Os dados pessoais se tornaram um dos ativos mais valiosos da economia digital
Introdução
Em um mundo cada vez mais digital, os dados pessoais se tornaram um dos ativos mais valiosos da economia contemporânea. Com o avanço das tecnologias de identificação biométrica, a coleta e o uso de dados sensíveis, como impressões digitais e padrões de íris, levantam questões críticas sobre segurança, privacidade e direitos fundamentais.
Recentemente, o projeto internacional World ID despertou preocupação ao oferecer recompensas financeiras para aqueles que permitissem o escaneamento de suas íris, gerando um intenso debate sobre os limites da proteção de dados e a vulnerabilidade dos indivíduos frente à exploração tecnológica.
Dados biométricos: Identidade ou mercadoria?
A coleta de dados biométricos é uma realidade na sociedade digital, sendo amplamente utilizada para verificação de identidade e segurança digital. No entanto, quando essa coleta envolve a promessa de recompensa financeira, a discussão se amplia para questões jurídicas.
O consentimento para o tratamento de dados biométricos, conforme preconizado pela LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, deve ser livre, informado e inequívoco. Mas, quando esse consentimento é condicionado a um pagamento, a liberdade de escolha é colocada em xeque.
O projeto World ID, liderado pela TFH – Tools for Humanity, exemplifica essa problemática. A iniciativa visa criar um passaporte digital de identidade humana baseado na captura de dados da íris.
A promessa de exclusão das imagens coletadas e proteção por meio de criptografia não afasta os riscos de uso indevido, vazamento ou manipulação dessas informações.
A grande questão é confiar na segurança do armazenamento desse dado extremamente sensível, já que a íris é uma identidade única, assim como a digital. Os danos que podem ser causados, caso ocorra um vazamento, serão inestimáveis.
A LGPD e os limites da exploração de dados
A LGPD classifica dados biométricos como sensíveis, no inciso II do art. 5º, exigindo um tratamento rigoroso e restritivo. O consentimento é uma das bases legais para o uso desses dados, mas sua validade está diretamente ligada à autonomia do titular.
Quando um indivíduo, especialmente em situação de vulnerabilidade econômica, aceita compartilhar sua íris em troca de uma vantagem econômica, surge a dúvida: há verdadeiro consentimento ou é apenas uma nova forma de exploração do mercado?
A ANPD – Autoridade Nacional de Proteção de Dados determinou, no final de 2024, a suspensão da coleta de íris pela Tools for Humanity no Brasil, citando a possibilidade de violação da autonomia dos titulares e a transformação de dados pessoais em mercadoria. O posicionamento da ANPD evidencia uma preocupação crescente com práticas que comprometem direitos fundamentais em nome da inovação tecnológica.
O dilema entre o uso de dados e o desenvolvimento tecnológico é evidente. Por um lado, a inovação impulsionada pelo uso de informações pessoais oferece benefícios econômicos e avanços em segurança digital. Por outro lado, a coleta massiva e o tratamento inadequado de dados expõem os indivíduos a riscos que muitas vezes comprometem sua privacidade e autonomia
Desafios e riscos da identificação biométrica
É evidente que a coleta massiva de dados biométricos não só expõe indivíduos a riscos de segurança, como vazamentos e usos indevidos, mas também pode resultar em práticas discriminatórias.
Sistemas de reconhecimento biométrico podem ser usados para vigilância massiva, restrição de direitos e controle social. Além disso, ao contrário de senhas e documentos, dados biométricos não podem ser alterados, tornando qualquer exposição ou comprometimento permanente.
A complexidade das tecnologias envolvidas, como computação multipartidária segura e provas de conhecimento zero, pode dificultar o entendimento por parte dos usuários sobre como seus dados estão sendo tratados. A transparência, portanto, deve ser um dos pilares centrais na regulamentação dessas tecnologias.
Além disso, quando os indivíduos não têm controle sobre quais informações pessoais são conhecidas por terceiros, acarreta uma vivência de um constante estado de vigilância, como aponta Shoshana Zuboff.
Antigamente, o termo vigilância se referia a fenômenos específicos de controle estatal, como em serviços de inteligência governamental ou em investigações policiais. Hoje, com o avanço do processamento de dados pelas empresas, a vigilância tornou-se uma característica da sociedade de informação.
Conclusão
O dilema entre desenvolvimento tecnológico e proteção de dados pessoais se torna cada vez mais complexo. O caso da coleta de íris pelo World ID escancara os desafios que surgem quando dados sensíveis se tornam um ativo econômico.
A LGPD e a atuação da ANPD demonstram avanços na mitigação de problemas e proteção dos direitos dos titulares, mas é necessário um acompanhamento contínuo e um aprimoramento regulatório para impedir abusos, já que é perceptível que estamos apenas engatinhando na regulação de dados.
Enquanto isso, cabe à sociedade civil e à comunidade jurídica manter um olhar atento sobre as práticas de coleta e tratamento de dados biométricos, garantindo que a inovação não aconteça às custas da autonomia e dignidade dos indivíduos.
__________
1 MENDES, Laura Schertel.Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014.
2 SOLOVE, Daniel J. The Digital Person: Technology and Privacy in the Information Age. New York: New York University Press, 2004.
3 ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Fonte: Migalhas
Deixe um comentário