Por muito tempo, os criptoativos transitaram pela fronteira nebulosa entre inovação tecnológica e lacuna regulatória, representando uma verdadeira “zona cinzenta” no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, o julgamento do Recurso Especial nº 2.127.038/SP, sob a relatoria do eminente ministro Humberto Martins, perante a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), confere uma nova dimensão jurídica aos ativos digitais ao estabelecer, de maneira técnica e paradigmática, sua inclusão inequívoca no rol de bens sujeitos à penhora judicial.
Questão de fundo: ativos digitais como bens penhoráveis
A questão central versada no julgamento diz respeito à possibilidade ou não de o juízo, em sede de cumprimento de sentença, determinar, mediante expedição de ofícios, a pesquisa e subsequente penhora de ativos digitais mantidos pelo executado em corretoras especializadas (exchanges). A origem da controvérsia advém da ausência de regulamentação específica sobre as operações com criptoativos, fato que ensejou negativa do Tribunal de Justiça paulista, em decisão objeto do recurso especial.
Nesse contexto, a decisão proferida pelo STJ é juridicamente instigante, pois transcende a simples aplicação do Direito positivo ao buscar compatibilizar o interesse do credor, na satisfação do seu crédito, com o interesse do devedor, quanto à menor onerosidade possível da execução, tudo isso em um cenário tecnológico profundamente desafiador.
Fundamentação técnica do julgado: entre o Direito Processual e a realidade econômica
O ministro Humberto Martins fundamentou sua decisão essencialmente na literalidade do artigo 789 do Código de Processo Civil (CPC), que estatui a responsabilidade patrimonial ampla do devedor sobre seus bens presentes e futuros. Invocou-se, igualmente, a Instrução Normativa nº 1.888/2019 da Receita Federal, que obriga a declaração das operações realizadas com criptoativos, circunstância que confere a tais ativos uma inquestionável relevância econômica, além de revelar indícios fortes de sua materialidade patrimonial.
Essa argumentação técnica e bem estruturada é corroborada pela percepção de que, ainda que desprovidos de regulamentação específica e não equiparáveis a moedas fiduciárias tradicionais, os criptoativos constituem indubitavelmente bens móveis imateriais passíveis de penhora. Tal entendimento encontra respaldo na doutrina mais abalizada, que há tempos advoga que a natureza jurídica dos criptoativos melhor se coaduna à classificação dos bens móveis intangíveis, conforme o artigo 83, inciso III, do Código Civil Brasileiro.
Divergência de posicionamentos e a visão crítica sobre a penhora de criptoativos
Embora a decisão do STJ represente um importante avanço na concretização do direito processual executivo frente à inovação tecnológica, deve-se analisar com cautela os argumentos contrários suscitados pelo Tribunal de origem e acolhidos parcialmente no voto-vista do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Entre tais argumentos destacam-se, principalmente, as dificuldades práticas de implementação da medida judicial proposta. Os ativos digitais apresentam desafios estruturais profundos para o sistema judiciário, tais como:
1. Anonimato e privacidade: Os criptoativos, pela própria concepção da tecnologia blockchain, possuem natureza pseudoanônima. A identificação inequívoca dos titulares depende diretamente da colaboração das exchanges e, mesmo assim, nem sempre é possível identificar todos os bens que um indivíduo possui, sobretudo aqueles mantidos em carteiras privadas.
2. Volatilidade econômica: Outra crítica robusta recai sobre a alta volatilidade desses ativos. A ausência de estabilidade econômica dos criptoativos dificulta sobremaneira a determinação precisa do valor penhorado, o que poderá acarretar futuras discussões sobre eventual excesso ou insuficiência da penhora.
3. Custódia judicial e segurança técnica: Não menos importante é a questão operacional acerca da custódia dos ativos digitais pelo próprio Poder Judiciário, considerando a inexistência atual de infraestrutura tecnológica específica para armazenamento seguro e eventual alienação desses bens.
4. Efetividade da constrição: Argumenta-se, ainda, sobre eventual ineficácia prática da decisão, dada a facilidade com que o patrimônio digital pode ser transferido instantaneamente para jurisdições internacionais, dificultando ou até mesmo inviabilizando sua recuperação.
Esses elementos denotam que a penhora de criptoativos não pode ser compreendida como uma mera adaptação dos procedimentos já consagrados com ativos tradicionais, exigindo uma visão inovadora por parte dos operadores do Direito.
Papel das exchanges e relevância das iniciativas de autorregulação
O papel desempenhado pelas exchanges emerge com renovada complexidade e protagonismo diante da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça. Essas corretoras, por deterem sob sua custódia ativos digitais passíveis de constrição judicial, assumem papel crucial na concretização efetiva das medidas executórias, figurando como autênticas colaboradoras do Poder Judiciário. Em virtude da lacuna normativa que ainda persiste acerca das obrigações legais específicas dessas instituições em face das ordens judiciais, delineia-se, por necessidade operacional e preventiva, um relevante dever de colaboração institucional.
