A Constituição da República, ao prever a competência tributária dos estados e do Distrito Federal, estabelece os contornos do imposto que tem por fato gerador a transmissão de bens e direitos causa mortis ou doação [1].

Levando o nomen iuris de Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, em Pernambuco recebeu o acrônimo ICD; em São Paulo, ITCMD; em Minas Gerais, ITCD e assim vai. Para os fins do presente estudo, a referência será ICD.

Tem natureza eminentemente arrecadatória e sua matriz constitucional reside no artigo 155, I, da Constituição da República, que fixa os limites objetivos do fato gerador do ICD, quais sejam a transmissão de bens e direitos causa mortis ou doação.

Vale ter presente que a Constituição, ao abordar os princípios do sistema tributário nacional, fixou, no artigo 146, III, “a”, que a definição de fato gerador é matéria de lei complementar.

A única lei complementar que trata do ICD é o Código Tributário Nacional (CTN). Nele, porém, a roupagem dada é bem diferente do que fora estabelecido pela Constituição, o que é compreensível, pois que bem anterior a 1988.

Esse quadro normativo suscitou acaloradas discussões sobre a recepção do CTN, na parte que toca o ICD, pela Constituição da República.

O tema adormece atualmente, dado que o Supremo Tribunal Federal fixou o entendimento de que, na ausência de lei complementar, os estados poderiam instituir os tributos que a Constituição lhes atribuísse [2].

Transmissão de direitos e direito de propriedade e de usufruto

Então, o quadro que se formou é pela possibilidade de definição de fato gerador do ICD pelos estados. Ainda assim, contudo e naturalmente, há limites. Pela moldura concebida na Carta Magna, o ICD está preso à causa (morte ou doação) e ao efeito (transmissão de bens ou direitos) por ela previstos. Ausente qualquer desses fatores no caso concreto, será inconstitucional a tentativa de caracterizar fato gerador da espécie tributária em tela.

Trocando em miúdos, havendo transmissão de bens ou direitos por causa outra, como uma compra e venda, por exemplo, haverá possivelmente outros tributos, mas não haverá fato gerador de ICD. Do mesmo modo, não havendo transmissão, ainda que diante do evento morte, a todo sentir não haverá fato gerador dessa espécie igualmente.

A problemática aqui trazida: instituído o usufruto, a propriedade sofre provisoriamente contração nos poderes de uso e gozo, que dali em diante passam à esfera patrimonial do usufrutuário. Com a morte do usufrutuário, a propriedade torna-se plena nas mãos daquele que, até ali, era o nu-proprietário. Há, nesse caso, transmissão apta a caracterizar fato gerador do ICD?

Para responder a essa pergunta, parece é fundamental compreender se, com a morte do usufrutuário, há transmissão de direitos apta a configurar fato gerador de ICD, como querem alguns estados.

Para tanto, vale dar um passo atrás, a fim de explorar o conceito e algumas características do direito de propriedade e de usufruto, que são, a todo sentir, institutos do Direito Privado. Pertinente lembrar que a lei tributária não pode alterar o conceito de institutos do Direito Privado. Vai nesse sentido o artigo 110 do CTN, que tem seu entendimento assim explicado pela melhor doutrina:

“A lei complementar supre a Constituição, mas não a substitui. Se esta instituiu um tributo, elegendo para fato gerador dele um contrato, ato ou negócio jurídico, o legislador não pode restringir, por via complementar [e, naturalmente, nem por qualquer outra via infraconstitucional], o campo de alcance de tal ato ou negócio nem dilatá-lo a outras situações. A menção constitucional fixa rígidos limites. Atos de transmissão de propriedade imóvel, p. ex., são os do direito privado. Todos eles. Nenhum outro senão eles” [3].

Propriedade é titularidade [4], é relação de pertença. A propriedade enfeixa três poderes principais: disposição, uso e gozo. Quando dela se retira o uso ou o gozo, diz-se nua, nua-propriedade. Quando concentra os três poderes na mesma titularidade, diz-se que o domínio está consolidado, que a propriedade é plena ou alodial.

