A temática concernente ao testamento internacional, entendido como processo sucessório ou hereditário transnacional, suscita a observação de que não tem sido devidamente destacada no âmbito acadêmico.

 

Há uma perceptível ausência de atenção por parte dos operadores do Direito em relação à crescente mobilidade internacional, à globalização de casais, casamentos e divórcios internacionais e às complexidades envolvidas nas sucessões que abarcam bens e ativos dispostos em variados países.

 

Tal carência de atenção torna-se evidente quando observamos casos veiculados pela mídia envolvendo personalidades ou figuras públicas que enfrentam processos de divórcio, como no caso de Gisele Bündchen, ou situações de falecimento, como ocorreu com Gugu Liberato.

 

Nesses contextos, os questionamentos acerca da competência territorial, soberania de nações regidas por sistemas jurídicos distintos e as implicações (bi)tributárias surgem de maneira intrincada, não admitindo respostas simplificadas.

 

No exercício prático da advocacia internacional de família, deparamo-nos com inúmeras circunstâncias envolvendo inventários e partilhas, separações ou divórcios internacionais que abrangem bens de cidadãos brasileiros, dupla ou tripla nacionalidade, nos Estados Unidos, Europa e Ásia.

 

Em decorrência, é comum deparar-se com a dispersão de bens estrangeiros entre nações culturalmente distintas, e, na maioria dos casos, o caráter contencioso dos procedimentos e processos se manifesta já na análise preliminar da legislação a ser aplicada: brasileira ou estrangeira?

 

A complexidade acentua-se quando se trata de um testamento internacional.

 

Convenção Relativa à Lei Uniforme sobre a Forma de Um Testamento Internacional

 

Na Europa, a Convenção Relativa à Lei Uniforme sobre a Forma de Um Testamento Internacional, também conhecida como Convenção de Washington, busca facilitar o inventário e a partilha transnacional, dispensando a necessidade de averiguação sobre qual legislação deve reger o testamento.

 

A Convenção prevê no seu artigo 2º, a designação por cada parte contratante, das pessoas habilitadas a tratar das matérias relativas ao testamento internacional no respectivo território,  ratificada por boa parte dos países europeus.

 

Dispõe nos artigos 2º e 5º: “um testamento será válido quanto à forma, independentemente do lugar em que for feito, da localização dos bens e da nacionalidade, domicílio ou residência do testador, se elaborado nos moldes do testamento internacional“.

 

A Convenção busca facilitar o inventário e partilha transnacional, na Europa, dispensando a averiguação e tratativas sobre a lei de qual país deverá ser aplicada no testamento internacional.

 

No mesmo sentido, diversos países europeus permitem a elaboração de pactos antenupciais com previsão da lei de qual país será aplicada em caso de eventual divórcio do casal, possibilidade inexistente no ordenamento jurídico brasileiro.

 

Contexto local

 

O Brasil, infelizmente, não é signatário dessa convenção, e as disposições acerca de testamentos internacionais encontram-se dispersas em diversas normativas, tais como o Código Civil, Código de Processo Civil, leis complementares, Constituição Federal e decretos antiquados.

 

Nesse contexto, a competência territorial em matéria de sucessão hereditária é regulamentada pelo artigo 23, II, do CPC, que confere à autoridade judiciária brasileira a confirmação de testamentos particulares e a realização de inventários e partilhas de bens situados no Brasil, vejamos:

 

Artigo 23, II, do CPC: “Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra, em matéria de sucessão hereditária, proceder à confirmação de testamento particular e ao inventário e à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional”.

 

Contudo, o Superior Tribunal de Justiça tem flexibilizado o entendimento quando a decisão estrangeira atende à última vontade do falecido e transmite bens localizados no Brasil aos herdeiros indicados no testamento.

