Em 10 pontos essenciais o texto se propõe a explicar a chegada do novo modelo de “cap and trade” e como o Brasil adotou um sistema tripartido de mercado de carbono

A estruturação de mercados de carbono no Brasil é uma oportunidade para que diversos setores da nossa economia sejam inseridos em uma lógica de precificação de carbono global. Enquanto o mercado regulado traz diretrizes de redução de emissões para o setor industrial, o mercado voluntário traz oportunidades para projetos de carbono, com destaque para os agro-florestais, enquanto o mercado jurisdicional financia políticas públicas estaduais, capazes de apoiar quem está na ponta, protegendo e produzindo. Nesse contexto, o setor agropecuário se beneficiará especialmente ao acessar novas formas de financiamento, apoio a práticas mais sustentáveis e políticas de adaptação climática.

A existência de mercados de carbono no Brasil como um instrumento da nossa Política Nacional de Mudanças Climáticas, estava previsto desde 2009, quando esta lei foi adotada. No entanto, anos se passaram sem uma regulamentação efetiva. O tema só voltou à mesa de fato a partir de 2021 com sucessivos projetos de lei que deram origem ao texto apresentado via Senado pelo Executivo em 2023, resultando na recente sanção da Lei 15.042 de 2024 que passa a ser o marco dos mercados de carbono no Brasil.

A importância da adoção de tal marco legal deve ser entendida nas suas diferentes camadas e representa, sem dúvida, uma virada econômica significativa. Isso porque, pela primeira vez, temos no país um instrumento econômico que traz i) um preço de carbono para a produção industrial e vai além, trazendo igualmente ii) mecanismos de valorização do nosso capital natural, através de medidas comerciais claras para a negociação do crédito de carbono e financiamento de políticas públicas sub-nacionais. Ambos os passos são inéditos e sinalizam uma mensagem forte.

Após a adoção do Acordo de Paris, em 2015, os países adotaram uma nova orientação na governança climática: o voluntarismo global. Ou seja, todos os países partes à Convenção teriam a obrigação de determinar o seu objetivo de redução de emissões, baseado nas realidades nacionais, e comunicar esse resultado através de um documento chamado Comunicação Nacionalmente Determinada (NDC). Não havia mais objetivo de redução imposto à determinadas partes, nem uma seleção de países com ou sem obrigação. Todos passam a ter metas, mas essas metas seriam voluntárias.

Esse novo momento traz para as realidades nacionais as obrigações de mitigação de emissões que antes eram metas aspiracionais. A necessidade de se desdobrar as obrigações para dentro de cada país, inaugurou o período que chamamos de “precificação” interna do carbono. E uma era de mercados regulados nacionais se desenvolveu. Trata-se, portanto, de uma política pública de imposição de medidas de redução de emissões para os setores econômicos selecionados, tradicionalmente, os mais intensivos em carbono em cada economia.

Outro aspecto determinante do voluntarismo global de pós-Paris, foi a expansão de compromissos de descarbonização corporativos – conhecidos como Net-Zero. A chamada por maiores compromissos de todos com a causa climática, trouxe as empresas a assumirem objetivos de redução de carbono voluntários. Toda uma rede de standards, relatos, certificadoras e outras iniciativas de apoio a esses compromissos nasceu.

E, principalmente, o desenvolvimento de um mercado de carbono voluntário tomou forma. Tal mercado, baseado na compra de créditos de carbono desenvolvido por projetos privados ou programas jurisdicionais – principalmente projetos de base agroflorestal (conhecidos também como soluções baseadas na natureza) – atua para atrair investimentos aos países do sul global, servindo como um catalizador de investimentos para áreas menos favorecidas.

Destaca-se ainda, que o sistema brasileiro reconheceu os programas jurisdicionais de base subnacional (chamado também de J-REDD). Ou seja, esses sistemas têm o objetivo de desenvolver políticas públicas de conservação dos biomas à nível estadual. O financiamento de tais programas ocorre ora pela venda dos créditos de carbono gerados, chamados de jurisdicionais de base de mercado, ora pelo financiamento dos pagamentos por resultados, chamados de jurisdicionais de não mercado.

Com base portanto na necessidade de se introduzir no país uma política de incentivos à redução de carbono nos setores econômicos mais emissores, trazer previsibilidade à comercialização de créditos do mercado voluntário e segurança ao desenvolvimento dos programas jurisdicionais, que o nosso marco legal foi construído.

