A impenhorabilidade do bem de família, prevista na lei 8.009/1990, é uma das garantias patrimoniais mais relevantes – e mais controversa, do ordenamento jurídico brasileiro

A impenhorabilidade do bem de família, prevista na lei 8.009/1990, é uma das garantias patrimoniais mais relevantes do ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, a aplicação dessa proteção aos avalistas ainda desperta controvérsias, sobretudo diante da exceção consolidada em relação aos fiadores em contratos de locação. Este artigo busca examinar, à luz da legislação e da jurisprudência, a extensão, ou não, da regra de penhorabilidade ao avalista, com foco na análise dos riscos e na segurança jurídica.

Cumpre observar que é comum a confusão entre fiador e avalista. Embora ambos desempenhem papel de garantidores de obrigações, trata-se de figuras distintas. A figura do fiador é regida pelo CC e responde de forma subsidiária pela dívida principal, com direito ao benefício de ordem. Já o Avalista, figura típica do direito cambiário, assume obrigação solidária, sem direito à ordem de cobrança, equiparando-se ao próprio devedor.

Malgrado a semelhança funcional das figuras para a prática contratual e jurídica, as consequências aplicáveis a cada figura, especialmente no que tange à penhorabilidade do bem de família, são substancialmente distintas.

O fiador encontra na norma e na jurisprudência uma situação que excepciona expressamente a sua proteção patrimonial. É a hipótese do art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/90, que dispõe o seguinte:

Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

(…)

VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

Tal exceção, além da previsão legal, foi cristalizada no ordenamento jurídico brasileiro por meio da súmula 549, do STJ:

Súmula 549-STJ: É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação. Aprovada em 14/10/2015, DJe19/10/2015.

O Avalista, por seu turno, se encontra em situação de silêncio legal, haja vista que diferente do fiador, embora não haja regra que excepcione a proteção do bem de família do Avalista, tampouco há previsão legal que garanta a sua proteção. A ausência de norma expressa impede interpretação extensiva ou analógica. Nesse sentido, o Eg. STJ já se posicionou:

PROCESSO CIVIL. DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ART 462 DO CPC.DIREITO SUPERVENIENTE. ERROR IN PROCEDENDO. EXECUÇÃO DE TÍTULOEXECUTIVO JUDICIAL CIVIL DECORRENTE DA PRÁTICA DE ATO ILÍCITO. PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA. LEI 8.009/1990. INTERPRETAÇÃO ESTRITA.VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. (…) 5. Ademais, a Lei 8.009/1990 ostenta natureza excepcional, de modo que as exceções à regra geral da impenhorabilidade do bem de família são previstas de forma taxativa, sendo insuscetíveis de interpretação extensiva. Precedentes. (…) (STJ – REsp: 1074838 SP 2008/0159778-2, Relator.: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 23/10/2012, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/10/2012).

A jurisprudência do STJ, portanto, entende que o aval não pode ser equiparado ao instituto da fiança para fins de penhora do único imóvel residencial, em razão da natureza eminentemente excepcional da norma restritiva da impenhorabilidade, devendo, entretanto, o devedor comprovar que o imóvel penhorado se destina à sua moradia ou de sua família.

O reconhecimento da impenhorabilidade do bem de família pertencente ao avalista tem sido reforçado por diversos tribunais estaduais e pelo próprio STJ, diante da ausência de previsão legal que autorize a aplicação extensiva da exceção conferida ao fiador.

Essas interpretações estão ancoradas no princípio da legalidade estrita, uma vez que a lei 8.009/90 não inclui avalista nas exceções à regra de impenhorabilidade.