Uma das principais características da propriedade é a elasticidade. É a elasticidade que explica a capacidade que tem o direito de propriedade de ser comprimido, quando se o desnuda, e distendido, quando volta a contar com os poderes que por um momento lhe faltaram.

Em decorrência da elasticidade, toda nua-propriedade é transitória [5]. A propósito, vale lembrar que nua-propriedade é termo doutrinário, cunhado para expressar, reitere-se, a propriedade momentaneamente despida do direito de uso e ou gozo.

Nu-proprietário, assim, é, na verdade, proprietário. A lei não usa o termo nua-propriedade. Quando se refere ao que a doutrina denominou de nu-proprietário, a lei fala simplesmente em proprietário ou em dono [6].

Isso porque, como visto, propriedade é titularidade, é relação de pertença. O nu-proprietário mantém consigo o poder de disposição, de modo que proprietário ainda o é.

Daí que a propriedade é capaz de “reduzir-se a certo mínimo, ou de alcançar um máximo, sem deixar de ser propriedade” [7].

Cronologicamente, portanto, é possível defender que o que se convencionou chamar de nua-propriedade é nada mais que uma fase do domínio, no qual aquela se tornará em algum momento.

Nua-propriedade, enfim e com o perdão da tautologia, é a propriedade momentaneamente despida de algum de seus poderes, por força de usufruto, de uso ou de habitação [8].

Todos esses institutos, por natureza e pela mesma razão, têm prazo de duração, o que complementa e é ao mesmo tempo reflexo da transitoriedade da nua-propriedade, um estado de latência do domínio.

Desaparecendo o direito de usufruto, de uso ou de habitação, a propriedade, em função da elasticidade que lhe é característica, distende-se para passar a concentrar todos os poderes do domínio que lhe são inerentes.

Usufruto, por seu turno, é direito real na coisa alheia, que fica sujeita ao uso e ao gozo do usufrutuário por certo tempo. Intransferível por força de lei [9], embora possa o seu exercício ser cedido [10], o usufruto se extingue com a morte do usufrutuário [11].

Com a morte do usufrutuário não há, portanto, transmissão do uso e do gozo; há extinção do usufruto. Por isso, não é correto considerar que, nesse caso, há uma transferência do uso e do gozo, do usufrutuário falecido para o nu-proprietário.

Opera-se, na verdade, a plenitude do domínio nas mãos daquele que outrora foi o nu-proprietário, em função da elasticidade do direito de propriedade.

Então, com a extinção do direito de usufruto, exsurge automaticamente a plenitude do domínio para o titular do bem.

A despeito de a nossa lei não ser clara nesse sentido, Teixeira de Freitas, em seu Esboço do Código Civil, ensinava:

“Art. 4.674. Consolida-se o domínio na pessoa do nu-proprietário:

1º. Pelo falecimento do usufrutuário, ainda que não esteja cumprida a condição, ou vencido o prazo, a que foi subordinada a duração do usufruto.

…”

“Art. 4.675. Em nenhum caso o usufruto é transmissível a herdeiros ou legatários do usufrutuário.

O falecimento do usufrutuário, ainda que logo depois de sua aquisição, e mesmo antes da entrega dos bens, o extingue qualquer que tenha sido a causa dele, suicídio ou outro acidente”.

O Código Civil de 1916, por sua vez, confirmando que o direito de uso e gozo é inato à propriedade e dela se destaca apenas temporariamente, rezava:

“Art. 713. Constitui usufruto o direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade”.

Adaptações

Na tentativa de impor a tributação de ICD em casos de consolidação de domínio causa mortis, alguns estados adaptaram sua legislação, prevendo esse tipo de circunstância como fato gerador do tributo.

