Nesta primeira coluna de 2025 gostaria de tratar de um tema sobre o qual tenho refletido há bastante tempo e que entendo ser importantíssimo para que consigamos um ambiente de maior estabilidade e segurança em matéria tributária. Considerando o contexto reformista em que vivemos e as mudanças que estão sendo implementadas em diversas áreas da tributação, a provocação que trago neste texto, se não pode mudar o passado, pode fazer com que tenhamos melhoras significativas no futuro.
Um tema recorrente em minhas provocações acadêmicas é a necessidade de os estudiosos e operadores do Direito Tributário compreenderem a importância da interpretação/aplicação da legislação tributária pelos órgãos de aplicação do Direito. A teoria tributária brasileira se desenvolveu sobre pilares de deificação da atividade do legislador, como se a segurança jurídica pudesse ser alcançada mediante o enclausuramento da realidade em textos normativos. Daí a insistência nos dogmas da legalidade estrita e da tipicidade cerrada. [1]
A realidade, contudo, se impõe. Por mais bem redigido que seja um texto normativo, havendo controvérsias sobre a sua interpretação, serão os órgãos de aplicação que lhe darão contornos mais nítidos e, ainda assim, provisórios, podendo ser alterados com a passagem do tempo.
Não é o propósito deste texto insistir nessas questões e no equívoco do nosso desprezo pelo sistema de solução de controvérsias, em benefício do Direito Tributário material. É só vermos o que se passou na reforma tributária. Somente após a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023 é que passamos a pensar com um pouco mais de seriedade sobre como estabelecer um sistema de solução de controvérsias para os novos tributos e, ainda hoje, esse debate está muito atrasado quando comparado ao tanto que se falou sobre IBS, CBS e até mesmo sobre o Imposto Seletivo.
O objetivo desta coluna é muito mais modesto: chamar a atenção dos julgadores e julgadoras para a necessidade de autocontenção e para o que podemos chamar de princípio da instrumentalidade decisória, com o que queremos nos referir à necessidade de que a fundamentação das decisões em processos tributários (1) se atenha ao necessário para a solução da situação concreta posta à análise do órgão de aplicação do Direito; e (2) evite, o máximo quanto possível a referência a teorias, doutrinas e fundamentos secundários que não só coloquem em xeque a autoridade da decisão, mas contribuam para um ambiente de insegurança jurídica.
A hipótese deste texto é a seguinte: as decisões, administrativas e judiciais, são cada vez mais relevantes como fonte do Direito Tributário, sendo que muitas vezes elas geram insegurança jurídica muito mais em razão dos seus fundamentos do que da decisão em si.
Vamos apresentar, adiante, alguns exemplos de situações como esta a que estamos nos referindo, considerando decisões do STF (Supremo Tribunal Federal), do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). Vejamos:
Suposta ‘flexibilização’ da legalidade segundo o STF
As decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) são objeto de muitas críticas, algumas razoáveis, outras nem tão razoáveis. De toda forma, cremos que muitas vezes a crítica decorre da fundamentação utilizada, ou é agravada por ela, e nem tanto pela decisão em si.
Em 2020, o STF concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 1.043.313, com repercussão geral reconhecida (Tema 939), cujo objeto era a análise da constitucionalidade do Decreto nº 8.426/2015, o qual, se valendo da competência delegada pelo § 2º do artigo 27 da Lei nº 10.865/2004, havia restabelecido parcialmente as alíquotas da Contribuição do PIS e da Cofins no regime não cumulativo incidentes sobre receitas financeiras.
A questão de fundo, portanto, referia-se (1) à possibilidade jurídica de delegação legislativa em matéria tributária, para além das situações expressamente previstas no § 1º do artigo 153 da Constituição Federal; e (2) em se entendendo possível a delegação legislativa nesses casos, à verificação da constitucionalidade da delegação prevista no § 2º do artigo 27 da Lei nº 10.865/2004.
Ora, concluindo-se que não há na Constituição restrições à delegação legislativa em matéria tributária, como temos sustentado, a conclusão seria no sentido de que o Decreto nº 8.426/2015 seria constitucional. Fim da história. Contudo, não foi essa a abordagem da Suprema Corte, chegando a se mencionar na própria tese de repercussão geral que o que se estava fazendo, no caso, era uma “flexibilização da legalidade tributária”. Em textual:
“É constitucional a flexibilização da legalidade tributária constante do § 2º do artigo 27 da Lei nº 10.865/04, no que permitiu ao Poder Executivo, prevendo as condições e fixando os tetos, reduzir e restabelecer as alíquotas da contribuição ao PIS e da Cofins incidentes sobre as receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime não cumulativo, estando presente o desenvolvimento de função extrafiscal.” (destaque nosso)
Era absolutamente desnecessário para a decisão do caso concreto que se fizesse referência a uma suposta flexibilização da legalidade tributária — que, diga-se de passagem, não existiu. Está implícito na fundamentação dessa decisão, transplantada para a tese de repercussão geral, que existia um tipo de legalidade “plena” e que ela estava sendo “flexibilizada” para se tornar uma legalidade “suficiente”, “bastante”, “possível”.
