no art 102 “.

 

O Supremo Tribuna Federal possuiu a Súmula nº 340 que prevê: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens5 públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.”, e diversas decisões restritivas quanto a usucapião6.

 

Ao analisarmos as decisões do STF, do STJ e da maioria das cortes estaduais que impedem a usucapião dos imóveis públicos percebemos o emprego da interpretação meramente literal, excessivamente legalista, bitolada no método gramatical, ignorando o método sistêmico, análise principiológica e a unidade constitucional.

 

Grande parte da doutrina acompanha o mesmo entendimento dos tribunais que vedam a usucapião dos bens públicos. Leciona José dos Santos Carvalho Filho7 ser irrestrita a imprescritibilidade dos bens públicos, alcançando todas as espécies e categorias de bens públicos, quer seja de uso especial, uso comum ou dominical. No mesmo sentido, Maria Sylvia Di Pietro8,  Celso Antônio Bandeira de Melo9  e Hely Lopes Meirelles10.

 

A imprescritibilidade dos imóveis públicos, consagrada no direito brasileiro, com sede constitucional e, devidamente reforçada pela legislação ordinária, com defesa majoritária da doutrina, não deve ser obstáculo às reflexões e às razões que fundamentam o instituto protetivo. Tão pouco impeditivo para que se investigue se o descumprimento da premissa que fundamenta a imprescritibilidade acarreta consequências de cunho fático e jurídico.

 

Cristiana Fortini defende que a vedação de usucapião somente deve ocorrer sobre bens materialmente públicos, ou seja, exclusivamente sobre os bens que estejam cumprindo sua função social.11  No mesmo sentido, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald rememoram que a personalidade jurídica do titular do bem não deve ser obstáculo à usucapião, devendo remanescer apenas na concretização do interesse público:

 

“Os bens públicos poderiam ser divididos em materialmente e formalmente públicos. Estes seriam aqueles registrados em nome da pessoa jurídica de Direito Público, porém excluídos de qualquer forma de ocupação, seja para moradia ou exercício de atividade produtiva. Já os bens materialmente públicos seriam aqueles aptos a preencher critérios de legitimidade e merecimento, postos dotados de alguma função social”12.

 

Na visão desses autores, o propósito do legislador na proteção da usucapião dos imóveis públicos é restrita apenas aos bens materialmente públicos.13

 

Vale destacar que, o mesmo constituinte que impõe a vedação da usucapião dos bens públicos também ordena que a propriedade deve cumprir sua função social e garante a todos o direito fundamental à moradia, que por sua vez efetiva o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

 

Assim, resta evidente que quando há um imóvel público abandonado por décadas e o particular se apossa do bem para ver seu direito à moradia concretizado, ocorre claramente a colisão de direitos, princípios e normas, todos com sede constitucional.

 

Legítimo afirmar que na colisão entre a vedação à  usucapião de bens públicos e os citados direitos fundamentais, bem como à dignidade da pessoa humana, os últimos deveriam prevalecer no caso concreto.

 

Não está se afastando uma regra em prol de um princípio, mas, realizando uma interpretação sistêmica, uma vez que, apesar de existir uma regra que proíbe a usucapião desses bens públicos, em contrapartida, há também o dever de cumprimento da função social dos imóveis, que deveria prevalecer quando a propriedade não cumpre a função social e, ainda, viola o princípio da dignidade da pessoa humana14.

 

Na linha defendida por Cristiana Fortini, Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves, a imprescritibilidade está restrita aos bens materialmente públicos, se determinado imóvel encontra-se abandonado sem qualquer finalidade pública, ele apenas é titularizado pelo ente público.

 

Portanto, não se deve confundir titularidade imobiliária com a natureza jurídica do bem.

 

Outrossim, a proteção obcecada da imprescritibilidade sobre todo e qualquer imóvel público, sem qualquer condicionante, consagrará a má gestão. Por exemplo, um hospital público desativado e abandonado, continuará nessa condição se o gestor tiver a tranquilidade de que esse bem jamais será usucapido.

 

Se a propriedade privada deve cumprir a função social, o bem público deve ser a própria função social e, se assim não for, deixa de ser deste modo entendido, protegido, e eventuais abandonos e ociosidades devam ser combatidas por qualquer sistema jurídico.

 

Não é coerente com nosso catálogo de direitos e princípios fundamentais expressos na CF/88 estimular que imóveis públicos abandonados pelo Estado por décadas continuem protegidos em detrimento da coletividade que, eventualmente, consegue materializar a função social e concretizar o direito à moradia, que também têm sede constitucional.

 

Estima-se que somente no âmbito da União, há pelo menos 18 mil imóveis desocupados, sendo que foi despendido em 2016, o valor absurdo de cerca de R$ 1,7 bilhão e em 2015, R$ 1,5 bilhão, com aluguel para instalações da administração pública federal15.

 

O valor líquido contábil dos imóveis da União é de R$ 1,306 trilhão, conforme Balanço Geral da União (31/12/2019), sendo que esses bens decorrem, por exemplo, da apreensão de ilícitos, extinção de órgãos e cobranças de dívidas tributárias e não tributárias16.

