Em setembro de 2024, foi entregue ao Congresso Nacional, depois de 180 dias de trabalho da comissão nomeada pelo Senado Federal1, o anteprojeto de revisão e atualização do Código Civil brasileiro. Na matéria de responsabilidade civil, pode-se dizer que houve vultosa modificação. Como referiu Gisela Sampaio Cruz no episódio 20 do podcast AASP Talks, o que de início era apenas uma atualização pontual, resultou em alterações de todos os arts. entre o 927 e o 954 e, utilizando-se a técnica de subdividir os artigos em sequência alfabética, houve aumento significativo do tratamento legislativo do tema2. Esse fato contrasta bastante com a forma ponderada da atualização do Código Civil francês, por exemplo, que levou 20 anos discutindo uma única modificação em matéria de responsabilidade civil3.
A subcomissão que tratou da responsabilidade civil apontou uma desatualização da matéria porque o atual Código Civil projetaria o Código Bevilaqua com pequenas alterações e tinha por base três justificativas principais: (1) estabelecer critérios objetivos para conter ilícitos e reparar danos, garantindo segurança jurídica e limitando a discricionariedade judicial; (2) consolidar de forma criteriosa as transformações da responsabilidade civil e reforçar sua centralidade no Direito Privado; (3) criar normas claras, considerando a tradição do civil law e a ausência de estabilidade em precedentes. Quanto à estrutura, seguia quatro eixos e aqui destacamos um, o de manter a função reparatória e o princípio da reparação integral, introduzindo funções preventivas e pedagógicas com parâmetros moderados para limitar o Poder Judicial. Do que se apropria das justificativas e do eixo destacado, se pretendia fixar critérios objetivos para guiar as decisões judiciais e, mantendo a reparação integral, ampliar as funções da responsabilidade civil para abarcar uma função preventiva e pedagógica, tudo isso porque a matéria estaria desatualizada, projetando disposições do início do século XX.
Refletindo sobre o tema e rememorando as inovações do atual código e as propostas do anteprojeto, nos parece que talvez tenha faltado a temperança dos franceses à comissão brasileira. Trazemos algumas ponderações.
Por primeiro, a responsabilidade civil do código seguiria os mesmos parâmetros postos no Código de 1916, demonstrando um anacronismo da lei? Nos parece que não ao analisarmos, por exemplo, a mudança do foco na culpa como fator de imputação soberano para a responsabilidade objetiva como um novo modelo para a matéria, trazendo o risco como fator de imputação. No Código consolidado em 2002, pondera Tula Wesendonk (2009, p. 355)4, houve um afastamento da culpa como nexo de imputação e a responsabilidade civil passou a ser estruturada a partir de cláusulas gerais, o que traz responsabilidade ao intérprete para entender as mudanças como um novo modelo.
Para corroborar essa percepção, podemos citar alguns dispositivos do Código Reale que avançaram em relação ao anterior. Para começar, embora muito semelhante ao art. 159 do CC/16, o texto do art. 186 do Código de 2002 consagrou o dano como pressuposto da responsabilidade civil subjetiva apenas como uma troca da conjunção “ou” pela “e”5, além de inserir a importante alusão expressa ao dano moral. Já a inclusão do art. 187 foi uma inovação, trazendo para o texto legal uma ilicitude objetiva e que prescinde do dano. Nas duas hipóteses de ilicitude nos arts. 186 e 187, o legislador optou por cláusulas gerais, recurso técnico adotado nos códigos modernos que, ao lado de disposições casuísticas, inserem pontualmente tais cláusulas “intentando aliar segurança e flexibilidade” à legislação, como ensina Judith Martins-Costa6. E no caso do art. 187, por não estar vinculado ao dano7, permite sua aplicação para além da reparação civil. E na parte especial foi incluído um título dedicado à responsabilidade civil, que se inicia com o art. 927, que já indica leitura obrigatória em conjunto com as ilicitudes descritas na parte geral. Também reforça a ideia da responsabilidade independente de culpa, introduzindo o risco da atividade como nexo de imputação nos termos do disposto no parágrafo único do art. E o risco do produto para as relações civis, no art. 9318.
Assim, dessa brevíssima análise parece não haver obsolescência do Código de 2002. Passemos a analisar duas questões basilares da nossa tradição em responsabilidade civil: A reparação integral e a função da responsabilidade civil, cujas modificações do anteprojeto têm potencial para promover uma reviravolta na matéria, embora, em tese, não fosse o pretendido.