Nesse particular contexto, ganha especial relevância o fenômeno da autorregulação, compreendida como um conjunto organizado de normas e procedimentos adotados voluntariamente pelas próprias exchanges, com o intuito de prevenir práticas abusivas, assegurar a transparência das operações financeiras e colaborar ativamente com autoridades públicas nas situações de intervenção judicial. Tais práticas, já delineadas de maneira embrionária por entidades como a Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCripto), incluem políticas de compliance rigorosas, medidas de identificação clara de usuários e transações – Know Your Customer (KYC) e Know Your Transaction (KYT) –, bem como a comunicação espontânea às autoridades sobre atividades suspeitas.
Assim, na ausência imediata de uma legislação detalhada, resta às exchanges o desafio, jurídico e ético, de exercerem proativamente sua autonomia regulatória, estabelecendo mecanismos claros para recepção, processamento e cumprimento das ordens judiciais, sem prejuízo da necessária ponderação entre o atendimento eficaz à tutela jurisdicional e a proteção legítima dos direitos patrimoniais e pessoais dos usuários. Nessa perspectiva, uma postura institucional proativa e responsável por parte dessas entidades surge não apenas como recomendável, mas como imprescindível à manutenção da segurança jurídica e da estabilidade do próprio mercado de criptoativos.
Aspectos constitucionais e os limites inerentes às medidas judiciais de constrição patrimonial
Sob o prisma constitucional, a decisão emanada do Superior Tribunal de Justiça demanda uma análise especialmente cautelosa dos princípios fundamentais que regem a execução patrimonial, notadamente quanto à garantia da privacidade e à inviolabilidade do sigilo financeiro e patrimonial dos indivíduos, consagrados expressamente no artigo 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal. Embora seja inequívoco que o sistema processual deve assegurar a máxima efetividade da tutela executiva em prol do credor, tal premissa não pode se sobrepor indiscriminadamente aos direitos fundamentais do devedor.
A expedição de ofícios judiciais às exchanges para localização e penhora de ativos digitais, portanto, deve ser precedida de rigorosa avaliação judicial acerca da existência concreta de elementos probatórios mínimos ou indícios consistentes que justifiquem a quebra do sigilo patrimonial do devedor. Exige-se do Poder Judiciário, nesse contexto, a adoção de medidas pontuais e fundamentadas, evitando-se iniciativas genéricas ou indiscriminadas que, sob o pretexto da satisfação do crédito exequendo, possam caracterizar uma incursão excessiva e desproporcional na esfera de privacidade do executado.
Nessa linha, o juiz da execução deverá atuar com redobrada prudência e parcimônia, exigindo que o exequente demonstre de forma clara a relevância e a razoabilidade da medida solicitada, indicando precisamente as corretoras a serem oficiadas, a fim de preservar o equilíbrio entre o interesse patrimonial legítimo do credor e os direitos constitucionais do executado.
Perspectivas futuras: aperfeiçoamento do sistema executório diante do avanço tecnológico dos criptoativos
O julgamento proferido pelo STJ consolida-se como marco jurisprudencial significativo, porém revela também a urgente necessidade de implementação e aprimoramento das medidas legislativas e tecnológicas destinadas a viabilizar a execução patrimonial dos ativos digitais. Nesse sentido, ganha relevo a tramitação do Projeto de Lei nº 1.600/2022, que busca incluir explicitamente os criptoativos no rol de bens penhoráveis constantes no artigo 835 do Código de Processo Civil, reduzindo-se assim as incertezas normativas e ampliando-se a segurança jurídica.
Paralelamente, desponta como fundamental a rápida implementação operacional da ferramenta “CriptoJud”, desenvolvida pelo Conselho Nacional de Justiça, cuja finalidade precípua é fornecer ao magistrado um mecanismo eficiente e tecnicamente seguro para localização, bloqueio e eventual liquidação dos criptoativos. Essa iniciativa permitirá ao Poder Judiciário lidar com as singularidades técnicas que caracterizam os ativos digitais, superando paulatinamente os desafios impostos pela tecnologia blockchain quanto ao anonimato, rastreabilidade e volatilidade dos ativos.
Assim, a conjunção dessas iniciativas legislativas e administrativas configura-se como essencial para a concretização efetiva da decisão proferida pelo STJ, permitindo que a tutela executiva se adapte adequadamente às inovações tecnológicas, sem renunciar ao respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos envolvidos.
Considerações finais
Em síntese, embora robusta e fundamentada tecnicamente, a decisão da 3ª Turma do STJ inaugura mais desafios do que soluções definitivas. O julgado representa apenas o início da construção jurisprudencial em torno da penhorabilidade dos criptoativos, requerendo do legislador, da doutrina e das instituições envolvidas não apenas vigilância constante, mas também a adoção de uma postura criativa, visionária e tecnicamente preparada para lidar com os desafios impostos por esse novo paradigma econômico.
Ao fim e ao cabo, a verdadeira relevância da decisão reside não apenas na superação da lacuna regulatória imediata, mas na oportunidade única que proporciona à comunidade jurídica brasileira de repensar, de forma inovadora, o Direito em face dos desafios tecnológicos, redefinindo os limites e possibilidades da execução judicial no século 21.
Fonte: Conjur
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