 

A acumulação indevida de inúmeros imóveis pela União acarreta o abandono da maioria da parcela destes, a subutilização, invasões, furtos das instalações prediais, apossamento indevido, deterioração e depreciações, onerando indevidamente o erário.

 

Paradoxalmente, há notícia veiculada pelo Correio Brasiliense, de que a União foi impedida por fiscais do Ibama de realizar leilão de um imóvel funcional (na Asa Norte em Brasília), pois esta estava ocupado por uma família de urubus (animal silvestre da fauna brasileira que goza de  proteção ambiental). A Secretaria do Patrimônio da União – SPU informou que procedeu com aquisição de telas para lacrar a varanda assim que os filhotes possam voar.17

 

No Brasil, segundo informações do Relatório de Impacto TETO Brasil, existem aproximadamente 5,8 milhões de famílias sem residência ou que vivem em condições insalubres e precárias, sendo que mais de 100 milhões de brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto18. Segundo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2022, havia ao menos 281.472 pessoas vivendo nas ruas pelo país19.

 

Ou seja, mesmo diante da elevada necessidade de concretização ao direito de moradia de inúmeras famílias brasileiras, há situação de abandono dos imóveis públicos brasileiros, que é gravíssima e inconteste.

 

Em relação a esse abandono, há inúmeros casos em todas as esferas, seja federal, estadual, municipal, na administração pública direta, indireta e até mesmo em algumas parcerias públicas privadas. Ainda, importante salientar que a manutenção desses bens possuiu um custo elevadíssimo, sendo que na maioria, estão em estado deplorável.

 

Luís Roberto Barroso orienta que no universo da colisão, da ponderação e da argumentação não é exequível uma resposta correta e pronta para as colisões jurídicas de direitos, mas deve-se buscar soluções argumentativas e racionais. A legitimidade da decisão dependerá da adequação na realização da vontade constitucional em concreto20.

 

A imprescritibilidade viabiliza a execução de uma finalidade pública, mas se tal não ocorre, não é legitima essa proteção, caso mantida, apenas nutrirá ainda mais o abandono da grande maioria dos imóveis públicos brasileiros.

 

Klaus Stern, invocando a autoridade do Tribunal Constitucional Federal alemão, informa que as disposições constitucionais devem ser interpretadas de forma compatível com normas fundamentais da Lei Fundamental, de modo que conflitos devem ser dirimidos, privilegiando disposição constitucional de maior valor no caso concreto.21

 

A utilização da ponderação impede que cada dispositivo seja desconsiderado integralmente, de maneira que o cumprimento da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana e eventual supressão momentânea à vedação constitucional da usucapião, em alguns casos concretos, não implica na negação integral da vigência dessa norma22.

 

Contudo, caso mantida a imprescritibilidade nas situações em que a função social é totalmente descumprida, sem qualquer ponderação de valores, haverá desprezo integral à norma que impõe o cumprimento da função social, dignidade da pessoa humana e direito à moradia, descaracterizando a unidade sistêmica constitucional23.

 

Apesar da vedação à usucapião dos imóveis públicos estar positivada pela legislação constitucional e infraconstitucional, com defesa da grande maioria da doutrina e jurisprudência, existem decisões inovadoras baseadas na função social da propriedade permitindo a usucapião de imóveis públicos. Vejamos:

 

[..] Caso em que nem a autora, ora apelada, nem a proprietária do bem (União Federal) dão qualquer destinação social ao imóvel, ao contrário do autor, que reside com sua família no local. Colisão do direito de propriedade com direito social constitucionalmente assegurado, “[…] Se é certo que a Constituição Federal, em seu Art. 5º, XXII, garante o direito de propriedade, no mesmo Art. 5º, XXIII, dispõe que esta deve atender sua função social. Mais. Está previsto no Art. 1º da mesma Carta, que a Republica Federativa do Brasil tem como fundamento, dentre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Em seu Art. 6º, garante como direito social a moradia e a assistência aos desemparados. […]24”.

 

Em síntese, a grande maioria dos tribunais tendem a adotar postura eminentemente positivista, legalista e literal, mas é importante não desprezarmos algumas decisões em sentido contrário à imprescritibilidade absoluta dos bens públicos, reconhecendo a usucapião de imóveis públicos e dando o cumprimento do também princípio constitucional da função social da propriedade, direito à moradia e dignidade humana.

 

Frise-se que em todas as decisões acima colacionadas, houve a flexibilização da norma protetiva aos bens públicos, sendo consubstanciadas na análise factual dos casos concretos e não em mera análise perfunctória literal das normas em colisão.

 

É importante concluir que devemos continuar atentos e observando o comportamento e, quiçá, o avanço da nossa jurisprudência, bem como os debates nos palcos doutrinários, para quem sabe, contemplaremos alguma alteração legislativa, a fim de diminuir o grave quadro de abandono do imobiliário público brasileiro.

 

Por fim, destaco que, possivelmente, o conjunto de soluções portuguesas que não protege bens do domínio privado da usucapião, possa, de alguma forma, ser replicado no Brasil, uma vez que tal posição legislativa teve potencial de mitigar a demanda por moradia dos cidadãos portugueses, amenizando também o quadro de abandono imobiliário público naquele país.

 

Fonte: Migalhas

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