A era digital, marcada pelo avanço constante das tecnologias de informação e comunicação, transformou radicalmente a maneira como as pessoas interagem, compartilham informações, realizam atos da vida civil e até constroem suas identidades. Redes sociais, inteligência artificial, realidade aumentada e outras inovações tecnológicas ampliaram tanto as oportunidades quanto os riscos associados à proteção dos direitos da personalidade. Em um cenário onde dados pessoais e informações sobre os indivíduos são coletados, analisados, compartilhados e até manipulados em uma escala sem precedentes, a proteção dos direitos da personalidade tornou-se um desafio central para o Direito.
Esses direitos são fundamentais para garantir a proteção do ser humano como indivíduo e cidadão. Entretanto, conforme observa o sociólogo espanhol Manuel Castells, a informação sempre existiu, a inovação se dá quanto a necessidade de substituir o ponto de vista estático das relações de outrora por um novo paradigma dinâmico, de complexos informacionais, que seriam organizados em redes, as quais modificariam substancialmente os processos de produção, experiência, poder e cultura1. Em meio a essa nova configuração, a sociedade da informação impõe complexidades inéditas à proteção dos direitos fundamentais, exigindo uma atualização normativa capaz de enfrentar as ameaças e vulnerabilidades que emergem com as novas tecnologias.
Essa evolução tecnológica exige então, que o Direito se adapte a uma realidade em constante transformação, onde a velocidade e a amplitude de disseminação de informações criam vulnerabilidades nunca antes enfrentadas. O ambiente digital, ao mesmo tempo em que oferece novas possibilidades de expressão e conexão, amplia a exposição do indivíduo, desafiando os limites tradicionais da privacidade e da integridade pessoal. Diante disso, o Direito é convocado a repensar as formas de proteção da personalidade, respondendo aos riscos específicos que surgem com a virtualização das relações sociais e a automatização dos processos de coleta e análise de informações.
Um exemplo emblemático dessa necessidade de adaptação do Direito frente às novas tecnologias pode ser observado no julgamento do referendo em medida cautelar nas ADIs 6.387, 6.388, 6.389, 6.390 e 6.393, pelo STF em 2020. O caso tratou do compartilhamento de dados de geolocalização dos cidadãos brasileiros pelo IBGE, durante a pandemia de COVID-19, com o objetivo de monitorar a mobilidade da população. Na decisão, o ministro Gilmar Mendes destacou a relevância de proteger os direitos fundamentais da privacidade e da autodeterminação informativa diante dos riscos inerentes ao avanço tecnológico e à coleta massiva de dados. E em seu voto, foi reconhecida expressamente a necessidade de novos parâmetros de proteção frente às inovações, citando que os parâmetros de proteção dos direitos fundamentais devem ser permanentemente abertos à evolução tecnológica2. Reafirmando o papel do Direito em acompanhar essa evolução, estabelecendo salvaguardas que preservem os direitos da personalidade.
A proposta de inclusão de um novo livro de Direito Digital na reforma do CC busca atender a essa necessidade, criando uma base jurídica sólida para regulamentar o ambiente digital e assegurar que os direitos da personalidade permaneçam protegidos. A criação de “novos” direitos da personalidade na era digital – como por exemplo o direito a exclusão de informações e até os neurodireitos3- emerge como uma medida essencial para que o Direito continue eficaz na proteção da dignidade e da autonomia dos indivíduos em um ambiente interconectado.
Sendo assim, importante destaque merecem os fundamentos4 trazidos pela disciplina do Direito Civil Digital ressaltando pontos essenciais para a proteção dos direitos da personalidade na era digital. Entre eles, merece especial atenção o inciso V, que prioriza o desenvolvimento e a inovação econômicos, científicos e tecnológicos, assegurando a integridade e a privacidade mental, a liberdade cognitiva, o acesso justo, a proteção contra práticas discriminatórias e a transparência algorítmica. Assim como o inciso VII, que impõe o efetivo respeito aos direitos humanos, ao livre desenvolvimento da personalidade, à dignidade das pessoas e ao exercício da cidadania pelas pessoas naturais.
Essa formulação ressalta a necessidade de proteger os indivíduos em sua plenitude, garantindo que suas vidas no ambiente digital sejam pautadas pelo respeito à dignidade humana e à liberdade individual. Isso é particularmente relevante em um contexto em que a identidade digital muitas vezes se mistura à identidade pessoal, exigindo proteção legal robusta contra violações que possam comprometer a autonomia e o bem-estar do indivíduo.
Esses fundamentos delineiam os pilares de uma regulamentação mais moderna e abrangente, que almeja equilibrar o progresso tecnológico com a garantia de direitos fundamentais. Ao integrar questões como privacidade mental, liberdade cognitiva e transparência algorítmica, o Direito Civil Digital no Brasil demonstra um esforço proativo em abordar os desafios desta era de maneira disruptiva. Essa abordagem normativa não apenas responde às necessidades presentes, mas também prepara o ordenamento jurídico para lidar com futuras inovações tecnológicas, mantendo a centralidade da dignidade humana e dos direitos da personalidade em um mundo cada vez mais digitalizado.
