I. Introdução

Recentemente, deparei-me com uma discussão jurídica interessante envolvendo transações comerciais entre empresas de um mesmo grupo econômico. Apesar de possuírem uma relação estreita, tratava-se de pessoas jurídicas distintas, cada uma com sua própria autonomia e personalidade jurídica.

No caso analisado, a empresa A vendia um produto para a empresa B, que, por sua vez, revendia esse mesmo produto para a empresa C. No entanto, por razões logísticas, a entrega era realizada diretamente da empresa A para a empresa C, sem que o bem passasse fisicamente pela empresa B.

Diante desse cenário, alguns alunos me questionaram se essa estrutura não configuraria um caso de simulação. Afinal, indagaram, por que a empresa A simplesmente não vendia diretamente para a empresa C? Não estaríamos diante de um negócio jurídico simulado entre A e B, considerando, especialmente, a estreita parceria entre essas empresas?

A resposta é negativa. Não há, nesse caso, qualquer indício de simulação. A dúvida, contudo, evidencia a importância de explicar corretamente os conceitos de contratos coligados e simulação.

II. a) Contrato

O contrato é acordo de duas ou mais partes para constituir, regular ou extinguir uma relação jurídica (direitos e obrigações) de caráter patrimonial, nos exatos moldes do art. 1.321 do Código Civil italiano. É a manifestação de duas ou mais vontades, objetivando criar, regulamentar, alterar e extinguir uma relação jurídica de caráter patrimonial. É por isso que Enzo Roppo afirma que o contrato é a veste jurídica de uma operação econômica.

Contrato e patrimônio estão umbilicalmente imbricados. A relação contratual nasce do acordo, a vontade na formação (sinalagma genético) e tem nos efeitos a expressão dessa vontade (sinalagma funcional).

II. b) Coligação contratual

b.1) Conceito de coligação e seus exemplos

A doutrina costuma classificar os contratos em simples, mistos ou coligados. Simples é o contrato que envolve um só negócio jurídico, em um único instrumento. Misto é o contrato que em um mesmo instrumento tem mais de um negócio jurídico (ex. contrato de locação e de fiança no mesmo instrumento).

Ser simples ou misto não afasta outra classificação. A da tipicidade. Contrato típico é o que tem nome e formatação legal1. Atípico é o contrato que nasce do acordo de vontades, mas não tem previsão legal que permita delineamento das prestações das partes de domo a torná-lo diferente de outros acordos de vontade. É por isso que o contrato built-to-suit é atípico. Se a lei de locação o menciona, o faz de maneira tão breve que não consegue delinear o contrato.2

Coligação contratual é algo mais complexo. Não se confunde com a categoria do contrato misto3.

A doutrina explica que na coligação, há duas ou mais espécies contratuais, unidas, entretanto, pela finalidade econômica unitária ou pela comunhão de uma operação unitária só. Essa distinção entre contratos, mantido algum tipo de nexo de vinculação entre eles, é o que caracteriza o fenômeno dos contratos coligados, também chamados de união de contratos. Também se pode chamar o fenômeno de cumulação de contratos.

Na coligação, não se resulta um contrato unitário. Os contratos coligados mantêm-se individualizados. Cada um dos contratos coligados não perde a individualidade, aplicando-lhes o conjunto de regras próprias do tipo a que se ajustam.

Um exemplo simples ajuda a compreender a coligação. Se temos um contrato com certa empresa de plano de saúde, essa empresa por sua vez tem contratos com os médicos credenciados, que por sua vez terão contratos com os clientes do plano de saúde que, ao utilizarem seus serviços, passam a ser também seus clientes. São três contratos que não se fundem em um único instrumento (por isso não são mistos), mas têm uma finalidade econômica unitária.

Nessa coligação existe desde a prestação de serviços entre paciente e clínica, outra relação entre paciente e operadora e uma terceira entre operadora e a clínica. Ao se fazer uso do plano, as três relações são atuadas de modo unitário, instantaneamente. Esse aspecto caracteriza a coligação. Assim, por exemplo, têm sido condenadas empresas de plano de saúde por má prestação de serviços dos profissionais que credencia, nada obstante não sejam parte na relação jurídica. A própria noção de parte se dinamiza, bem como a noção de terceiro.

