O contrato de escrow, tal como aplicado no mercado brasileiro até recentemente, consolidou-se como solução informal para mitigação de riscos em contratos de execução diferida ou condicionada. Esse modelo operado por bancos, fintechs e gestoras, no entanto, sempre se apoiou em uma base jurídica frágil¹.

O problema fundamental reside no fato de que, na ausência de disciplina legal específica, a conta escrow privada não gera segregação patrimonial. A jurisprudência, de forma consolidada, reconhece que os valores depositados continuam a integrar o patrimônio do depositante até o efetivo implemento das condições contratuais². Consequentemente, esses ativos estão sujeitos a penhoras, arrestos, constrições judiciais ou medidas fiscais decorrentes de dívidas estranhas ao negócio jurídico que deu origem ao depósito.

Essa vulnerabilidade compromete não apenas a eficácia jurídica do contrato, mas também sua função econômica. O escrow deveria atuar como instrumento de neutralização do risco de contraprestação, convertendo obrigações futuras em segurança presente. No entanto, o risco patrimonial residual anula, na prática, grande parte da segurança que o instituto deveria oferecer. O que deveria ser um escudo se converte, frequentemente, em uma falsa proteção³.

A disfunção é ainda mais grave quando se considera o segundo déficit estrutural do modelo: o risco de impasse. A liberação dos valores, no modelo privado, depende, como regra, do consentimento mútuo das partes. Esse desenho contratual abre espaço para práticas oportunistas, estratégias de retenção abusiva e chantagens econômicas. É comum que uma das partes, de má-fé, se recuse a liberar os valores mesmo após o cumprimento das condições contratuais.

Para além disso, o uso indiscriminado do escrow privado, sem regulação pública, fomentou práticas claramente disfuncionais. Estruturas de escrow foram instrumentalizadas, em muitos casos, como mecanismos de ocultação patrimonial, blindagem ilícita, evasão fiscal e lavagem de dinheiro⁴. A inexistência de controle estatal, de deveres públicos de compliance e de fiscalização efetiva gerou uma zona cinzenta na gestão privada de ativos vinculados, capaz de impactar negativamente tanto a segurança dos negócios legítimos quanto a eficácia dos sistemas de tutela patrimonial e tributária do Estado.

O resultado é a produção de um paradoxo normativo e econômico: o mesmo instrumento que deveria mitigar riscos contratuais, acabou gerando novos riscos tanto para as partes quanto para terceiros e para o próprio sistema jurídico.

Inovação normativa: o escrow notarial como arquitetura de segurança jurídica

A Lei nº 14.711/2023, ao introduzir o artigo 7º-A na Lei nº 8.935/1994, e sua regulamentação pelo Provimento CNJ nº 197/2025, romperam de forma definitiva com as limitações e distorções do modelo privado de escrow. O ordenamento jurídico brasileiro passa a contar, pela primeira vez, com um regime público, normativamente robusto e institucionalmente confiável para a gestão de valores vinculados a negócios jurídicos.

No centro desse novo paradigma está o conceito de patrimônio de afetação. O §1º do artigo 7º-A da Lei de Notários e Registradores estabelece, de maneira expressa, que os valores depositados em conta notarial vinculada constituem patrimônio segregado, juridicamente.

Apartado dos patrimônios do depositante, do beneficiário e do próprio tabelião⁵. Esses ativos só podem ser movimentados para o cumprimento do negócio jurídico que lhes deu origem, blindando-os contra quaisquer atos de constrição — judiciais, fiscais ou privados — oriundos de obrigações alheias ao contrato.

Essa proteção não é fruto de convenção entre as partes, nem de cláusula contratual. É efeito direto de norma cogente, de ordem pública, cuja eficácia se projeta erga omnes. Trata-se de uma blindagem institucionalizada, dotada de plena eficácia jurídica e resistência patrimonial absoluta frente a terceiros.

Além da blindagem, o modelo notarial resolve, de forma elegante, o problema clássico do impasse. As condições para a movimentação dos valores devem ser, obrigatoriamente, objetivas, documentáveis e verificáveis pelo notário. Não se admite cláusula que dependa de juízos subjetivos, apreciações discricionárias ou atos volitivos unilaterais das partes. Na hipótese de divergência, o tabelião não exerce função jurisdicional: limita-se a bloquear os valores, lavrar ata notarial documentando o impasse e comunicar formalmente as partes. Persistindo o conflito, aplica-se a cláusula padrão: os valores retornam ao depositante, salvo decisão judicial em sentido contrário⁶.

