Como sempre destacamos aqui, a aquisição de imóveis de maneira irregular parece ser uma regra (infelizmente) no cotidiano, seja pela instrumentalização inadequada e deficiente, seja pela inacreditável mas real inexistência de qualquer documento (já que algumas pessoas ainda compram imóveis e não fazem qualquer documento, agindo com total insegurança). Uma forma de aquisição de imóveis pode se dar através da Cessão de Direitos Hereditários, forma essa que requer muitos cuidados por parte dos cessionários/adquirentes dada a natureza aleatória do negócio e a impositiva necessidade de realizar ou ingressar no Inventário do falecido para regularizar o imóvel que supostamente teria sido adquirido. É preciso que os cessionários tenham ciência de obstáculos significativos: a morosidade e os litígios familiares que paralisam os processos de inventário por anos, dificultando consideravelmente a regularização da propriedade. Diante dessa situação desagradável, surge a questão: seria a USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL uma via legítima para consolidar e regularizar o domínio?

De início é preciso recordar que o fundamento principal para essa possibilidade reside na natureza jurídica da Usucapião: trata-se de uma forma de AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA da propriedade, o que revela que ela NÃO DERIVA de um ato de transmissão do antigo dono (como uma compra e venda ou uma doação onde o antigo dono transmite para o novo dono), mas sim de uma SITUAÇÃO FÁTICA consolidada no tempo: a posse qualificada, exercida com “ânimo de dono”, de forma mansa, pacífica e ininterrupta. A usucapião, por ser originária, tem o condão de se sobrepor a quaisquer pendências registrais ou títulos anteriores, descortinando uma nova cadeia dominial para o imóvel. Não por outra razão uma nova matrícula deve ser aberta no Cartório do RGI, como sentencia o art. 417 do Código de Normas Extrajudiciais editado pelo CNJ:

“Art. 417. O registro do reconhecimento extrajudicial da usucapião de imóvel implica abertura de nova matrícula”.

É evidente que a existência de um inventário pendente não enfraquece, mas, ao contrário, fortalece o interesse de agir do possuidor. Ora, a impossibilidade prática de obter o registro do imóvel pela via do inventário, em razão de disputas que se arrastam por anos, evidencia a NECESSIDADE e a UTILIDADE do procedimento de Usucapião. Não se trata de uma tentativa de burlar o inventário, mas de buscar o único caminho viável para garantir a segurança jurídica e o direito à propriedade. Nesse contexto, a Usucapião é o remédio que deve sanar a enfermidade registral que o Inventário letargicamente poderá resolver.

A Escritura de Cessão de Direitos Hereditários, como sabemos, desempenha um papel crucial. Em que pese seja ela direcionada para a utilização no Inventário (judicial ou extrajudicial) não se desconhece que ela é um título arrolado no inciso VII do §1º do art. 410 do Provimento CNJ 149/2023 o que indubitavelmente a destaca como título passível de utilização na Usucapião Extrajudicial. Ela não é um obstáculo, mas sim um “título hábil” para instruir o procedimento de Usucapião, servindo como prova robusta do “animus domini” (a intenção de ser dono) e do marco inicial da posse qualificada pelo cessionário. A Cessão de Direitos Hereditários confere posse ao cessionário e isso é relevante para a Usucapião. Nessa linha inclusive decisão do STJ:

STJ. REsp 1279204/MG. J. em: 03/11/2015. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE E TRANSFERÊNCIA DE DIREITOS POSSESSÓRIOS. COMPROMISSO PARTICULAR E ESCRITURA PÚBLICA DE CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS. (…). SOMATÓRIO DO TEMPO ANTERIOR. POSSIBILIDADE. EXERCÍCIO DE POSSE MANSA, PACÍFICA E SEM OPOSIÇÃO POR MAIS DE 17 ANOS. AQUISIÇÃO DO DOMÍNIO PELA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. 1. Se, por uma cadeia de contratos, foram sendo cedidos os direitos hereditários sobre determinada área de terra rural e, ao longo do tempo, foi sobre ela exercida a posse ininterrupta, mansa e pacífica, sem nenhuma oposição, é possível acrescer esse tempo ao do atual posseiro para fins de aferição do decurso do lapso prescricional aquisitivo. 2. Considerando as peculiaridades do caso concreto, o fato de um dos herdeiros do falecido posseiro ter sofrido execução forçada e, naquele feito, terem sido penhorados e depois arrematados seus direitos hereditários não tem o alcance que o arrematante pretende atribuir no âmbito da ação de usucapião, notadamente se foi em decorrência de sua inércia que o lapso prescricional se consumou. 3. Segundo a orientação jurisprudencial predominante, a usucapião é direito que decorre da análise da SITUAÇÃO FÁTICA da ocupação de determinado bem e independe da relação jurídica com o anterior proprietário. Preenchidos os requisitos, declara-se a aquisição do domínio pela prescrição aquisitiva. (…)”.