Seguindo o entendimento trazido na proposta de atualização do CC, é relevante mencionar o capítulo intitulado “Da Pessoa no Ambiente Digital”, que trata de forma detalhada os direitos e deveres da pessoa natural. Nesse capítulo, chama a atenção o artigo que regula os direitos das pessoas no ambiente digital, especialmente o inciso III, que assegura “os direitos de personalidade, em todas as suas expressões, como a dignidade, a honra, a privacidade e o livre desenvolvimento”.
Esse dispositivo normativo reflete mais uma vez o compromisso de adaptar os direitos da personalidade aos desafios da era digital5, reafirmando valores centrais que asseguram a integridade e o respeito à individualidade de cada pessoa. A dignidade, princípio basilar do ordenamento jurídico, é resguardada como fundamento inegociável, especialmente em um ambiente onde a exposição e a manipulação da identidade pessoal são ampliadas pelas inovações tecnológicas. A inclusão da honra e da privacidade como expressões essenciais dos direitos de personalidade reforça a necessidade de proteger os indivíduos contra práticas abusivas que possam comprometer sua reputação, intimidade e autodeterminação.
Por fim, ao reconhecer o livre desenvolvimento da personalidade como um direito essencial no ambiente digital, o dispositivo também promove a ideia de que a tecnologia deve atuar como um instrumento para ampliar as liberdades e oportunidades humanas, e não como uma ferramenta de restrição ou controle. Este reconhecimento estabelece um equilíbrio entre o avanço tecnológico e o respeito pelos direitos fundamentais, garantindo que a evolução digital seja compatível com a valorização da pessoa humana.
Diante desse panorama, conclui-se que a era digital, ao mesmo tempo em que promove avanços tecnológicos significativos, impõe desafios complexos para a proteção dos direitos da personalidade. A virtualização das relações sociais e a ampliação das fronteiras do uso de informações de forma massiva, demandam do Direito um papel proativo e dinâmico, capaz de assegurar que os direitos fundamentais sejam preservados, mesmo em cenários de constante transformação.
A proposta de inclusão de um novo livro de Direito Digital no CC brasileiro emerge como uma resposta contundente a essas necessidades. Ao reconhecer os novos contornos dos direitos da personalidade, esse marco legal propõe um modelo que não apenas protege os indivíduos no presente, mas também prepara o ordenamento jurídico para lidar com inovações futuras. Essa abordagem reafirma a centralidade da pessoa humana e garante que os avanços tecnológicos sejam guiados por princípios éticos e jurídicos sólidos. Não apenas respondendo às vulnerabilidades atuais, mas também estabelecem uma importante e necessária base para o desenvolvimento de legislações específicas, políticas públicas e práticas privadas que respeitem os direitos individuais e promovam a justiça social.
Portanto, a atualização normativa proposta pelo Direito Civil Digital não se limita a uma mera adaptação às exigências tecnológicas, mas representa um verdadeiro avanço no reconhecimento e na proteção dos direitos da personalidade. Assim, o Direito reafirma seu papel essencial de garantir que o progresso seja aliado da dignidade humana, promovendo um ambiente onde as inovações sirvam ao bem-estar das pessoas, respeitando sua individualidade, autonomia e liberdade. Dessa forma, o Brasil se posiciona como um protagonista na construção de um ordenamento jurídico robusto e contemporâneo, à altura dos desafios da sociedade digital.
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1 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 8. ed. rev. ampl. S.o Paulo: Paz e Terra, 2005. 1 v. p. 565
2 “É por isso que, para muito além do mero debate sobre o sigilo comunicacional, este Tribunal deve reconhecer que a disciplina jurídica do processamento e da utilização da informação acaba por afetar o sistema de proteção de garantias individuais como um todo. O quadro fático contemporâneo deve ser internalizado na leitura e aplicação da Constituição Federal de 1988. Aliás, ousaria a dizer que nunca foi estranha à jurisdição constitucional a ideia de que os parâmetros de proteção dos direitos fundamentais devem ser permanentemente abertos à evolução tecnológica.”
3 Disponível aqui.
4 Fundamentos trazidos na proposta de Reforma do CC: “Art. . São fundamentos da disciplina denominada direito civil digital: I – o respeito à privacidade, à proteção de dados pessoais e patrimoniais, bem como à autodeterminação informativa; II – a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;
III – a inviolabilidade da intimidade, da honra, da vida privada e da imagem da pessoa; IV – o desenvolvimento e a inovação econômicos, científicos e tecnológicos, assegurando a integridade e a privacidade mental, a liberdade cognitiva, o acesso justo, a proteção contra práticas discriminatórias e a transparência algorítmica;
V – a livre iniciativa e a livre concorrência; VI – a inclusão social, promoção da igualdade e da acessibilidade digital; e
VII – o efetivo respeito aos direitos humanos, ao livre desenvolvimento da personalidade e dignidade das pessoas e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.”
5 Pérez Luño: Diz ser notório que um arsenal de valores, princípios e direitos das sociedades avançadas está sendo constantemente submetido a muitas transformações em consequência do impacto das novas tecnologias e das tecnologias de informação e comunicação. (PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los derechos humanos en la sociedad tecnológica. Madrid: Editorial S.A., 2012. p.9)
Fonte: Migalhas
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