Temos duas grandes famílias dos contratos conexos ou coligados segundo a doutrina:

b.2) As regras aplicáveis a cada tipo contratual que se coligou

A união de contratos apresenta-se, na classificação de Ennecerus, sob três formas: i) união meramente externa; ii) união com dependência; e iii) união alternativa.

i) União meramente externa. A união externa é simplesmente instrumental. Sem que haja interdependência entre os contratos, as partes os reúnem no mesmo instrumento, concluindo-os simultaneamente. Nesse caso, não há propriamente coligação de contratos, pois não se completam nem se excluem. A doutrina dá como exemplo o fazendeiro que vende 100 cabeças de boi e no mesmo instrumento arrenda parte de suas terras.

Qual a regra que aplico nessa hipótese? Aquela prevista em lei para cada tipo contratual, porque não há interdependência.

ii) União com dependência. A união com dependência é a figura que mais se aproxima do contrato misto. Os contratos coligados são queridos pelas partes contratantes como um todo. Um depende do outro de tal modo que cada qual, isoladamente, seria desinteressante, contudo, não se fundem. Conservam a individualidade própria, por isso se distinguindo dos contratos mistos. São três as hipóteses de dependência.

ii.1) União com dependência recíproca ou bilateral
Dois contratos completos, embora autônomos, condicionam-se reciprocamente, em sua existência e validade. Cada qual é causa do outro, formando uma unidade econômica. Enfim, a intenção das partes é que não exista um sem o outro. É a verdadeira coligação. A coligação dos contratos com dependência recíproca pode ser necessária ou voluntária.

A coligação necessária, também chamada genética, é imposta pela lei, como a que existe entre contrato de transporte aéreo e o de seguro do passageiro.

Quando decorre da vontade dos interessados, como se verifica ordinariamente, diz-se voluntária. Visto que nessa união de contratos há reciprocidade, os dois se extinguem ao mesmo tempo; a dissolução de um implica a do outro. Um bom exemplo é a concessão de marca com distribuição de produtos em certas hipóteses de franquia.

Como os contratos permanecem, no entanto, individualizados, o condicionamento de um ao outro não constitui obstáculo à aplicação das regras peculiares a cada qual.

ii.2) União com dependência unilateral
A união com dependência unilateral verifica-se quando não há reciprocidade. Um só dos contratos é que depende do outro. Tal coligação requer a subordinação de um contrato a outro, na sua existência e validade. É a famosa relação de acessoriedade. Exemplos corriqueiros são o contrato de mútuo com garantia hipotecária ou a locação garantida pela fiança.

Aqui a lógica se mantém, como os contratos permanecem, no entanto, individualizados, o condicionamento de um ao outro não constitui obstáculo à aplicação das regras peculiares a cada qual.

iii) União alternativa
A união de contratos configura-se também por forma alternativa. Dois contratos são previstos para que subsista um ou outro, realizada determinada condição. Um exclui o outro, quando a condição se verifica. Embora unidos, não se completam como na união com dependência; antes, se excluem. Na união alternativa, aplica-se o direito relativo ao contrato subsistente.

O que se verifica no caso em que discutir é exatamente isso. Uma rede ou coligação contratual, na qual os dois contratos dependem, reciprocamente, um do outro para existirem. A intenção das partes é que não exista um sem o outro.

III. a) Simulação

Vejamos, então, de maneira técnica e conceitual, a partir da dogmática, o que é simulação. Segundo Pontes de Miranda, “Simular vem de simular, advérbio, com o sentido de fingir ser, ou de se aparentar o que não se é, ao passo que semelhar, semelhança, assimilar, derivam de similis, adjetivo. Alguém, que se assemelha a outrem, nada faz para isso: a relação entre os dois é objetiva. Quem simula, ou quem dissimula, faz por aparentar, ou por encobrir”4

Há uma grande confusão sobre o conceito de simulação quando de sua aplicação prática aos casos concretos. Tudo que dá ao intérprete uma ideia (ainda que sem base lógica ou legal) de prejuízos a uma das partes ou a terceiros acaba sendo equivocadamente considerado hipótese de simulação.

A simulação como causa de nulidade absoluta do negócio jurídico se encontra prevista no art. 167 do Código Civil brasileiro. É um dos chamados vícios sociais ao lado da fraude contra credores.

Não se trata de vício do consentimento porque este se caracteriza quando a vontade interna não coincide com a declarada. Se alguém vende quotas sociais por força de violência psicológica do comprador, há coação. A vontade interna do vendedor é de “não vender”, mas declara vender por força do medo (daí coação em latim ser metus). No vício social, os declarantes querem (vontade interna) o que declaram. Não há disparidade entre as vontades interna e declarada.

