Heleninha, microempresária, vive tranquilamente com sua loja até que boatos sobre a taxação do pix geram pânico, afetando pequenos negócios e usuários.

A Heleninha, microempresária de sucesso, tem uma loja de armarinhos em um bairro de São Paulo, onde vende aviamentos para costura e bordado e faz reforma de roupas. Ali trabalham ela, a filha e duas empregadas. Com o lucro da loja conseguem viver dignamente, podendo até mesmo fazerem cruzeiros nas férias, no sistema de revezamento. O pequeno estabelecimento, que ocupa uma antiga garagem que foi reformada, abre às 9h e fecha às 18h, nos sábados até as 13h, contando com uma freguesia fiel, já de algumas décadas. O negócio corre tranquilo, sem sobressaltos. Ou melhor, corria, até que recentemente se instalou um reinado do terror no Brasil, que afetou milhões de famílias e de micro e pequenas empresas – principalmente – usuários de pagamentos ou de transferências pelo pix.

Não nos preocupando aqui com os aspectos regulatórios correspondentes – que se revelam problemáticos – todos sabemos que o pix foi uma das maiores invenções financeiras recentes, tendo revolucionado o sistema de pagamento, especialmente por suas qualidades pela facilidade de acesso, pela pronta disponibilidade dos recursos que nele transitam e pela facilidade e pelo baixo custo direto para os usuários. O pix foi um sucesso extraordinário, quase instantâneo, que se transformou em um modelo internacional, motivo de orgulho dos brasileiros, na pessoa do nosso Banco Central do Brasil, o seu criador.

Vejam caros leitores, que são contados em muitos milhões os usuários do pix, espalhados por todo o país, muitos deles que têm nesse meio de pagamento – a par do dinheiro em espécie cada vez mais raro – o principal instrumento para o recebimento de valores inerentes aos produtos que vendem ou aos serviços que prestam. Pensem nos pequenos serviços prestados nas casas dos clientes, a manicure, o eletricista, o encanador. Pensem no dono da barraca de frutas situada na esquina da sua casa. Pensem até mesmo no vendedor de panos de prato, localizados nas portas de padarias e nas entradas de supermercados, que faz parte de uma economia marginal, mas que lhes permite obter uma renda de sobrevivência. E não é raro ver-se um pedinte atrás de uma esmola, indicando a sua chave do pix.

Esses micro usuários do pix não precisam (nem querem por causa dos custos) ter um cartão de crédito/débito. Basta que abram uma conta em uma fintech e que tenham um celular com acesso à internet, para que a sua vida financeira e profissional estejam administradas. Mas aí veio o grande terror.

Aqueles que conhecem um pouco da história da Revolução Francesa de 1789, se recordam que em dado momento do seu transcurso os presumidos inimigos daquela tiveram os seus direitos individuais suspensos, tendo se organizado uma verdadeira indústria da morte em massa, praticada diariamente na guilhotina. Entre milhares de vítimas foram contadas o Rei Luís XVI, a ex-rainha Maria Antonieta (aquela a quem durante a chamada Guerra da Farinha se atribui a declaração de que se não havia pão para os franceses comerem, que o trocassem pelo brioche) e até mesmo do grande químico Lavoisier, o criador da química moderna). A ironia da história está em que o terror se voltou mais tarde contra os terroristas, tendo uma grande parte deles seguido também para a guilhotina especialmente Robespierre, o seu grande inspirador.

O nosso atual grande terror teve como origem uma medida adotada pela Receita Federal com o objetivo de ampliar o rol de informações relacionado aos meios de pagamento, buscando dois alvos principais no plano da eficiência, o do combate à sonegação e da lavagem de dinheiro, que oculta a mais variada série de crimes. Não sendo necessário neste espaço entrar em detalhes, o normativo em questão não cuidava – e nem poderia fazê-lo por falta de competência legal – do aumento dos casos de tributação. Lembre-se um dos princípios fundamentais do Direito Tributário, como seja, o de que não se cobra impostos antes da promulgação de uma lei que os estabeleça. No fundo, permitida uma ilustração, a medida da Receita Federal objetivava tão somente colocar mais gente dentro do galinheiro para cercar e pegar as galinhas que ali já estavam. Sem galinhas novas, ou impostos novos.

A questão da lavagem de dinheiro está intimamente ligada ao crime organizado que cresce assustadoramente a cada dia, ocupando espaços até então jamais imaginados, como o acesso de representantes nas instituições do país. Aqui já se sabe de sua penetração no governo, no Judiciário e no Legislativo. Fato notório, exposto regularmente nos meio de comunicação. O garimpo ilegal no Brasil, ligado a organizações de traficantes, está pondo em risco até mesmo a soberania nacional pela ocupação de vastos territórios, como é o exemplo da Amazônia. Neste cenário é absolutamente essêncial que se possa contar com o máximo de meios destinados a identificar, a punir os agentes criminosos e a eliminar os efeitos dramáticos de sua atividade. E a proposta da Receita Federal que inclui o pix no seu observatório era um dos instrumentos de repente, senão quando, mais importantes.