O texto assim identifica três principais abordagens para o mercado de carbono no Brasil, cada uma com características específicas:

  • Regulado: Refere-se ao mercado centralizado, onde o governo impõe limites máximos de emissão (cap and trade) aos setores indicados. Nesse sistema, empresas de setores com altas emissões são obrigadas a reduzir sua pegada de carbono às permissões alocadas à cada ente regulado ou a comprar permissões de emissão, sob pena de multa.
  • Voluntário: Trata-se de um mercado no qual empresas ou indivíduos optam por adquirir créditos de carbono gerados por projetos para neutralizar suas emissões, sem serem obrigados por lei. Esse mercado é regido por regras específicas de certificadoras que garantem a confiabilidade e a rastreabilidade dos créditos.
  • Jurisdicional: Abrange mercados que operam em níveis estadual ou regional, permitindo que governos locais desenvolvam suas políticas públicas, que serão financiadas por créditos de carbono ou pagamentos por resultados, verificados a partir da efetiva redução do desmatamento ou da degradação ambiental.

Além disso, o marco introduz uma variável importante: a interoperabilidade entre os mercados regulado, voluntário e jurisdicional. Isso significa que uma parcela limitada de créditos gerados no mercado voluntário/jurisdicional poderá ser usada no mercado regulado, promovendo maior flexibilidade e integração entre os sistemas.

Para uma melhor compreensão desses ambientes e da sua variável, vamos trazer o texto em 10 pontos principais:

Mercado Voluntário

1. Conceitos de base

O novo marco de carbono apresenta conceitos essenciais, como o crédito de carbono, definido em geral como um ativo com natureza jurídica de um fruto civil, ou seja, um benefício econômico gerado por um bem principal, como florestas ou projetos de conservação, a partir de atividades como reflorestamento ou preservação (artigo 2, VII). Também são destacados o desenvolvedor de projeto, responsável por implementar ações que resultem em redução ou remoção de emissões (artigo 2, VIII), e o certificador, entidade que valida se as metodologias para a geração de créditos foram aplicadas corretamente, garantindo credibilidade ao sistema (artigo 2, IV).

2. Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais

Questões relacionadas aos direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais em projetos de carbono são tratadas através da previsão de salvaguardas socioambientais, ou seja, medidas para proteger os direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais, garantindo respeito às suas culturas, territórios e inclusão nos benefícios econômicos dos projetos de carbono. A lei também estabelece regras de repartição de benefícios, assegurando que 50% dos recursos gerados em projetos de remoção de carbono e 70% nos projetos de REDD+ sejam destinados a essas populações (artigo 47).

3. Ambientes de negociação e suas tributações

A tributação das operações envolvendo créditos de carbono são um ponto importante. Em vendas diretas realizadas pelo desenvolvedor, os créditos são tributados como ganhos de capital, ou seja, a diferença entre o valor de venda e o custo de obtenção. Já nas negociações realizadas em mercado organizado, como bolsas de valores ou de mercadorias, a tributação segue as regras específicas aplicadas a esses mercados, similares às de ativos financeiros (artigo 17).

Mercado Jurisdicional

4. Abordagens de mercado jurisdicional

O marco de carbono brasileiro define três principais abordagens de mercado jurisdicional: (i) Programas estatais REDD+ de não mercado, que são iniciativas governamentais focadas na redução de emissões por desmatamento e degradação florestal, sem a geração de créditos de carbono para comercialização, priorizando a conservação florestal; (ii) Programas jurisdicionais REDD+ de mercado, que também buscam reduzir emissões, mas com o objetivo de gerar créditos de carbono negociáveis nos mercados regulado ou voluntário; e (iii) Projetos públicos de crédito de carbono, desenvolvidos por entes públicos para gerar créditos a partir de ações como reflorestamento em áreas sob sua propriedade ou usufruto. O texto ainda aborda o conceito de aninhamento, que se refere à integração de projetos privados dentro de programas públicos, garantindo a coordenação entre iniciativas e evitando sobreposições ou duplicidades nos créditos gerados (artigo 2, XXV, XXVI, XXVIII).

Mercado Regulado: Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões – SBCE

5. Alcance

Economy-Wide: O novo marco de carbono estabelece que todos os operadores, pessoas físicas ou jurídicas, que emitam mais de 10.000 toneladas de dióxido de carbono equivalente (tCO₂e) por ano devem relatar suas emissões, enquanto aqueles que emitam mais de 25.000 tCO₂e por ano têm a obrigação de reduzi-las (Art. 30), com exceção do setor agropecuário primário, que foi excluído do escopo do sistema regulado.

