Por estarmos em um momento de reforma tributária e de mudanças no cálculo do ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos), há na sociedade e nas famílias empresárias uma busca intensa pela realização de projetos de planejamento patrimonial e sucessório em território brasileiro para mitigar os impactos tributários enquanto as alíquotas vigentes permanecem aplicáveis [1].
Dentro desses projetos, um tema que ocasiona discussões é o alcance da cláusula de impenhorabilidade, prevista no artigo 1.911 do Código Civil [2]. O mecanismo é amplamente utilizado no Brasil como uma alternativa destinada a proteger bens de herdeiros ou donatários contra constrições judiciais relacionadas a dívidas. Essa ferramenta permite que o instituidor de um testamento ou doação imponha uma restrição sobre o bem, garantindo sua preservação ao longo do tempo.
No entanto, essa proteção encontra limites quando confrontada com outros dispositivos legais, especialmente no contexto da desconsideração da personalidade jurídica, regulada pelo artigo 50 do Código Civil [3], que é aplicada excepcionalmente para atingir bens que, embora formalmente protegidos, estejam sendo utilizados de maneira abusiva para fraudar credores ou desviar-se de sua função social.
A desconsideração da personalidade jurídica permite ultrapassar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica quando há evidências de práticas como: desvio de finalidade — caracterizado pelo uso da personalidade jurídica para fins distintos dos previstos originalmente, como ocultação de bens ou frustração de créditos — e confusão patrimonial entre os bens pessoais e os bens da pessoa jurídica.
Além dos limites previstos em lei, é essencial tratarmos do entendimento jurisprudencial acerca do tema, uma vez que isso deve nos pautar no momento de efetuar o planejamento.
Recentes decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) têm evidenciado a necessidade de conciliar os direitos de proteção patrimonial com o dever de garantir que credores não sejam prejudicados por planejamentos abusivos.
O conflito entre impenhorabilidade e desconsideração da personalidade jurídica
A questão central surge quando a cláusula de impenhorabilidade, tradicionalmente vista como uma ferramenta legítima de planejamento patrimonial e sucessório, é utilizada com o intuito de frustrar execuções judiciais, sob o argumento de que o bem protegido seria impenhorável.
Nesse contexto, o TJ-SP tem reafirmado a prevalência dos princípios da boa-fé (artigo 422 do Código Civil) e da função social da propriedade (artigo 5º, XXIII, da Constituição), analisando caso a caso a intenção por trás da criação da cláusula e, em algumas situações, relativizam a sua eficácia nos planejamentos sucessórios realizados, autorizando a desconsideração da personalidade jurídica com fulcro no artigo 50 do Código Civil, quando a autonomia patrimonial da empresa é utilizada para fraudar credores ou desviar bens de sua função social.
Planejamento patrimonial e os limites jurídicos
Embora a autonomia privada seja um princípio fundamental do direito privado, as recentes decisões mostram que ela não pode ser utilizada para “blindar” bens de forma indiscriminada, especialmente quando há indícios de abuso de direito, nos termos do artigo 187 do Código Civil [4]. Assim, quando uma cláusula de impenhorabilidade é utilizada com o objetivo exclusivo de frustrar credores em situações de inadimplência previsível, o TJ-SP tem deixado claro que tal prática pode ser considerada um ato ilícito.
Um exemplo recente e emblemático foi o analisado no incidente de desconsideração da personalidade jurídica (Agravo de Instrumento.º 2100150-52.2023.8.26.0000), julgado pela 13ª Câmara de Direito Privado do TJSP, que revelou, até o momento, um cenário de abuso.
No caso que ganhou notoriedade ao final de 2024, identificou-se a criação de uma holding familiar para concentrar bens de uma empresa em situação de insolvência, na situação de devedora, enquanto os sócios continuavam utilizando os ativos em benefício próprio, caracterizando, portanto, confusão patrimonial. Outro aspecto relevante apontado é que, mesmo quando as transferências patrimoniais são realizadas antes da formalização da dívida, isso não exclui a possibilidade de configuração de abuso da personalidade jurídica [5].
A prática do caso acima foi combatida com base no supracitado artigo 50 do Código Civil, que permite a desconsideração da personalidade jurídica em situações de desvio de finalidade e confusão patrimonial.
Essa interpretação jurisprudencial reforça a necessidade de transparência e adequação do planejamento patrimonial às exigências legais e éticas, além de constituir, inegavelmente, um alerta para a utilização das holdings e as expectativas do cliente no momento de contratar o planejamento patrimonial.
Por que é importante alinhar expectativas sobre planejamento patrimonial ético?
Diante do cenário apresentado no campo jurisprudencial, pode-se concluir que as recentes decisões judiciais apontam para a importância de um planejamento patrimonial que respeite, simultaneamente, as formalidades legais e os valores e princípios que sustentam o ordenamento jurídico brasileiro.
É papel do advogado especializado estruturar a cláusula de impenhorabilidade de forma legítima, assim como um planejamento patrimonial e sucessório efetivo, além de informar ao cliente sobre os limites desse mecanismo. Qualquer desvio pode comprometer não apenas a validade do planejamento, mas também a eficiência tributária, a redução de custos sucessórios e a proteção do patrimônio, expondo os bens à penhora, mesmo quando a cláusula esteja formalmente instituída.
Além disso, não se pode ignorar os impactos econômicos que a ampliação das hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica pode gerar. A previsibilidade jurídica é um elemento indispensável para empresários e investidores que buscam proteção patrimonial legítima. Isso reforça a necessidade de decisões judiciais criteriosas, que não restrinjam indevidamente a autonomia dos indivíduos ao utilizarem a cláusula de impenhorabilidade como um direito legítimo.
É importante que o Judiciário siga desenvolvendo critérios objetivos para distinguir planejamentos legítimos de práticas abusivas. A análise deve considerar tanto a forma quanto o conteúdo dos atos. A transparência e a boa-fé precisam ser o norte para evitar que cláusulas protetivas sejam questionadas indevidamente, o que corrobora para a insegurança jurídica e econômica do país.
As recentes decisões do TJ-SP sobre a cláusula de impenhorabilidade e a desconsideração da personalidade jurídica representam um marco na busca pelo equilíbrio entre a proteção patrimonial e os direitos dos credores, uma batalha que não se encerrará.
A utilização responsável e criteriosa dessa ferramenta deve ser uma prioridade para advogados e empresários, garantindo que o planejamento sucessório e patrimonial atenda tanto aos interesses individuais quanto aos princípios de justiça e função social do direito brasileiro.
[1] https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2024/12/26/mudancas-no-calculo-do-itcmd-provocam-corrida-por-planejamentos-sucessorios.ghtml Acesso em 06 de janeiro de 2024.
[2] Art. 1.911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade.
Parágrafo único. No caso de desapropriação de bens clausulados, ou de sua alienação, por conveniência econômica do donatário ou do herdeiro, mediante autorização judicial, o produto da venda converter-se-á em outros bens, sobre os quais incidirão as restrições apostas aos primeiros.
[3] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.
[4] Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
[5] Conforme trecho do Acórdão proferido no Agravo de Instrumento nº 2100150-52.2023.8.26.0000, pelo Relator Desembargador Simões de Almeida: “Razão assiste ao recorrente ao argumentar que o critério cronológico não é, por si só, impeditivo. Desde que comprovados os requisitos de confusão patrimonial e desvio de finalidade nos atos anteriores em que houve disposição patrimonial pelo genitor em favor dos filhos ou de holding familiar, com o intuito de fraudar credores.’
Fonte: Conjur
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