Eis que, uma denúncia oportunista e infundada do deputado Nikolas Ferreira sobre alegada tributação das transferência pelo pix colocou o grande terror dentro do campo. O tema já vinha circulando nas redes sociais com baixa adesão, mas o vídeo postado por aquele, dada a sua grande rede de seguidores, com objetivos provavelmente políticos mediante a prática da desinformação, alcançou quase 300 milhões de visualizações em apenas dois dias, tendo estabelecido o caos.

Veja-se que, de acordo com Pablo Ortelado (blog.oglobo.globo.com/opinião), o vídeo acima citado se apoiou na imagem do governo Lula como taxador do pobre, a qual a direita vem construindo a partir da cobrança de episódios como da cobrança da taxa das blusinhas, sobre pequenas importações. Aduz que o timing foi perfeito, aproveitando todo o burburinho sobre a taxação do pix. Colou e pronto!

Nesse vídeo o autor teve o cuidado de dizer que o pix não seria taxado, mas que não duvidava que isso poderia ocorrer. E essa afirmação foi reforçada por posterior declaração sua no sentido de que “Não sou eu, o site da Receita Federal está dizendo, que poderia incluir os dados da movimentação do pix na declaração pré-preenchida do Imposto de Renda. Fica a pergunta: isso não é um claro indício de que a receita queria, no fim das contas, taxar os informais. A verdade salvou o Brasil” (publicado no seu perfil do Twitter no dia 16 próximo passado, depois da revogação da RFB 2219/24). O referido vídeo foi replicado por muitos outros influenciadores, com muitas distorções, semeando o grande terror.

Quando o terreno da desconfiança é fértil, a desinformação encontra um caminho aberto para germinar, crescer e se espalhar velozmente. E essa desconfiança quanto à sanha tributária do governo tem assumido níveis de quase certeza, propícios ao seu deslizamento avassalador barranco abaixo, que gerou milhões de reações contra o uso do pix, que caiu 15,29% nos primeiros dias deste ano, com sensível prejuízo para os usuários, prejudicados pela falta de alternativas. E não foram eficazes os desmentidos do governo quanto as acusações de tributação no tocante ao pix.

A reação do governo se deu por meio da expedição da MP 1.288, do dia 16 deste mês, cuja plena eficácia depende de aprovação pelo Congresso, sabendo-se que com ela mais uma vez é aberta mais uma vez, em uma larga avenida, a temporada dos jabotis. Não se entende que o problema tenha sido resolvido, ou pelo menos sensivelmente minorado, pela falta de credibilidade, uma vez que, segundo pesquisa Quaest a reação do Governo chegou a 88% da população, enquanto a falsa informação sobre o pix teve alcance muito maior. Por outro lado, problemas novos podem se revelar. Não adianta agora tentar mostrar que não havia perigo porque o governo ficou na situação daquela criança mentirosa que, depois de alertar falsamente que um lobo estava para atacar, ficou depois irremediavelmente desacreditada e o lobo fez a festa. E pode o governo contratar para mudar essa visão o publicitário mais competente do mundo porque ninguém convence qualquer comprador a adquirir rodas quadradas para o seu carro.

Comentários a respeito dessa MP tem sido no sentido de que ela foi fruto de covardia no enfrentamento ao inimigo, a par de se mostrar mais do mesmo. Ou seja, a norma da RF revogada não tratava de ilegal tributação dos pagamentos e transferências feitos por meio do pix, o que se manteve sem alteração. Vejamos.

Dispõe o art. 1º que o seu objetivo é o da adoção de medidas destinadas a ampliar e garantir a efetividade do sigilo e a não incidência de preço superior, valor ou encargo adicional sobre os pagamentos realizados por meio do pix, nada a ver com o problema em pauta. O preço adicional mencionado jamais poderia corresponder a algum imposto. Ao menos não se proibiu que o credor dê um desconto pelo uso daquele instrumento. Só faltaria essa mesmo!

No art. 2º a prática acima referida é considerada abusiva, sujeita às penalidades cabíveis.

E o art. 3º, este sim, dispõe que não há incidência de tributo, seja imposto ou contribuição pelo uso do pix. Mais uma vez, sem qualquer novidade.

As referências nessa MP sobre o sigilo não mudam as leis em vigor na sua essência. Mais do mesmo.

Ninguém ao que eu saiba trouxe até agora alguma contribuição, em toda essa discussão, sobre os fatos geradores de tributação no Brasil, cuja famélica e extensa lista pode ser encontrada por meio de consulta ao Wikipédia (Lista de Tributos no Brasil). Isto quer dizer que não houve mudança sensível desde Tiradentes até agora, parafraseando conhecido dito de Euclides da Cunha: o brasileiro é antes de tudo um contribuinte forçado, ou uma ilha cercada de impostos de todos os lados, claro. Fora dessa ilha, o mar está repleto dos mais vorazes tubarões. E tem de ser muito forte para aguentar toda a carga tributária insana que cai nas suas costas.

Ora, na lista acima citada não há qualquer previsão de imposto, genericamente falando, em cuja configuração pudesse ser agasalhado o pix. Sem lei, sem imposto, essa é a regra e não será uma medida administrativa que poderia alterar esse regime.

Final da história com moral, a firmeza, baseada na honestidade na verdade, pode demorar a fazer efeito bom. O fingimento mais tarde revela o mascarado, quando a máscara é retirada.

Fonte: Migalhas

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