Essa disciplina desloca os incentivos econômicos das partes, forçando a elaboração de cláusulas claras, objetivas e tecnicamente auditáveis. Elimina, portanto, as assimetrias negociais, reduz as possibilidades de comportamento oportunista e favorece uma arquitetura contratual mais eficiente, previsível e juridicamente estável.

Arquitetura institucional, procedimentos e governança

A operacionalização da conta notarial vinculada repousa sobre uma arquitetura institucional que combina governança pública, tecnologia, rastreabilidade e segurança jurídica.

O serviço é operado por quatro agentes centrais: As partes contratantes, que definem as condições objetivas que vinculam a movimentação dos valores. O tabelião de notas, que atua como agente fiduciário e jurídico, responsável pela qualificação do negócio, validação da regularidade documental, análise da objetividade das condições e emissão das ordens de movimentação. O Colégio Notarial do Brasil — Conselho Federal (CNB/CF), que administra a plataforma tecnológica nacional, assegura a rastreabilidade dos atos, mantém o repositório digital, audita as operações e garante a aderência aos parâmetros regulatórios. A instituição financeira custodiante, que executa as ordens do tabelião sem qualquer margem de discricionariedade, opera tecnicamente os movimentos financeiros.

O prazo máximo de permanência dos valores na conta é de 180 dias, prorrogáveis uma única vez⁷. Esse limite temporal impede o desvirtuamento do instituto como instrumento de blindagem indefinida ou como substituto de depósito judicial. Caso o prazo expire sem a implementação da condição e sem prorrogação válida, aplica-se o desfecho procedimental padrão: o tabelião encerra o procedimento e os valores retornam ao depositante.

O sistema impõe padrões rigorosos de governança: todas as movimentações são documentadas, auditáveis e submetidas a critérios de rastreabilidade digital, conferindo segurança não apenas jurídica, mas também operacional, contábil e regulatória.

Impactos jurídicos, econômicos e sistêmicos

O impacto da conta notarial vinculada é multidimensional. No plano jurídico, o instituto inaugura uma nova categoria de garantia patrimonial, operada no domínio do direito público notarial, com base na fé pública e na força normativa da segregação patrimonial legal.

No plano econômico, a inovação reduz assimetrias informacionais, mitiga os custos de monitoramento e enforcement, e reequilibra as relações negociais. Transfere o locus da confiança do risco subjetivo das partes para a segurança objetiva do regime notarial, criando externalidades positivas para o ambiente de negócios, com efeitos diretos na redução dos custos de transação e na ampliação do acesso ao crédito.

Do ponto de vista sistêmico, o escrow notarial fortalece a função institucional do notariado como agente de pacificação social, de desjudicialização dos conflitos e de promoção da eficiência econômica. Além disso, protege o próprio Estado contra práticas de evasão, lavagem de dinheiro e blindagem patrimonial ilícita ao submeter as operações de gestão de valores vinculados a um regime público de rastreabilidade, governança e responsabilidade fiduciária.

Exemplos práticos e aplicações estratégicas

No plano das aplicações práticas, a conta notarial vinculada revela-se como uma infraestrutura jurídica extremamente versátil, apta a conferir segurança patrimonial a uma ampla gama de negócios jurídicos. No mercado imobiliário, por exemplo, ela permite que as partes depositem valores correspondentes ao sinal, ao preço ou a qualquer outro montante relevante, vinculando sua liberação à efetiva lavratura da escritura definitiva ou ao registro do imóvel, o que elimina os riscos associados à inadimplência, à evicção ou a problemas registrais supervenientes.

No âmbito das sucessões, a conta notarial viabiliza, com elevada segurança, operações de cessão de direitos hereditários, especialmente nas hipóteses em que o pagamento ao cedente é condicionado à homologação da partilha, prevenindo, assim, litígios sobre a titularidade dos ativos e a responsabilidade pelo adimplemento.

