A incorporação imobiliária, atividade fundamental para o desenvolvimento urbano brasileiro, apresenta desafios regulatórios desde sua consolidação como setor estruturado. A falência da Encol, em 1999, marcou um divisor de águas, expondo não apenas a fragilidade financeira das empresas do ramo, mas também a desproteção de mais de 42 mil famílias que adquiriram unidades habitacionais não entregues. O caso Encol mostrou como “a ausência de regulação robusta sobre o incorporador imobiliário gerou uma crise de confiança no mercado e afetou profundamente a segurança jurídica dos adquirentes”. Este artigo examina as respostas legislativas e as consequências jurídicas dessa crise, com ênfase nos institutos introduzidos após o já referido caso Encol e sua relevância para as relações contratuais.
Responsabilidade civil do incorporador imobiliário
Evolução histórica
No início do século 20, a figura do incorporador imobiliário era inexistente no ordenamento jurídico brasileiro. Conforme destacado, “a ausência de normatização favorecia um cenário de insegurança para os adquirentes, que frequentemente firmavam contratos sem qualquer garantia real sobre o cumprimento das obrigações do incorporador”. Segundo Pontes de Miranda, a incorporação caracteriza-se como “um emaranhado de atos e obrigações recíprocas”, evidenciando a complexidade intrínseca desse negócio, que só viria a ser regulamentado com a Lei 4.591/1964.
A Lei 4.591/1964 definiu formalmente a figura do incorporador, delineando suas obrigações, como a entrega das unidades nas condições pactuadas. Conforme disposto no artigo 29, “considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica […] que coordena e leva a termo a incorporação e responsabiliza-se pela entrega das obras concluídas”. Além disso, Caio Mário da Silva Pereira enfatiza que “a figura do incorporador passou de um conceito abstrato para uma categoria jurídica essencial ao setor imobiliário”.
Com o advento do Código Civil de 2002, houve um avanço significativo na responsabilidade civil do incorporador. O artigo 927, parágrafo único, estabelece que “haverá obrigatoriedade de reparação, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. Rui Stoco observa que “esse regime fortalece a posição da vítima, priorizando a reparação do dano e diminuindo as dificuldades de prova do consumidor”.
A proteção do CDC
A promulgação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), em 1990, representou um marco na proteção dos consumidores. O artigo 2º do CDC reconhece o adquirente como consumidor final, enquanto o artigo 3º enquadra o incorporador como fornecedor de serviços. Como destacado, “a responsabilidade objetiva do fornecedor, prevista nos artigos 12 e 14, revolucionou a proteção contratual, reduzindo a desigualdade entre as partes”.
Paulo de Tarso Sanseverino analisa que “o CDC vai além da simples regulação contratual, ampliando o escopo da responsabilidade civil e promovendo a reparação integral dos danos causados”. Nos contratos de incorporação, a inversão do ônus da prova e a teoria do risco são mecanismos fundamentais para equilibrar a relação entre as partes.
Patrimônio de afetação
Conceito e objetivo
Instituído pela Lei 10.931/2004, o patrimônio de afetação tem como objetivo segregar os bens vinculados ao empreendimento imobiliário do restante do patrimônio do incorporador. Segundo Melhim Namem Chalhub, “trata-se de um mecanismo de proteção patrimonial que impede que os recursos destinados à obra sejam utilizados para quitar dívidas alheias ao projeto”.
A lei permite que os adquirentes tenham prioridade no ressarcimento em caso de falência do incorporador. O regime de afetação também proporciona maior transparência financeira, uma vez que “os recursos vinculados ao empreendimento não podem ser utilizados para outros fins”. Chalhub enfatiza que “o patrimônio de afetação fortalece a confiança no mercado imobiliário ao assegurar que os interesses dos adquirentes sejam protegidos”.
Impactos práticos
Embora o regime de afetação tenha trazido avanços, sua adesão é facultativa, o que limita seu alcance. Hercules Agharian ressalta que “a eficácia do regime depende da fiscalização estatal e do engajamento dos adquirentes”. A Lei 10.931/2004 também estabeleceu incentivos fiscais para incorporações afetadas, como alíquotas reduzidas de tributação, promovendo a adoção voluntária do modelo.
O caso Encol e a nova legislação
Análise jurídica
A falência da Encol evidenciou a ausência de mecanismos eficazes para proteger os adquirentes. Sob a legislação atual, o Patrimônio de Afetação teria evitado que milhares de famílias ficassem desamparadas. Como analisado, “a Lei de Falências de 2005 complementa essa proteção ao permitir a continuidade das obras por associações de adquirentes, garantindo a conclusão do empreendimento”.
O cotejo jurisprudencial reforça a responsabilidade solidária entre incorporadores e construtores. Em decisão do STJ (Resp 1989/0012020-4), foi reconhecido que “o incorporador responde pelos danos estruturais de obras não entregues, mesmo quando delega a execução a terceiros”.
Perspectiva atual
Embora avanços tenham sido alcançados, a legislação ainda carece de ajustes. A obrigatoriedade do Patrimônio de Afetação, defendida por doutrinadores como Chalhub, é essencial para garantir maior proteção aos adquirentes. Além disso, “a educação do consumidor e a ampliação da fiscalização são fundamentais para prevenir crises semelhantes ao caso Encol”.
Conclusão
A incorporação imobiliária no Brasil evoluiu consideravelmente após o caso Encol, mas desafios estruturais persistem. O fortalecimento do patrimônio de afetação e a aplicação consistente do CDC são cruciais para proteger os adquirentes e restaurar a confiança no mercado. Ademais, é necessário um esforço conjunto entre legisladores, órgãos de fiscalização e as partes envolvidas nos empreendimentos imobiliários para consolidar um ambiente mais justo e equilibrado. A obrigatoriedade do regime de afetação surge como uma medida indispensável, ao lado de incentivos que promovam a adesão voluntária.
Por fim, a experiência brasileira com o caso Encol deve servir como aprendizado para evitar a repetição de erros históricos. A evolução das normas deve ser acompanhada de práticas empresariais éticas e de uma vigilância contínua das instituições, de forma a garantir que o direito à moradia seja respeitado e assegurado como elemento essencial da dignidade da pessoa humana.
Referências bibliográficas
BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br.
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br.
BRASIL. Lei de Incorporações Imobiliárias. Lei n. 4.591, de 16 de dezembro de 1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br
BRASIL. Lei de Falências. Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br.
CHALHUB, Melhim Namem. Direito Imobiliário Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. IV. Contratos. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense.
SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Responsabilidade Civil no Código de Defesa do Consumidor e a Defesa do Fornecedor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.
STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.
Fonte: Conjur
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