Em outubro de 2023, foi promulgada a Lei n° 14.711, conhecida como Marco Legal das Garantias, que trouxe diversas mudanças à constituição, à administração e à excussão de garantias reais. Apesar de o texto introduzir pontos relevantíssimos, para aqueles que acompanharam o projeto desde as discussões internas no governo federal ainda em 2021 a impressão é de que as ambiciosas pretensões estruturantes dos seus idealizadores não se concretizaram.

 

Muitas propostas materiais como a legalização do trust foram retiradas durante o processo legislativo, resultando numa lei povoada quase exclusivamente por procedimentos notariais e regras de garantias imobiliárias e sobre veículos.

 

Assim, o grosso da lei tem pouco ou nenhum impacto sobre boa parte do setor financeiro que opera com as novas infraestruturas de registro de ativos financeiros (à margem do ambiente notarial, portanto) e a maioria das instituições de pagamento.

 

Diante disso, fica a pergunta: afinal, alguma ferramenta do novo Marco Legal das Garantias serve aos novos negócios do setor financeiro?

 

É o que este texto visa começar a responder. Para tanto, investigaremos brevemente os efeitos da nova lei em dois arranjos que envolvem o uso de garantias e vêm ganhando espaço no mercado: a administração de garantias por terceiros e a constituição de garantias em operações de instrumentos de pagamento pós-pagos (cartões de crédito).

 

Administração fiduciária de garantias: a legalização do “agente de garantias”

 

Uma das principais transformações pelas quais o mercado de crédito brasileiro vem passando, muito graças ao avanço tecnológico e à política regulatória do Banco Central, é o uso intensivo dos sistemas de registro e depósito centralizado de ativos financeiros.

 

Essas infraestruturas sofisticadas permitem o registro rápido e barato de operações com ativos financeiros complexos e trazem enormes ganhos de eficiência, a ponto de o Banco Central tornar o seu uso obrigatório em alguns mercados (por exemplo em operações com recebíveis de arranjos de pagamento, duplicatas escriturais, recebíveis de empreendimentos imobiliários e outros).

 

Para usufruírem desses sistemas, no entanto, credores precisam estar capacitados tecnicamente para a troca e processamento de mensageria de forma rápida e segura, o que acaba sendo uma barreira a players tradicionais.

 

Isso vem sendo solucionado em alguma medida pelo surgimento de plataformas e serviços que facilitam o uso dos sistemas de registro, acessando-os por conta própria e enviando comandos de transações com os ativos registrados por conta e ordem de seus clientes.

 

Esse importante serviço permite que os sistemas de registro atinjam seu potencial de indução de produtos financeiros inovadores, mas seu oferecimento depende de institutos jurídicos tradicionais como o mandato e o depósito de coisa fungível, que, apesar de serem sólidos e seguros, deixam em aberto diversas questões relevantes que ameaçam a própria viabilidade econômica do serviço.

 

Para essa estrutura em específico, o Marco Legal das Garantias é bastante útil. Ao positivar no Código Civil o chamado contrato de administração fiduciária de garantias (artigo 853-A), a nova lei responde importantes questões até então não endereçadas pelos institutos tradicionais, como a possibilidade de o agente atuar em nome próprio (caput) e receber os produtos da liquidação das garantias (§§5° e 6°), bem como a segregação patrimonial dos recursos em posse do agente (§5°).

 

Com essas mudanças, o serviço de administração de garantias tende a ficar mais seguro para os credores beneficiários quando estruturado de forma adequada, o que tende a melhorar a prestação de serviços de acesso a infraestruturas de registro.

 

Garantias em contratos de cartão de crédito: algo mudou?

 

Já o uso de garantias em contratos de cartão de crédito vem crescendo juntamente com a proliferação de novos meios de pagamento a crédito voltados a pessoas jurídicas ou de alta renda, cujos altos limites dependem de garantias sólidas e seguras.

 

Se, por um lado, o desenvolvimento desse mercado se deve em boa parte aos avanços legislativos que permitiram o amadurecimento das instituições de pagamento, por outro ele ainda esbarra em problemas causados por interpretações arcaicas do Direito, contra as quais as instituições financeiras conseguiram se imunizar por atuação legislativa, ao contrário das instituições de pagamento.

 

A imunização para instituições financeiras veio com a Lei nº 13.476, de 28 de agosto de 2017, que regulou a contratação da abertura de limite de crédito no âmbito do Sistema Financeiro Nacional. Historicamente, o contrato de abertura de limite crédito encontrava diversos obstáculos em razão de sua estrutura jurídica, marcada por um contrato “guarda-chuva” que estabelece o valor máximo que o tomador pode tomar em empréstimos junto ao credor.

 

A problemática aqui é que o contrato, por si só, não constitui nenhuma dívida concreta e exigível — a existência, exigibilidade e valor da dívida dependem do efetivo uso do limite pelo tomador (as chamadas “operações financeiras derivadas”). A garantia, contudo, já se constituí no próprio contrato usando como base o valor do limite.

 

Antes da Lei 13.476, essa prática era frequentemente questionada na esfera judicial e nos cartórios de registro. O entendimento era de que alguns requisitos formais para constituição de garantias previstos no Código Civil não eram perfeitamente preenchidos em razão de a garantia não estar atrelada a nenhuma dívida exigível e certa no momento do registro, resultando em exigências incompatíveis com a finalidade da operação, como formalização de aditamentos periódicos para incluir o valor do limite efetivamente consumido pelo cliente, por exemplo.

 

Isso gerava excessivos custos de registro e alguma insegurança jurídica, já que o devedor, a qualquer momento, poderia se recusar a aditar os contratos para dar seguimento à operação.

 

Com a Lei 13.476, estabeleceu-se expressamente a possibilidade de as garantias do limite de crédito cobrirem todas as operações financeiras derivadas, independentemente de qualquer novo registro e/ou averbação adicional (artigo 6º). Com o tempo, oficiais de registro e juízes alteraram seus entendimentos acerca da necessidade de aditamentos constantes, o que reduziu substancialmente custos e riscos para as partes.

 

O problema da Lei 13.476 está em seu âmbito de aplicação, hoje restrito a operações “no âmbito do Sistema Financeiro Nacional”. Muito se discute sobre se as instituições de pagamento — que integram o Sistema de Pagamentos Brasileiro — podem ou não se valer dos benefícios dessa lei para concessão de limite de crédito vinculado a conta de pagamento pós-paga, o que tem levado muitas empresas a utilizarem bases legais do Código Civil anteriores à Lei 13.476 em seus contratos.

 

Apesar de válidas, tais bases ainda possuem certas restrições que sujeitam as IPs aos mesmos questionamentos que eram feitos às instituições financeiras antes da Lei 13.476.

 

Perdemos a oportunidade de melhorar esse cenário com o Marco Legal das Garantias. Apesar de conter alterações à Lei 13.476 no tocante a garantias imobiliárias, o Marco não estendeu seu âmbito de aplicação para além do Sistema Financeiro Nacional.

 

Dessa forma, IPs emissoras de cartões com limites de crédito de alto valor ainda precisam recorrer a estruturas jurídicas e teorias sofisticadas e menos testadas para assegurar a correta formalização de seus créditos.

 

Talvez o Marco Legal das Garantias não faça jus ao apelido, pois muitas mudanças materiais importantes dos projetos iniciais ainda seguem como promessas. No entanto, ao analisarmos essa lei, e se conseguirmos resistir à tediosa leitura de uma longa lista de normas notariais, podemos encontrar ferramentas muito úteis para os novos negócios do setor financeiro.

 

Fonte: ConJur

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