Nesse sentido, destacam-se os seguintes julgados como representativos dessa conclusão:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO ORDINÁRIA ANULATÓRIA DE CONSOLIDAÇÃO DE PROPRIEDADE E REVISIONAL DE CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO APELANTES AVALISTAS TESE DE ESGOTAMENTO PATRIMONIAL DA EMPRESA DEVEDORA IMPOSSIBILIDADE DIREITO DO CREDOR DE ACIONAR CONJUNTO OU INDIVIDUALMENTE O AVALISTA BEM IMÓVEL DADO EM GARANTIA EM FAVOR DE TERCEIRO BEM DE FAMÍLIA IMPENHORABILIDADE NÃO INCIDÊNCIA DA EXCEÇÃO PREVISTA NO ART. 3, INCISO V, DA LEI Nº 8.009/90RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Não há necessidade de prévio esgotamento do patrimônio da empresa, já que os recorrentes assinaram a cédula de crédito bancário na qualidade de avalistas. E, sendo assim, os bens do avalista podem ser expropriados antes dos bens do devedor originário. Não se pode falar em benefício de ordem, já que o aval é garantia pessoal e solidária prestada em título de crédito, de modo que caberia ao apelado o direito de acionar, em conjunto ou individualmente, o avalista igualmente considerado devedor do valor estampado no referido título. 2. Para a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça, a exceção prevista no art. 3º, V, da Lei nº 8.009/90 não se aplica aos casos em que o imóvel é dado como garantia de empréstimo contraído em favor de terceiro, somente quando garante empréstimo tomado diretamente em favor do próprio devedor. 3. Na esteira da jurisprudência do STJ, tendo a devedora provado suficientemente (ab initio) que a constrição judicial atinge imóvel da entidade familiar, mostra-se equivocado exigir-se desta todo o ônus da prova, cabendo agora ao credor descaracterizar o bem de família na hipótese de querer fazer prevalecer sua indicação do bem à penhora. (REsp 1014698/MT, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 06/10/2016, DJe 17/10/2016) 4. Recurso conhecido e parcialmente provido. (TJ-ES – APL: 00137784520138080014, Relator.: TELEMACO ANTUNES DE ABREU FILHO, Data de Julgamento: 04/12/2018, TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 14/12/2018) (grifos nossos)

O precedente supra não é isolado. Esse entendimento também já era acompanhando pelo Eg. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Vejamos:

Cerceamento de defesa (CPC, arts. 331 e 333) Não reconhecimento princípio da persuasão racional (CPC, arts. 131 e 330) Natureza das alegações que possibilitam o julgamento conforme o estado do processo preliminar rejeitada. Legalidade Art. 3º, V, da Lei nº 8.009/90 Pleito não formulado em primeiro grau e nem apreciado na sentença Efeito devolutivo Inocorrência – Pedido não acolhido. Bem de família Exceção do art. 3º, V, da Lei nº 8 .009/90 – Inaplicabilidade Avalista – Dívida contraída em benefício de terceiro Sociedade comercial – Impenhorabilidade reconhecida Aplicação do art. 1º, da Lei nº 8.009/90. (…) (TJ-SP – APL: 00049776020128260084 SP 0004977-60 .2012.8.26.0084, Relator.: Henrique Rodriguero Clavisio, Data de Julgamento: 25/06/2014, 18ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/07/2014)

Além da jurisprudência pátria, a doutrina especializada também rejeita a equiparação entre as garantias pessoais como fundamento para exceção à impenhorabilidade. A distinção entre fiança e aval não é meramente teórica: ela tem efeitos diretos sobre a proteção patrimonial conferida ao devedor. O legislador, ao permitir a penhora do bem de família do fiador em contrato de locação, optou por restringir o direito fundamental à moradia apenas nesse caso específico, não sendo legítima a extensão dessa restrição a outras modalidades de garantia pessoal, como bem ressaltado por Daniel Amorim Assumpção Neves (2020, p.1417).

Portanto, a regra permanece sendo a impenhorabilidade do bem de família do avalista, salvo prova cabal de que a dívida avalizada reverteu em benefício direto da entidade familiar, hipótese essa prevista como exceção no inciso V, do art. 3º, da lei 8.009/90, mas exclusivamente para casos de hipoteca, e não para garantias cambiárias. Vejamos, senão, o teor do artigo supracitado:

Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

(…)

V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;

Essa separação é essencial para evitar distorções na aplicação da lei e proteger adequadamente o núcleo familiar do avalista, em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito constitucional à moradia.