6. Ativos

O projeto de lei traz três ativos distintos:
A) Certificado de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE): crédito gerado por projetos do mercado voluntário que pode ser utilizado dentro do SBCE e é considerado um ativo fungível, ou seja, intercambiável com outros de mesma categoria (artigo 2, III);
B) Cota Brasileira de Emissões (CBE): funciona como uma permissão de emissão destinada aos entes regulados, determinando o limite permitido para suas emissões (artigo 2, VI);
C) Crédito de Carbono: gerado por projetos do mercado voluntário ou jurisdicional, que representa uma unidade de carbono não emitida ou removida e pode ser comercializado em mercados de carbono nacionais e internacionais (artigo 2, VII);

7. Conexão com o Artigo 6 do Acordo de Paris – ITMO’s

O texto da lei traz previsões sobre o crédito de carbono relacionado ao Acordo de Paris, chamado também de “Transferência Internacional de Resultados da Mitigação (ITMOs)”. Esses créditos representam reduções ou remoções verificadas de emissões que podem ser comercializadas entre países para cumprimento de suas metas climáticas nacionais. A lei prevê regras para que os créditos brasileiros sejam registrados no registro central do mercado regulado e recebam ajustes correspondentes com os objetivos nacionais antes de serem exportados ao mercado internacional.

8. Infrações e penalidades

A nova lei prevê sanções para os entes regulados que descumprirem suas obrigações no âmbito do SBCE. Entre as penalidades, estão advertências, multas que podem variar de R$ 50.000 a R$ 20 milhões para pessoas físicas e até 3% do faturamento bruto para pessoas jurídicas, além de outras medidas, como restrições à atividade ou perda de benefícios fiscais (artigo 37).

9. Implementação gradual

Previsão de cinco fases de implementação, que será de forma gradual, para se chegar a implementação plena em 5 anos a partir da aprovação da lei (artigo 50).

Variável

10. Interoperabilidade

Diz respeito ao estabelecimento de regras claras para a interoperabilidade entre os mercados voluntário e regulado de carbono. Ou seja, esse conceito refere-se às condições que determinam a elegibilidade de créditos de carbono do mercado voluntário e jurisdicional que serão aceitos no mercado regulado dentro de um limite estabelecido. As regras envolvem a escolha de metodologias e critérios para validação dos créditos (artigo 2, XVIII e artigo 25).

É importante destacar que o setor agropecuário primário (porteira para dentro) ficou excluído da incidência do mercado regulado na lei devido aos contornos regulatórios típicos de um sistema cap and trade, que é baseado na medição de fontes estacionárias de emissão de carbono, enquanto as fontes do setor agro são tipicamente difusas. Esse termo se refere ao fato de que as emissões do setor agropecuário são geradas de forma dispersa, como no caso do metano emitido por animais ruminantes ou do óxido nitroso liberado pelo uso de fertilizantes. Diferentemente das emissões de setores industriais, que são concentradas em fontes fixas e mais fáceis de medir e controlar, as emissões difusas apresentam desafios técnicos e metodológicos que dificultam sua inclusão no modelo tradicional de cap and trade, voltado para fontes estacionárias.

Nota-se, por outro lado, que a agroindústria está dentre os setores passíveis de regulamentação pelo sistema regulado. Certo é que o setor agro deve endereçar as suas emissões. No entanto, é necessário que essa regulamentação atinja contornos que suportem as especificidades desse setor. Assim como o Brasil, outros países estão igualmente debruçados sobre a melhor maneira de endereçar as emissões do agro em planos nacionais de descarbonização e, sem dúvida, esse assunto deve ser amplamente debatido na nossa sociedade para se chegar a uma proposta de resultados virtuosos.

Atualmente, adotado o marco legal, entramos no momento da implementação. O texto traz características de lei quadro, ou seja, a partir de agora iremos tornar a lei aplicável, com o detalhamento das regras. Será um período desafiador, tendo em vista a complexidade das regras e a necessidade de grande mobilização do setor produtivo.

Por exemplo, precisaremos determinar a escolha de setores, o desenvolvimento dos planos setoriais, as regras de preços e controle do mercado regulado certamente serão momentos importantes. E, principalmente, a formação da estrutura de governança farão grande diferença no sucesso do sistema.

Temos que lembrar que a Europa passou por diversas fases de implementação do seu mercado regulado e houve a necessidade de correção de diversos pontos ao longo do caminho. Ainda, um conjunto importante de regulações paralelas trouxe a complementariedade de esforços climáticos em setores não cobertos pelo mercado regulado.

Portanto, é importante entendermos que temos diante de nós um caminho importante a percorrer, mas os elementos essenciais já nos foram apresentados com a lei aprovada. O desafio será sem dúvida trazer para a economia real os direcionadores climáticos da lei. A transformação dos preceitos em realidade e o acompanhamento do desenvolvimento regulatório está agora nas nossas mãos.

Referências:

BRASIL. Lei nº 15.042, de 11 de dezembro de 2024. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 dez. 2024. Acesso em: 7 jan. 2025.

Fonte: Agro.Insper

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