O direito de propriedade é garantia constitucional expressa no artigo 5º, XXII, da Constituição de 1988. Tem como instrumento de salvaguarda e tutela o princípio da legalidade, que impede a criação de obrigações sem expressa previsão normativa.

No entanto, a prática administrativa frequentemente tem imposto interpretações que limitam indevidamente esse direito. É o caso da desaverbação de arrolamento de bens pela Receita Federal. Trata-se de problema que pode atormentar a vida negocial de qualquer um, sem que se tenha uma razão lógica ou operacional para a restrição.

O arrolamento de bens é mecanismo de controle fiscal previsto no artigo 64 da Lei nº 9.532/97. Diferentemente da penhora efetiva (o arrolamento não é penhora, bem entendido), o arrolamento apenas impõe ao contribuinte a obrigação de comunicar a Receita Federal a respeito de qualquer alienação ou oneração do bem eventualmente marcado como arrolado. O parágrafo 3º do referido artigo determina essa comunicação, mas não estabelece com nitidez meridiana que a comunicação deva ocorrer apenas após a alienação.

Há notícias de que cartórios de registro de imóveis têm criado entraves administrativos ao condicionar a desaverbação à prova da efetiva alienação, interpretando restritivamente a norma. Tal postura extrapola as fronteiras da função registral e impõe limites inconstitucionais ao direito de propriedade. Há notícias também de que o Judiciário, quando provocado a sanar eventual dúvida cartorial, em procedimento específico, tem entendido que esse não seria o caminho ordinário para a resolução do problema.

O contribuinte encontra-se desamparado. Não pode ajuizar ação contra a Receita Federal, porque não há negativa desta em desaverbar. A Receita nem pode fazê-lo, sua posição é passiva. Apenas recebe a comunicação. E há dúvidas sobre um enfrentamento aos cartórios, porquanto a reposta vem em forma de um postulado burocrático intransponível: o cartório alega (equivocadamente, pensamos) que aplica a lei. Quem sabe, o problema deveria ser enfrentado pelo Conselho Nacional de Justiça. Há um vazio interpretativo. E a segurança jurídica exige uma solução.

A exegese que condiciona a desaverbação à alienação do bem afronta diretamente o princípio da legalidade. Nos termos do artigo 5º, II, da Constituição, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Como a legislação não estabelece a necessidade de alienação prévia para a desaverbação, não cabe ao cartório de registro de imóveis fixar tal exigência. O prejudicado pergunta por que os cartórios não interpretam a lei de modo mais condizente com a vida negocial.

A jurisprudência tem reiteradamente entendido que o arrolamento de bens não equivale a indisponibilidade absoluta do bem afetado. É apenas um instrumento de fiscalização. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no julgamento do processo 5016979-85.2019.4.04.7000, fixou que “o arrolamento de bens não configura indisponibilidade, mas mero controle administrativo, cabendo ao contribuinte comunicar previamente a Receita Federal quanto à alienação”.

Portanto, o impedimento da desaverbação antes da alienação impõe restrição não prevista em lei, o que, em tese, poderia configurar abuso de poder por parte dos cartórios, ainda que, bem entendido, a linha de raciocínio cartorial possa ser uma estratégica para se evitar o embate com as autoridades fazendárias. Entende-se o temor do responsável pelo cartório, também afetado pela insegurança jurídica que domina o assunto. O responsável pelo cartório vive com uma permanente espada de Dâmocles sobre a cabeça: o Conselho Nacional de Justiça e as várias corregedorias.

Pensamos que a possibilidade de comunicar a Receita Federal previamente sobre a intenção de alienar o bem e obter a desaverbação do arrolamento provoca diversos benefícios. O comprador pode ter a certeza de que o imóvel está livre de impedimentos, evitando questionamentos futuros, o que qualifica e resulta em segurança jurídica apreciável.

Com a desaverbação prévia, evita-se a necessidade de novos trâmites burocráticos após a negociação. O Fisco permanece com seus interesses protegidos. Afinal, recebe a informação tempestivamente e pode acompanhar a transação de forma eficaz.

Deve-se ponderar que a alienação prévia preserva o valor de mercado do imóvel. O arrolamento indubitavelmente gera desvalorização indevida, prejudicando o proprietário na venda. Perguntamos ao leitor se comprariam um imóvel com restrição de averbação? O preço cai, o comprador foge.

A exigência imposta por cartórios para que a desaverbação do arrolamento ocorra apenas após a alienação, ao que consta, pode ser ilegal, dado que não há respaldo normativo para a fixação de entraves desnecessários que afetam ao direito de propriedade, nesse caso específico. A comunicação prévia ao Fisco é suficiente para garantir a transparência da transação sem violar os direitos do contribuinte. O Fisco que tome as providências que julgar necessárias. Nesse sentido, pode se valer de cautelares fiscais. Há um caminhão de prerrogativas que a lei outorga ao titular do crédito tributário.

Todos perdemos

A atuação dos cartórios deve ser pautada pela legalidade estrita, sem criar barreiras indevidas, sob pena de violação dos princípios da segurança jurídica, razoabilidade e eficiência administrativa. O cartório, não nos esqueçamos, é prestador de serviço público. Há uma interpretação formalista e irredutível que tem sacrificado o livre exercício do direito de propriedade aos cidadãos.

Esse é mais um problema que comprova a fragilidade de alguns de nossos arranjos institucionais. Todos perdem. O vendedor do imóvel perde porque terá que negociar por preço mais baixo. O cartório perde porque deixa de faturar com escrituras e averbamentos futuros. O Fisco perde porque deixa de recolher tributos, porque há uma diminuição do volume de transações.

É um problema de arranjos institucionais. Há necessidade de um ajuste. O caminho, pensamos, é uma provocação do CNJ ou uma busca de decisão judicial que dê estabilidade, inclusive (e talvez principalmente) para os cartórios.

O cenário é de absoluta insegurança jurídica. Direitos constitucionais são dissolvidos por nós burocráticos, por receio interpretativo e por uma equivocada concepção de que a comunicação da venda após o negócio possa proteger um imaginário crédito público que sequer foi constituído. Até porque, se crédito de fato houvesse, o Fisco iria direto para a penhora.

Da forma como a situação se encontra corrói-se a previsibilidade e a segurança dos negócios. Todos perdemos, na medida em que todos somos reféns de caprichos interpretativos e da precariedade na tomada de decisões.

Fonte: Conjur

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