Mantido o caput do art. 944, em princípio, está mantida a regra de que a indenização equivale à extensão do dano. No entanto, há modificação importante com a substituição do parágrafo único para inclusão de um parágrafo primeiro. No parágrafo único do texto original constava que poderia o juiz reduzir, equitativamente, a indenização no caso de excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano. Mas o anteprojeto vai além, estende a possibilidade de redução, a critério do juízo, mesmo na responsabilidade objetiva, dessa forma o dano poderá não ser reparado de forma integral, considerando questões relativas à condição de necessidade do ofensor ou de quem dele dependa. Como bem pondera Tula Wesendonck, questões como essa, relativas à preservação do mínimo existencial, são mais afeitas à fase de execução da obrigação de indenizar9.
Outro ponto que evidencia uma mudança significativa na matéria de responsabilidade civil é a introdução, num texto legal, de uma função punitiva da reparação por danos extrapatrimoniais. Essa inserção se dá, de forma mais clara, no artigo 944-A, §3º, quando estabelece que (n)a indenização por danos extrapatrimoniais em favor da vítima, o juiz poderá incluir uma sanção pecuniária de caráter pedagógico, em casos de especial gravidade, havendo dolo ou culpa grave do agente causador do dano ou em hipóteses de reiteração de condutas danosas. Não surpreende que tal função tenha sido introduzida no texto do anteprojeto considerando que o jurista Nelson Rosenvald, o sub-relator da parte de Responsabilidade Civil na comissão que elaborou o anteprojeto de revisão e atualização do CC, é um reconhecido defensor de que a responsabilidade civil deveria ter também como função a punição de quem produziu o dano injusto. A doutrina deste autor10, com base em doutrina estrangeira, sobretudo italiana e francesa, advoga a necessidade de inserção no Direito brasileiro de penas civis e a atribui aos detratores da ideia certo preconceito. No entanto, na própria defesa de seu ponto de vista em seu livro sobre as funções da responsabilidade civil, Rosenvald deixa entrever que, para doutrina, essa teoria ainda não é majoritária. Assim, ainda que se respeite que o relator da subcomissão leve suas convicções à formulação do anteprojeto, a posição não-majoritária nos parece um motivo importante para que o tema fosse objeto de um debate mais amplo no meio doutrinário. Bem verdade que é comum na jurisprudência na fixação do quantum debeatur da indenização há reiterada alusão ao caráter pedagógico da responsabilidade civil, o que se confunde com uma função punitiva11. Porém, ainda que essa posição jurisprudencial tenha angariado adeptos, pontua Maria Celina Bodan de Moraes12, por ora não se constituiu em doutrina majoritária. Moraes pondera que, em nossa tradição jurídica, a ideia é extravagante, porquanto sempre vigorou a reparação como fim último da responsabilidade civil. E prossegue com outras objeções, entre elas: Como compreender o princípio da legalidade que consagra o ‘nulla poena sine lege’? Quais seriam os critérios ou parâmetros para fixação do valor além da compensação? Não haveria bis in idem uma vez que boa parte dos danos extrapatrimonais sujeitos a uma pena civil comportam também uma sanção criminal? Por último, Moraes defende que há algo que se assemelha ao caráter punitivo em matéria ambiental, como as multas previstas na lei 7.347/85, porém não se equipara com a função punitiva tal como propalada pelos defensores da função punitiva na responsabilidade civil. No caso ambiental, os valores são recolhidos a fundos especificados e não se destinam ao autor, mas em prol de um maior número de pessoas e destinadas a reconstituição dos bens lesados.
Nesse ponto, cabe ressaltar o papel da doutrina no Direito. Como afirma Martins-Costa, sua função seria de:
“[.] atuar como instância de orientação e reflexão produzida pelo conjunto de juristas aos quais é reconhecida, por seus pares, autoridade na formulação de modelos dogmáticos que servem para explicitar, confirmar, sistematizar, propor, e corrigir os modelos prescritivos (legais, jurisprudenciais, costumeiros, negociais) em vigor.”13
Numa observação inicial do texto do anteprojeto nos pontos destacados, parece que a doutrina, por meio da academia, merecia um espaço maior para um debate mais aprofundado.