Outro aspecto importante é relativo à questão de se negar a possibilidade de Usucapião nesse cenário ao argumento de que a usucapião possa estar servindo para escapar ao pagamento de tributos pela regularização: ora, é nítido que a regularização pela Usucapião vai trazer o imóvel irregular para o seu lugar de regularidade, tanto perante o Cartório quanto perante à Municipalidade. Não há cenário melhor e mais adequado para que a legítima tributação seja realizada. Ademais, não é difícil prever que, uma vez lavrada a Escritura de Cessão de Direitos Hereditários, por conta da regra do art. 289 da LRP, o cessionário terá recolhido tanto o ITD (imposto sobre a herança) quanto do ITBI (imposto sobre a cessão onerosa, se esse for o caso), o que só vai revelar a boa-fé e a ausência de qualquer intuito fraudulento.

A cessão de direitos hereditários, com base no art. 1.793 do CCB, é um instrumento legítimo que, somado aos demais requisitos legais, pode pavimentar o caminho para a regularização de imóveis via Usucapião Extrajudicial. Para o cessionário que se vê diante de um inventário complexo e interminável, a Usucapião não deve ser um desvio, mas sim a via correta e juridicamente amparada para converter sua posse em propriedade plena.

POR FIM, recentíssima decisão do TJMG que, prestigiando a possibilidade da utilização da Cessão de Direitos Hereditários para regularização de imóvel via Usucapião, reflete uma louvável tendência de fortalecer a via extrajudicial sublinhando direitos constitucionais como o Direito à Moradia e a Função social da Propriedade:

TJMG. 50000207620248130534. J. em: 21/05/2025. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO DE APELAÇÃO. USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL. CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS. TÍTULO HÁBIL PARA INSTRUÇÃO DO PROCEDIMENTO. IMPOSSIBILIDADE DE REGISTRO IMOBILIÁRIO POR AUSÊNCIA DE CONCLUSÃO DO INVENTÁRIO. INTERESSE DE AGIR CONFIGURADO. RECURSO PROVIDO. I. CASO EM EXAME 1. Recurso de apelação interposto contra sentença que julgou procedente a dúvida suscitada pelo Oficial Registrador do Serviço de Registro de Imóveis de Presidente Olegário/MG. Os apelantes firmaram cessão de direitos hereditários referente à fração ideal de um imóvel rural localizado no Município de Lagoa Grande/MG (matrícula nº 25), mas, diante da pendência de inventários em curso há mais de 15 anos e sem perspectiva de conclusão, iniciaram procedimento de usucapião extrajudicial. A sentença entendeu pela inadequação da via eleita e acolheu a recusa registral, sob o fundamento de que a usucapião não pode substituir o inventário. No recurso, os apelantes pleiteiam a reforma da sentença para continuidade do procedimento administrativo de usucapião, defendendo a validade da cessão de direitos hereditários como título hábil. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 2. Há duas questões em discussão: (i) determinar se a cessão de direitos hereditários configura título hábil para instruir o procedimento de usucapião extrajudicial; (ii) avaliar se a pendência de inventário impede o reconhecimento da usucapião como forma de aquisição originária da propriedade. III. RAZÕES DE DECIDIR 3. A usucapião é forma originária de aquisição da propriedade, sobrepondo-se a qualquer outro título, desde que preenchidos os requisitos legais da prescrição aquisitiva, conforme previsto no art. 1.238 do Código Civil. 4. A ausência de registro da cessão de direitos hereditários não constitui óbice ao reconhecimento da usucapião, considerando que a propriedade só se transfere com o registro do título translativo no cartório de imóveis, conforme os art . 1.245 e § 1º, e 1.227 do Código Civil. 5. A demora e o litígio entre os herdeiros nos inventários em curso, que inviabilizam a obtenção do formal de partilha para registro, justificam a escolha do procedimento de usucapião como meio de aquisição da titularidade do imóvel. 6. A jurisprudência majoritária do STJ e dos tribunais estaduais admite que a existência de cessão de direitos hereditários não impede o reconhecimento da usucapião, desde que atendidos os requisitos de posse mansa, pacífica, ininterrupta e com ânimo de dono. 7. O Provimento CNJ nº 65/2017, que disciplina a usucapião extrajudicial, reconhece a cessão de direitos hereditários como exemplo de justo título para instrução do procedimento, desde que acompanhada da comprovação dos requisitos legais. 8. A sentença que julgou procedente a dúvida desconsidera o interesse processual dos apelantes, que decorre da impossibilidade de registro do título translativo pela via do inventário e da necessidade de resguardar a segurança jurídica. IV. DISPOSITIVO E TESE 9. Recurso provido. Tese de julgamento: 10. A cessão de direitos hereditários configura título hábil para instruir o procedimento de usucapião extrajudicial, desde que preenchidos os requisitos legais da prescrição aquisitiva. 11. A pendência de inventário não impede o reconhecimento da usucapião como forma originária de aquisição da propriedade, especialmente quando inviabilizada a aquisição por outras vias. (…)”

Fonte: Julio Martins

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