Não obstante, para usufruir da proteção da lei 8.009/90, o devedor deve comprovar de forma suficiente e inequívoca que o imóvel penhorado é destinado à sua moradia ou de sua família. Entretanto, o Eg. STJ em situação específica compreende pela inversão do ônus da prova, quando o juízo entende que a penhora atinge bem de família. Senão, vejamos:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. EXECUÇÃO. PENHORA. BEM DE FAMÍLIA (LEI 8.009/90, ARTS. 1º E 5º). CARACTERIZAÇÃO. IMÓVEL RESIDENCIAL DO DEVEDOR. ÔNUS DA PROVA. RECURSO PROVIDO. 1. Tendo a devedora provado suficientemente (ab initio) que a constrição judicial atinge imóvel da entidade familiar, mostra-se equivocado exigir-se desta todo o ônus da prova, cabendo agora ao credor descaracterizar o bem de família na hipótese de querer fazer prevalecer sua indicação do bem à penhora. 2. Nos termos da jurisprudência desta Corte, não é necessária a prova de que o imóvel onde reside o devedor seja o único de sua propriedade, para o reconhecimento da impenhorabilidade do bem de família, com base na Lei 8.009/90. Precedentes. 3. Recurso especial provido. (STJ – REsp: 1014698 MT 2007/0260788-6, Relator.: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 06/10/2016, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/10/2016)

Em que pese não exista garantia de proteção legal ao avalista, de maneira geral, o STJ reconhece que o bem de família poderá ser penhorado quando a dívida tiver revertido diretamente em benefício da entidade familiar. O STJ também reconhece situações em que a má-fé do devedor revela abuso de direito da garantia legal, afastando a impenhorabilidade por consequência. Vejamos:

RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC/1973. NÃO OCORRÊNCIA. INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. TRANSMISSÃO CONDICIONAL DA PROPRIEDADE. BEM DE FAMÍLIA DADO EM GARANTIA. VALIDADE DA GARANTIA. VEDAÇÃO AO COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO.(…) 3. A jurisprudência desta Corte reconhece que a proteção legal conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/90 não pode ser afastada por renúncia do devedor ao privilégio, pois é princípio de ordem pública, prevalente sobre a vontade manifestada. 4. A regra de impenhorabilidade aplica-se às situações de uso regular do direito. O abuso do direito de propriedade, a fraude e a má-fé do proprietário devem ser reprimidos, tornando ineficaz a norma protetiva, que não pode tolerar e premiar a atuação do agente em desconformidade com o ordenamento jurídico. (…) 7. Sendo a alienante pessoa dotada de capacidade civil, que livremente optou por dar seu único imóvel, residencial, em garantia a um contrato de mútuo favorecedor de pessoa diversa, empresa jurídica da qual é única sócia, não se admite a proteção irrestrita do bem de família se esse amparo significar o alijamento da garantia após o inadimplemento do débito, contrariando a ética e a boa-fé, indispensáveis em todas as relações negociais. 8. Recurso especial não provido. (STJ – REsp: 1559348 DF 2015/0245983-2, Relator.: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 18/06/2019, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe05/08/2019)

Tem-se, portanto, hipótese de renúncia tácita à impenhorabilidade.

Em conclusão, a tentativa de aplicar ao avalista a mesma exceção legal atribuída ao fiador carece de respaldo normativo e afronta o princípio da legalidade. A impenhorabilidade do bem de família do avalista permanece a regra, sendo afastada apenas mediante prova robusta de que a dívida beneficiou diretamente a entidade familiar.

Assim, o risco jurídico reside menos na condição de avalista e mais na capacidade de comprovação da natureza do imóvel e do destino da dívida. Em um cenário de dispersão jurisprudencial, impõe-se aos operadores do Direito atenção redobrada à produção probatória e à distinção conceitual entre as garantias pessoais.

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1 BRASIL. Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990. Dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 mar. 1990.

2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.074.838/SP. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. 4ª Turma. Julgado em 23 out. 2012. DJe 30 out. 2012.

3 ______. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 549. “É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação.” Aprovada em 14 out. 2015. DJe 19 out. 2015.

4 ______. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.014.698/MT. Rel. Min. Raul Araújo. 4ª Turma. Julgado em 06 out. 2016. DJe 17 out. 2016.

5 ______. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.559.348/DF. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. 4ª Turma. Julgado em 18 jun. 2019. DJe 05 ago. 2019.

6 ESPÍRITO SANTO. Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo. Apelação Cível 0013778-45.2013.8.08.0014. Rel. Des. Telemaco Antunes de Abreu Filho. 3ª Câmara Cível. Julgado em 04 dez. 2018. DJe 14 dez. 2018.

7 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível 0004977-60.2012.8.26.0084. Rel. Des. Henrique Rodriguero Clavisio. 18ª Câmara de Direito Privado. Julgado em 25 jun. 2014. DJe 28 jul. 2014.

8 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Código de Processo Civil Comentado: artigo por artigo. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Juspodivm, 2020. p. 1417.

Fonte: Migalhas

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