Recente decisão da 11ª Vara do Trabalho de João Pessoa, vinculada ao TRT13, condenou uma Igreja ao pagamento de indenização no valor de R$200.000,00 pelo constrangimento ilegal e imposição a um pastor em realizar uma vasectomia.

De acordo com uma testemunha do processo, “as ações de constrangimento passaram desde a entrega de um envelope com dinheiro para o pagamento da cirurgia até impedir o homem de contar sobre a vasectomia aos pais ou, até mesmo, de prosseguir com o casamento caso se recusasse a se submeter ao procedimento”1.  Conforme nota publicada na UOL, são mais de 65 processos envolvendo a Universal e ex-pastores que teriam sido coagidos a realizar vasectomia.2

É incontroverso que o direito ao planejamento familiar envolve a programação de ter filhos ou não filhos, quantos ter e quando os ter e eventual invasão nessa seara tão íntima é causa legítima e desencadeadora do dever de indenizar.3 A autonomia reprodutiva não pode ser vulnerada por um suposto vínculo empregatício e também por uma suposta proteção aos interesses da Igreja invadindo aspecto da vida dos pastores. Ademais, impor uma medida de não reprodução para alguém que é empregado de determinada igreja e segue a Bíblia seria contrapor o próprio texto sagrado que estabelece “sede férteis e multiplicai-vos!”.

O ponto em destaque da presente decisão é o suposto descompasso entre a jurisprudência trabalhista e civilista. O mesmo Judiciário possui decisão do TJPB que adota que a realização não consentida de uma laqueadura em hospital público geraria o dever de indenizar no valor de R$20.000,00.4

Ocorre que as decisões judiciais em relação aos danos extrapatrimoniais devem seguir o método bifásico, conforme reconhecido pelo STJ desde 2011, por ocasião do AgRg no Ag 1.331.805/RJ, de relatoria do min. Paulo de Tarso Sanseverino.  A primeira fase busca trazer precedentes judiciais análogos para firmar uma base indenizatória comum e a segunda fase se propõe a reconhecer as particularidades do caso concreto diante das agravantes e atenuantes para majorar ou minorar o quantum indenizatório.5

Ou seja, os processos submetidos à justiça comum e trabalhista seguem precedentes análogos em função da matéria, mas distintos em relação ao quantum, resultando em uma significativa diferença de valor. Se o Judiciário se propõe a ser uno e indivisível, caberia uma suposta falta de uniformidade tão gritante no padrão indenizatório?

Essa suposta falta de parâmetro indenizatório comum acaba por gerar uma evasão da justiça comum e uma tentativa de enquadramento da relação de emprego ou trabalho visando justificar a competência da Justiça do Trabalho e aplicar uma série de julgados justrabalhistas com valores indenizatórios maiores.

Nesse sentido, há uma busca de um suposto forum shopping e a multiplicação de conflitos judiciais por causa da escolha, pelo particular, do juízo mais conveniente e supostamente competente para apreciar a demanda. Como bem alertam Ivo Gico Júnior6 e Luciana Yeung7, a partir de um juízo de seletividade, o autor pode buscar, por estratégia processual, litigar no juízo trabalhista e não no juízo comum.

Especificamente em relação aos casos dos ex-pastores, inúmeras são as decisões justrabalhistas que ratificam a relação de emprego e responsabilizam as igrejas por vasectomias compulsórias, além de também haver ações e pedidos formulados por cônjuges objetivando a reparação por danos em ricochete com fundamento também na violação ao direito reprodutivo. Porém, também são recorrentes as decisões judiciais que identificam a ausência de prova da imposição das esterilizações não consentidas.

Essa suposta evasão da justiça comum acaba por agravar a quantidade de conflitos, conforme se observa em recente notícia veiculada pelo STJ, por ocasião do julgamento do conflito de competência 202513 PE, que decidiu suspender a reclamação trabalhista proposta pela mãe do menino Miguel sob o argumento de que o processo trabalhista e o processo civil envolvem fatos e causa de pedir comuns e sobrepostas. A decisão a título precário confirma que a morte do menino Miguel não teria fundamento propriamente na relação trabalhista, mas de uma relação tipicamente civil.

Ocorre que, independente da competência originária, mostra-se racional, sob uma perspectiva individual, que o autor busque deslocar a demanda para esfera trabalhista, pois, como visto, o método bifásico trabalhista possui um quantum indenizatório referencial maior do que em comparação ao da justiça comum.

Talvez por caracterizar um maior grau de reprovabilidade da conduta do empregador e também em razão da condição de vulnerável do trabalhador, o parâmetro indenizatório trabalhista seja diferenciado, porém enquanto não existir uma uniformidade decisória, haverá uma proliferação de demandas e um excessivo questionamento sobre o quantum indenizatório, notadamente quando utilizarmos como standard o da Justiça do Trabalho. O ponto de partida da justiça especializada e comum seria o mesmo, porém a trajetória seria distinta.

Nesse cenário, é incontroverso que a conduta isolada de desrespeito aos direitos reprodutivos e planejamento familiar é grave, porém é também legítimo debater se os agravantes e atenuantes analisados pela Justiça do Trabalho permitem uma espécie de distinguishing jurisprudencial, em virtude dos valores sociais distintos envolvidos na ratio decidendi civil tradicional.

Enquanto não houver o discernimento de que a Justiça do Trabalho promove decisões especializadas e fundada em balizas decisórias diferenciadas da justiça comum, haverá diversas críticas sem a necessária compreensão da história, função e valores envolvidos no processo decisório. Paralelamente, também haverá uma série de ações tipicamente civis que buscarão considerar os parâmetros justrabalhistas para condenações, o que, de igual forma, não se mostra razoável.

Os desafios principiológicos são evidentes, pois a mercantilização em prol da escolha de foro traduz a densidade axiológica do acesso à justiça, devido processo legal e boa fé processual em que se veda o abuso de direito. Existe espaço para o fórum shopping visando majorar indenizações em decorrência de violações aos direitos reprodutivos e planejamento familiar? Ficam as reflexões.

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1 Disponível aqui.

2 COSTA, Raniere. UOL. Ex-pastores acusam Universal de obrigá-los a fazer vasectomia: ‘Ameaças’. Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2024.

3 SANTOS, Andressa Regina Bissolotti dos. “Filiação afetiva planejada”: livre planejamento familiar e filiação à luz da inseminação artificial caseira. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 32, 1, p. 91-114, jan./ mar. 2023.

4 GUEDES, Lenilson. Erro médico: Estado deve indenizar mulher em danos morais. Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2024.

5 Nesse sentido sugerimos a leitura de FAMPA, Daniel Silva; PENNA, João Vitor. O Método bifásico de quantificação das indenizações por danos morais: apontamentos a partir da jurisprudência do STJ. Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2024; FACCHINI NETO, Eugênio. Origens e evolução do método bifásico na quantificação dos danos morais. Disponpivel aqui. Acesso em 28 set. 2024 e MARANHÃO, Clayton; NOGAROLI, Rafaella. O método bifásico como critério de quantificação dos danos morais e estéticos decorrentes da atividade médica na jurisprudência do TJ/PR. Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2024

6 GICO JÚNIOR, Ivo T. Análise Econômica do Processo Civil. Indaiatuba: Editora Foco, 2020.

7 YEUNG, Luciana. Jurimetria ou Análise Quantitativa de Decisões Judiciais. In: MACHADO, Maíra Rocha (org.). Pesquisar empiricamente o Direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017. p. 249-274

Fonte: Migalhas

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