Nas operações de fusões e aquisições, o modelo notarial de escrow substitui com vantagens as tradicionais contingency escrows privadas, permitindo que parte do preço de aquisição seja retida e liberada apenas após o decurso de prazos acordados ou mediante a verificação da inexistência de passivos ocultos, contingências fiscais, trabalhistas ou regulatórias, com um grau de blindagem e segurança que o modelo privado não oferece.

Também no setor de infraestrutura e em contratos de cadeia produtiva, a conta notarial apresenta especial utilidade. Permite, por exemplo, que valores sejam depositados e vinculados ao cumprimento de etapas contratuais, à entrega de bens ou serviços, ou ainda ao atendimento de condições ambientais, fiscais e regulatórias, funcionando, na prática, como instrumento eficiente de mitigação do risco de inadimplemento e de alinhamento dos incentivos econômicos entre as partes.

Dessa forma, a conta notarial vinculada não se limita a replicar funcionalidades de garantias tradicionais. Ela funciona como uma verdadeira plataforma de gestão de riscos contratuais, aplicável a qualquer transação que demande neutralização do risco de contraprestação, alocação segura de recursos e proteção patrimonial robusta, projetando-se como um instrumento de pacificação das relações negociais e de fortalecimento da segurança jurídica no ambiente econômico contemporâneo.

Considerações finais

O Provimento CNJ nº 197/2025, combinado com a Lei nº 14.711/2023, representa muito mais do que a introdução de um novo serviço. Trata-se de uma mutação institucional de alta relevância, que ratifica o direito notarial como pilar da segurança jurídica, da eficiência econômica e da desjudicialização no Brasil.

Ao superar, de maneira definitiva, as fragilidades do modelo privado de escrow, o sistema de conta notarial vinculada oferece uma infraestrutura pública de confiança, baseada na fé pública, na rastreabilidade digital, na publicidade notarial e na força normativa da segregação patrimonial legal.

Mais do que um avanço técnico, é uma transformação estrutural que projeta o direito contratual brasileiro em um novo patamar de maturidade institucional, segurança econômica e desenvolvimento sustentável, alinhado às melhores práticas internacionais.

 

Referências:

[1] Vide, por exemplo: GIMENES, Amanda Goda. Contrato de Escrow: Perspectivas Dogmática e Prática. 2014. 108p. Dissertação (Mestrado em Direito Negocial) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2014. p. 8., e KAYO, Grazziella Mosareli. A Conta Vinculada (Escrow Account) em Operações de Fusão e Aquisição: Resolução de Impasses sobre Liberação dos Recursos Depositados. 2019. 114 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Escola de Direito de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, p. 13.

[2] SACRAMENTO, André. A legalidade e a assertividade na penhora de conta escrow: Análise do acórdão no AI 2250450-89.2024.8.26.0000. Migalhas, 12 abr. 2024. Disponível aqui

[3] SZINWELSKI, Fábio João. O escândalo das ‘contas blindadas’. Consultor Jurídico, 15 jun. 2025. Disponível aqui.

[4] Vide, também: CONTA ESCROW E OUTROS “JEITINHOS” NÃO SE PRESTAM A ESCONDER RECURSOS DO CEDENTE, E PODEM CONFIGURAR CRIME – Portal SINFAC-SP. Disponível aqui.

[4] “Art. 7º-A Aos tabeliães de notas também compete, sem exclusividade, entre outras atividades: […]

[5] 1º O preço do negócio ou os valores conexos poderão ser recebidos ou consignados por meio do tabelião de notas, que repassará o montante à parte devida ao constatar a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis, não podendo o depósito feito em conta vinculada ao negócio, nos termos de convênio firmado entre a entidade de classe de âmbito nacional e instituição financeira credenciada, que constituirá patrimônio segregado, ser constrito por autoridade judicial ou fiscal em razão de obrigação do depositante, de qualquer parte ou do tabelião de notas, por motivo estranho ao próprio negócio.”. BRASIL. LEI Nº 8.935, DE 18 DE NOVEMBRO DE 1994. Disponível aqui.

[6] “§ 2º O tabelião de notas lavrará, a pedido das partes, ata notarial para constatar a verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais aplicáveis e certificará o repasse dos valores devidos e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado, o que, quando aplicável, constituirá título para fins do 221 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto.”. Id.

[7] Conta Notarial (Escrow Account) – Esclarecimentos Disponível aqui.

Fonte: Conjur

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