Vício do consentimento

Exemplos. Erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão.

Disparidade entre a vontade interna e declarada.

Vício social

Exemplos. Fraude contra credores e simulação.

Identidade entre vontade interna e declarada.

O conceito de simulação é o seguinte: simulação é o vício pelo qual as partes declaram algo que não querem para enganar ou prejudicar terceiros. Há um acordo com intenção de lesar ou simplesmente enganar alguém. A vontade declarada é efetivamente querida pelas partes.

Em se tratando das espécies de simulação, temos a absoluta e a relativa. A simulação absoluta é aquela em que as partes celebram um negócio jurídico que não desejam. Simplesmente as partes nada querem contratar e mesmo assim contratam. É curioso, pois declaram algo que querem com o intuito de enganar ou prejudicar terceiros.

A simulação relativa tem em seu cerne dois negócios jurídicos: um não desejado que aparece para o mundo e outro efetivamente querido que está oculto. O primeiro negócio (o que aparece) chama-se simulado. O oculto se chama dissimulado. Esse é o negócio que as partes querem.

É assim que Pontes de Miranda resume a questão: “Se não havia intenção de introduzir no mundo jurídico o ato, a simulação é absoluta. O Código Civil não possui regra jurídica especial, porque, se a contivesse, seria regra jurídica pré-excludente, isto é, para se dizer que o ato não é jurídico5”

Vamos ao texto de lei.

“Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”.

Trata-se de preceito cogente. O negócio simulado deve desaparecer do mundo jurídico. Por isso é nulo. Já o dissimulado, se houver, pode subsistir, se válido for. Subsistir.

Simular implica não cumprir as prestações decorrentes dos contratos. Significa combinar algo para ludibriar terceiros.

Note que na coligação contratual não há ocultação dos reais compradores. A coligação contratual gera sucessivos adquirentes e só. Para se utilizar o adjetivo “reais”, há pressuposição de falsidade sem que isso se coadune com a efetiva prestação realizada por todas as partes dos contratos coligados.

IV. Conclusão

Em um caso similar ao que analisamos, é possível que haja simulação? Sim, se, por exemplo, o negócio fosse inexistente ou feito com o intuito exclusivo de prejudicar terceiros, o que, por óbvio, exigiria prova da intenção de esse causar prejuízo. Ou, por outro lado, caso o negócio de compra e venda fosse usado para ocultar outro tipo de negócio.

Não era o caso, não há indícios nesse sentido. Empresas, mesmo de um grupo econômico só, podem, enquanto sujeitos de direito diversos, contratar entre si. Uma das partes pagou o preço e outra entregou o objeto (imediato) da prestação. Não há vícios nos negócios. As partes fazem única e exclusivamente contratos coligados, ou seja, negócios jurídicos encadeados e com finalidade econômica unitária, qual seja, a venda e entrega de um produto a um destinatário final específico.

Por que a empresa A e a empresa C não contratam diretamente? Isso faz parte de uma lógica própria das empresas. Não havendo vício, os negócios são lícitos. As partes podem exercer sua autonomia privada. Não se pode confundir, em casos como este, simulação com meros contratos coligados.

1 Aqui não mencionamos os contratos socialmente típicos.

2 Art. 54-A. Na locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado, prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta lei.
§ 1º Poderá ser convencionada a renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação.
§ 2º Em caso de denúncia antecipada do vínculo locatício pelo locatário, compromete-se este a cumprir a multa convencionada, que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação.

3 No Direito italiano e no português, a interligação funcional e econômica entre contratos estruturalmente diferenciados tem sido tratada sob a expressão contratos coligados. No Direito espanhol, privilegia-se a expressão contratos conexos. No Direito francês, grupos de contratos. No Direito anglo-saxão, contratos ligados (linked contracts ou linked transaction), ou networks contratuais e, por fim, no Direito argentino, a expressão redes contratuais.

4 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. 4ª ed. São Paulo: Borsoi, 1970. t. IV, 374.

5 TEIXEIRA DE FREITAS em seu esboço, art. 524 assim informa: “Se a simulação for absoluta, sem que tenha havido intenção de prejudicar a terceiros, ou de violar disposições da lei, e assim se provar a requerimento de algum dos contraentes: julgar-se-á que nenhum ato existira”.

Fonte: Migalhas

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