Para além do que acima referido, algumas pretensões da própria comissão, não parecem ter sido atingidas, como estabelecer “firmes parâmetros de julgamento”. A inserção de excessivos conceitos indeterminados no texto, inclusive conceitos novos em nosso Direito, como situação de risco, ampliam as condições para extensas discussões judiciais e reclamam, mais uma vez, um maior debate doutrinário.
Há, assim, nos pontos examinados, verdadeira reforma quando o objetivo era realizar alterações pontuais com intuito de revisar e atualizar a legislação. Fica a dúvida se já teríamos, como pontua Rodotà, uma “cultura jurídica renovada, verdadeiro e único instrumento da reforma”14 para pretender implementar tantas mudanças. Já no Senado o trabalho da comissão, resta a comunidade jurídica ajustar sua discussão para poder opinar no decorrer do processo legislativo, momento não exatamente adequado, mas hoje único possível.
1 Ato do presidente do Senado Federal 11/23.
2 Disponível aqui.
3 Ver em: WESENDONCK, Tula. Lições deixadas pelo processo de reforma do Código Civil francês na disciplina de Responsabilidade Civil. Disponível aqui. Acesso em 15/1/25.
4 WESENDONCK, Tula. Transformações no sistema de ilicitudes no Código Civil de 2002. Revista Forense, v. 405, set/out 2009, p. 353-381.
5 Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, arts. 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553. (CC/16). Art. 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. (CC/02).
6 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 3ª edição. São Paulo: Saraiva jur. 2024.
7 WESENDONCK, Tula. Transformações no sistema de ilicitudes no código civil de 2002. Revista Forense, v. 405, set/out 2009, p. 365.
8 Referido artigo foi examinado por Tula Wesendonk em obra referente aos 18 anos do Código Civil de 2002 (2021), no qual aponta a autora que, embora uma inovação em nosso ordenamento jurídico, pois inaugurou a possibilidade de responsabilidade objetiva independente de relação de consumo, teve uma aplicação tímida e inadequada. Muitos consideram repetição da previsão de responsabilidade pelo fato do produto prevista no art. 12 do CDC, sendo considerado, inclusive, um artigo inútil, com o que discorda a autora, o que aqui não se analisará por fugir ao escopo do presente trabalho.
9 WESENDONCK, Tula. Inquietações sobre as propostas apresentadas pela comissão responsável pela revisão e atualização do Código Civil (CJCODCIVIL) na disciplina da responsabilidade civil. Mar/24. Disponível aqui. Acesso em 7/7/24.
10 Ver: ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 4ª ed. São Paulo: Saraiva-jur. E-book.
11 A título de exemplo
APELAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO, CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO INDEVIDA E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. NEGATIVA DE CONTRATAÇÃO. […]. 2. NÃO COMPROVADAA ORIGEM DA DÍVIDA, A INSCRIÇÃO INDEVIDA JUNTO AOS ÓRGÃOS RESTRITIVOS DE CRÉDITO É MOTIVO SUFICIENTE À CONFIGURAÇÃO DE LESÃO À PERSONALIDADE, POR SE TRATAR DE DANO MORAL IN RE IPSA, QUE PRESCINDE DE QUALQUER DEMONSTRAÇÃO ESPECÍFICA. 3. MANTIDO QUANTUM INDENIZATÓRIO FIXADO A ORIGEM EM R$ 6.000,00, PORQUANTO ESTÁ AQUÉM COM OS PARÂMETROS USUALMENTE UTILIZADOS EM DEMANDAS SÍMILES, CONSIDERANDO AS CARACTERÍSTICAS COMPENSATÓRIA E PEDAGÓGICA DA INDENIZAÇÃO. RECURSO DESPROVIDO, EM DECISÃO MONOCRÁTICA. (Apelação Cível, 50229009420238210010, Nona Câmara Cível, TJ/RS, Relator: Eduardo Kraemer, Julgado em: 25/8/24) Grifei.
12 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.218.
13 MARTINS-COSTA, Judith. Modelos de direito privado. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p.32.
14 RODOTÀ, Stefano. Ideologias e técnicas da reforma do direito civil. Trad. Eduardo Nunes de Souza. Civilistica.com, a. 13, 01, 2024, 26.
Fonte: Migalhas
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