Em São Paulo, a legislação do ICD – Lei nº 9.591[12] e Decreto nº 46.655 [13] — prevê a tributação na consolidação de domínio em caso de morte do usufrutuário.

Em Pernambuco, a situação, do ponto de vista legal, é menos clara. Isso porque a lei instituidora — Lei nº 13.974 —, no ponto em que tangencia o tema, prevê:

“Art. 2º O ICD não incide sobre as transmissões de bens ou direitos:

… (omissis)

III – decorrentes da extinção de usufruto, quando o nu-proprietário tenha sido o instituidor”.

Com certo esforço hermenêutico, por uma interpretação do dispositivo a contrario sensu, conclui-se que a legislação do estado de Pernambuco prevê a exação para o caso de extinção do usufruto quando o instituidor não tiver sido o nu-proprietário, já que ela prevê que o tributo não incide quando o instituidor tiver sido o nu-proprietário.

Interpretação de lei tributária a contrario sensu, porém, não é constitucional, por atentar contra os Princípios da Legalidade, da Tipicidade e da Clareza, o que permite defender que, a menos se houver alguma outra lei do Estado de Pernambuco vagando pelos escaninhos, não há previsão legal para exação de ICD em caso de extinção do usufruto por morte do usufrutuário.

Embora em Pernambuco a lei instituidora não o preveja, a inclusão foi intentada por decreto regulamentador — Decreto nº 35.985 —, o que torna a situação ainda mais frágil [14].

A jurisprudência há algum tempo vem entendendo que a morte do usufrutuário não é fato gerador de ICD. Nesse sentido:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO PELO PROCEDIMENTO COMUM. SUSPENSÃO AUTO DE INFRAÇÃO E IMPOSIÇÃO DE MULTA. ITCMD. EXTINÇÃO DE USUFRUTO. Presentes os requisitos para a concessão da tutela de urgência pleiteada pela ora agravante. Afastada a preliminar de decadência. No mérito, o ITCMD não pode ser cobrado quando do cancelamento ou extinção do usufruto, pois ausente previsão legal. Não figura entre as hipóteses de incidência previstas em lei a extinção do usufruto. Não se trata de transmissão de bem “causa mortis”, sequer de doação, tratando-se, em verdade, de consolidação da propriedade plena na pessoa do nu-proprietário. Precedentes desta E. Corte. R. decisão agravada reformada. RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO”. (TJSP. Agravo de Instrumento 2005787-78.2020.8.26.0000. Rel. Flora Maria Nesi Tossi Silva. 13ª Câmara de Direito Público. DJ 08/04/2020)

“DIREITO TRIBUTÁRIO. EXTINÇÃO DE USUFRUTO. NÃO INCIDÊNCIA DE ITCD. INOCORRÊNCIA DE FATO GERADOR. DIREITO REAL DE CARÁTER INTUITU PERSONAE. RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL. IMPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA. 1. Nos termos da legislação estadual nº. 10.260/89 aplicada ao caso, a consolidação da propriedade plena pela extinção do usufruto não é considerada fato gerador do ITCD.2. Esse E. Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que a previsão contida no art. 14 do Decreto nº. 13.561/89 fere o princípio da legalidade, na medida em que prevê a incidência do ICD sobre fato não contemplado no rol do art. 1º da Lei Estadual nº. 10.260/89.3. A extinção do usufruto não pode constituir fato gerador do ITCD, eis que não implica na transmissão de qualquer bem ou direito, sob pena de afronta aos limites da competência tributária outorgada pelo art. 155, I, da Constituição de 1988.4. Recurso de apelação conhecido e improvido. Decisão Unânime”. (TJ-PE. Apelação 375667-20027881-47.2013.8.17.0001. Rel. Fernando Cerqueira Norberto dos Santos. 1ª Câmara de Direito Público, DJe 28/08/2015)

Uma interpretação constitucionalmente adequada é aquela que reconhece que, na ausência de transmissão, inexiste fato gerador para cobrança de ICD. A consolidação do domínio na pessoa do proprietário por falecimento do usufrutuário, portanto, não deveria ser tratada como fato gerador de ICD.