 

Aliás, em uma decisão datada de 17 de outubro de 2023, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a viabilidade de flexibilizar as formalidades normalmente exigidas para conferir validade a um testamento. Destacou-se, nessa ocasião, a relevância de atenuar determinadas formalidades a fim de assegurar o devido respeito às expressões finais da vontade do testador, conforme registrado no Recurso Especial (REsp)  2.080.530.

 

O Princípio da Unidade Sucessória é aplicado sem ressalvas aos bens situados no território brasileiro, mas a dinâmica se altera quando os bens estão no exterior, impactando o Princípio da Soberania Nacional e requerendo uma análise detalhada internacional.

 

Lex Loci Actus

 

A aplicação da lei estrangeira e do princípio da Lex Loci Actus nos tribunais de segunda instância é exemplificada pelo Acórdão nº 70075364786/2018/TJ-RS, que analisou um testamento particular feito em Hong Kong, beneficiando uma filha brasileira e partilhando  imóveis no Brasil.

 

Na ocasião, o Colegiado exigiu que, para  confirmação e validação do testamento particular estrangeiro no Brasil, é essencial a observação e respeito aos requisitos formais exigidos pela lei de Hong Kong (princípio da lex loci actus),  um caso clássico da aplicação da lei estrangeira para validade e eficácia do documento em território brasileiro.

 

O que diz a Lindb?

 

A percepção de que a sucessão, quando envolve elementos internacionais, é um processo verdadeiramente fragmentado não se limita à identificação da jurisdição, estendendo-se também à determinação da legislação que regula os direitos sucessórios.

 

A maior complexidade em casos que abrangem sucessões transnacionais se manifesta nas situações em que prevalece o conflito positivo de jurisdições, cenários em que múltiplos ordenamentos jurídicos possuem jurisdição para aplicar a legislação sucessória.

 

Nesse sentido, dispõe o artigo 10 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) que “a sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens”.

 

Isso implica que, de maneira geral, a legislação do domicílio do falecido prevalece, em conformidade com a teoria da lei domiciliar (lex domicilii) do autor da herança na sucessão causa mortis, tornando-se irrelevante a natureza ou localização dos bens transmitidos aos herdeiros.

 

Em resumo, sem o conhecimento da legislação do domicílio do falecido (lei estrangeira), não é possível determinar se a legislação brasileira é mais favorável.

 

Bens no Brasil deixados por estrangeiros

 

Em relação aos bens localizados no Brasil e pertencentes a estrangeiros, a Lindb estipula que a sucessão será regida pela legislação brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, desde que não lhes seja mais favorável a legislação pessoal do falecido.

 

Esse preceito legal encontra correspondência na Constituição de 1988, a qual garante a aplicação, na sucessão hereditária, da legislação mais benéfica ao cônjuge sobrevivente ou aos filhos brasileiros, seja ela a legislação nacional ou a lei pessoal do falecido.

 

Importa ressaltar que a menção à “lei pessoal” do falecido deve ser compreendida em referência à legislação do seu domicílio (e não à residência).

 

Desafios e compensações nas partilhas internacionais

 

Uma questão de grande interesse e que tem despertado a atenção da doutrina no contexto das sucessões  e partilhas internacionais é a possibilidade de inclusão dos bens situados no exterior na partilha dos bens localizados em território nacional, visando à equalização das quotas atribuíveis a cada parte de acordo com a legislação brasileira.

 

Em alguns casos isolados, o Superior Tribunal de Justiça interpretou que a partilha realizada no Brasil deveria contemplar, para efeitos de compensação, o valor dos bens partilhados no exterior.

 

Contudo, essa questão é de extrema complexidade e suscita uma série de questionamentos que precisam ser abordados em cada caso específico.

 

Portanto, apesar da relativa complexidade inerente aos elementos de conexão internacional, a análise minuciosa do domicílio do falecido, da localização dos bens e a observância dos requisitos formais do testamento são elementos fundamentais para a condução de procedimentos excepcionais ao lidar com testamentos internacionais.

 

Fonte: Conjur

Deixe uma resposta