Não surpreende que essa decisão tenha sido alvo de tantas críticas, ou mesmo que tenha sido referida como uma espécie de ponto de inflexão das garantias e liberdades fundamentais dos contribuintes, como se o STF tivesse deliberadamente e intencionalmente reduzindo a amplitude da proteção que havia sido garantida pela Constituição aos contribuintes. Uma fundamentação mais contida e focada no ponto controvertido — ao invés de uma suposta superação parcial da legalidade tributária — certamente teria causado menos ruídos em relação a essa decisão.
Casos de ágio e aplicação da Teoria do Abuso de Direito pelo STJ
Recente decisão do STJ nos dá um outro exemplo da situação que descrevemos acima:
Um dos temas mais debatidos do Direito Tributário contemporâneo é a amortização fiscal do ágio pago na aquisição de participação societária no período anterior à vigência da Lei nº 12.973/2014. Essa matéria foi objeto de recentes decisões da Primeira e da Segunda Turmas do STJ. Sobre a decisão da 1ª Turma, apresentamos breves comentários em uma coluna anterior (aqui). O foco de nossas considerações adiante será a decisão da 2ª (Recurso Especial – RESP nº 2.152.642).
É importante ressaltar que não pretendemos analisar o caso em si. Nosso foco está alinhado com o objetivo proposto para este texto, que é ponderar sobre a fundamentação de decisões proferidas sobre controvérsias tributárias.
Ao examinar o voto condutor da decisão no REsp nº 2.152.642, verificaremos que ele teve como “premissa estabelecida na origem de que a operação societária promovida pela recorrida de fato teve por objeto a criação de pessoa jurídica sem correspondência econômica no mundo real, apenas para servir de transmissora de ágio meramente contábil no contexto de incorporação reversa, viabilizando a posterior dedução das bases tributáveis”.
Se essa é a premissa de fato, que estamos diante de uma estrutura artificial na qual não existe suporte fático para as transações formalizadas pelo contribuinte; trata-se do simples reconhecimento de uma simulação que a doutrina tributária, ao longo de décadas e de forma uníssona, reconheceu como um limite entre a economia tributária legítima e a ilegítima. Inclusive, esse caso apresentou uma excelente oportunidade para se avançar numa concretização judicial do conceito de simulação em matéria tributária.
Nessa linha de ideias, se a premissa adotada foi a da artificialidade — e não estamos concordando com a premissa, nem discordando dela, estamos apenas estabelecendo que esse foi o ponto de partida da decisão — a solução da controvérsia se teria dado, simplesmente, pela aplicação das regras sobre simulação, inclusive o artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional.
Nada obstante, a leitura já da ementa indica que a decisão do STJ apontou para uma direção bem distinta. Ao invés de uma interpretação que geraria baixo ruído comunicacional, a fundamentação utilizada abandonou a simulação para se apegar ao controverso conceito de abuso de direito, que a doutrina brasileira majoritária rejeita como limite da economia tributária legítima, sustentando uma aplicação direta de dispositivo do Código Civil que jamais foi pensado como instrumento de controle de planejamento tributário e gerando ruído não pela decisão em si, mas pela fundamentação utilizada.
Note-se que o nosso propósito não é interditar o debate de temas complexos. É bastante possível que existam casos envolvendo planejamento tributário nos quais questões complexas como o abuso do direito de economia tributária e a fraude à lei em matéria fiscal sejam meios necessários para se alcançar uma decisão. Contudo, na maioria esmagadora dos casos não será necessário se fazer uso de tais institutos de Direito Privado.
Decisões sobre planejamento tributário do Carf
Vamos encontrar a mesma situação em algumas decisões do Carf, principalmente em casos de planejamento tributário. É possível apontar o uso indiscriminado de referências à “falta de propósito negocial” ao “abuso de direito” à “fraude à lei” e, em alguns casos, à existência de um “dever fundamental de pagar tributos” ou até mesmo ao “princípio da solidariedade, como alguns dos principais focos de crítica às decisões do Carf em relação a essa matéria.
Contudo, no mais das vezes nota-se que o ponto de partida da decisão é a existência de incongruência entre a forma jurídica e a realidade fática, o que configuraria uma simulação. Uma preocupação maior com uma fundamentação menos “criativa” certamente teria poupado o Carf de muitas críticas sobre suas decisões. Afinal, quando se afasta uma simulação justificando a decisão pela “falta de propósito negocial” o foco da análise migra dos fatos do caso para a fundamentação que foi utilizada.
Mais grave ainda é a referência, em decisões sobre planejamento tributário, ao “dever fundamental de pagar tributos” ou à solidariedade. Em um caso de planejamento tributário, se for necessário o recurso a esses argumentos é sinal de que a autuação fiscal carece de fundamento legal. Não nos parece possível imaginar uma situação sequer em que a manutenção de um auto de infração decorrente de uma simulação dependa desses argumentos, [2] e eles certamente geram ruídos comunicacionais graves.
Conclusão
A relevância evidente dos órgãos de aplicação do Direito na construção do Direito Tributário deve impor uma maior responsabilidade àqueles que exercem a função decisória. Não se trata apenas de resolver casos concretos. Cada decisão, cada voto, são contribuições para a construção do Sistema Tributário Nacional. Se a lei não pode oferecer a segurança jurídica que muitos dela esperam, que os julgadores compreendam a sua importância na construção de um ambiente de previsibilidade e estabilidade do Direito Tributário.
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[1] Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. Da Lei à Decisão: A Segurança Jurídica Possível na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 7-51.
[2] Ver: ROCHA, Sergio André Rocha. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 3 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2023. p. 110-115.
Fonte: Conjur
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