A despeito das boas práticas, alguns Estados preferem cobrar ICD em caso de morte do usufrutuário, em afronta explícita à Constituição da República. É lamentável esse tipo de prática, que é recorrente, diga-se, por parte do poder público.

A percepção de um sistema tributário injusto ou arbitrário desestimula o cumprimento voluntário das obrigações fiscais, aumenta a resistência social ao pagamento de tributos, mina a confiança dos cidadãos e compromete, em última análise, a própria legitimidade do sistema fiscal.

 

[1] “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;

…”

[2] Recurso Extraordinário nº 236.931, Rel. Min. Ilmar Galvão, Primeira Turma, dj 29.10.1999; e Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 208.059, Rel. Min. Néri da Silveira, Segunda Turma, 19.4.2002.

[3] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 10ª edição. Forense, 1981, p.444.

[4] CHAVES DE FARIAS, Cristiano. Curso de Direito Civil. 14ª edição. Salvador: Jus Podium, 2018,. p.273

[5] CHAVES DE FARIAS, Cristiano. Curso de Direito Civil. 14ª edição. Salvador: Jus Podium, 2018, p. 312.

[6] “Art. 1.399. O usufrutuário pode usufruir em pessoa, ou mediante arrendamento, o prédio, mas não mudar-lhe a destinação econômica, sem expressa autorização do proprietário”.

“Art. 1.401. O usufrutuário que não quiser ou não puder dar caução suficiente perderá o direito de administrar o usufruto; e, neste caso, os bens serão administrados pelo proprietário, que ficará obrigado, mediante caução, a entregar ao usufrutuário o rendimento deles, deduzidas as despesas de administração, entre as quais se incluirá a quantia fixada pelo juiz como remuneração do administrador.

“Art. 1.406. O usufrutuário é obrigado a dar ciência ao dono de qualquer lesão produzida contra a posse da coisa, ou os direitos deste”.

[7] BESSONE, Darcy. Direitos reais. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 77.

[8] Não se analisa a elasticidade da propriedade em casos como de servidão ou de laje. No primeiro caso porque a servidão existe em benefício de um outro imóvel, e não de pessoa, sendo ainda, de regra, permanente. É uma carga estática vinculada ao imóvel serviente. A laje, por sua vez, constitui um novo imóvel, não retirando uso ou gozo do imóvel que se mantém com o proprietário.

[9] “Art. 1.393. Não se pode transferir o usufruto por alienação; mas o seu exercício pode ceder-se por título gratuito ou oneroso”.

[10] idem

[11] “Art. 1.410. O usufruto extingue-se, cancelando-se o registro no Cartório de Registro de Imóveis:

I – pela renúncia ou morte do usufrutuário;

…”

[12] “Artigo 19. Nas transmissões “inter vivos” em que houver reserva em favor do transmitente do usufruto, uso ou habitação sobre o imóvel, o imposto será recolhido na seguinte conformidade:

… (omissis)

II – por ocasião da consolidação da propriedade plena, na pessoa do nu-proprietário, sobre o valor do usufruto, uso ou habitação”.

[13] “Artigo 31 – O imposto será recolhido:

II – na doação:

c) nos momentos indicados no § 3º, se houver reserva do usufruto, do uso ou da habitação sobre o bem, em favor do doador;

2 – por ocasião da consolidação da propriedade plena, na pessoa do nu-proprietário, sobre o valor do usufruto, uso ou habitação;

…”

[14] “Art. 6º Nas hipóteses a seguir mencionadas, a base de cálculo do imposto é reduzida, correspondendo à fração respectivamente indicada do valor venal do bem:

… (omissis)

V – na extinção do usufruto, quando o nu-proprietário não tenha sido o instituidor: 1/3 (um terço)”.

Fonte: Conjur

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