Personagem de Ana Beatriz Nogueira em Um Lugar ao Sol descobre que a tia deixou seus bens em testamento para a cuidadora e tenta anular o ato. Mas quando e como é possível?
“Escuta, minha filha, ou você invalida, abre mão, não sei, desse testamento — que claramente foi feito sob coação, ou eu vou ter que entrar com um processo”. Essa é a fala de Elenice, personagem que Ana Beatriz Nogueira interpreta na novela “Um Lugar ao Sol”, da TV Globo, ao descobrir que, após falecer, sua tia Aurora deixou todos os seus ricos bens em testamento para sua cuidadora, a quem de fato cuidou e a acompanhou durante grande parte de sua velhice. Elenice e seu irmão, Theodoro, mal sabiam do estado de saúde da tia, e apenas se interessaram em saber da familiar quando souberam que ela estava internada, já nas últimas.
Situações como essa podem facilmente acontecer na vida real, e a família de um ente querido se deparar com o fato de que o testador deixou bens em testamento para alguém que, supostamente, não herdaria ou não deveria, por lei, herdar bens daquela pessoa. Mas o que muitas pessoas não sabem é que o testamento é um dos atos mais seguros quando se fala em planejamento sucessório.
O tema ganhou destaque durante o período de pandemia, quando o mundo se deparou com uma doença desconhecida, sem tratamento e que poderia levar ao óbito tão rapidamente, ajudando a quebrar o tabu de que é realizado apenas por quem possui muitos patrimônios ou é considerado “rico”, na linguagem popular. É um ato tão seguro e que segue tão fielmente aos desejos do testador que é feito diante de protocolos específicos, como presença de testemunhas que, obrigatoriamente, não podem ser parentes ou herdeiros do mesmo.
Mas voltando à personagem Elenice, será que ela conseguiria anular o testamento da tia Aurora e pegar para si e o irmão a herança deixada, mesmo diante das condições citadas anteriormente? Quem nos ajuda a entender situações como essa é o advogado Júlio Martins, ex-cartorário, advogado e especializado em atos que permeiam o planejamento sucessório, tais como testamento, partilha de bens, inventário e doação – o ato que consiste em partilhar a herança em vida.
Advogado esclarece
O advogado Júlio Martins destaca um ponto importante relacionado ao fato da Tia Aurora deixar todos os seus bens para cuidadora, tendo em vista a presença dos seus sobrinhos, herdeiros não necessários. Fica inviável a disposição de todos os bens em testamento em caso em que o testador possui herdeiros necessários, ou seja, os descendentes (filho, neto, bisneto) os ascendentes (pai, avô, bisavô) e o cônjuge. No caso da personagem Elenice, o testamento é válido e legítimo.
“Quando a pessoa tem herdeiros necessários não pode dispor da integralidade do seu patrimônio em testamento. São necessários na forma do art. 1.845 seus descendentes, os ascendentes e o cônjuge/companheiro. Nesse caso específico deverá ocorrer a redução das disposições testamentárias, por infringência à regra que veda a inclusão da legítima dos herdeiros necessários no testamento, se tais “herdeiros de sangue” forem herdeiros necessários”, afirma Júlio.
Ele cita o §1º do art. 1.967, que afirma que “em se verificando excederem as disposições testamentárias a porção disponível, serão proporcionalmente reduzidas às quotas do herdeiro ou herdeiros instituídos, até onde baste, e, não bastando, também os legados, na proporção do seu valor”.
No geral, há algumas situações elegíveis por lei em que o ato pode ser revogado ou anulado. Júlio comenta que as hipóteses de nulidade de testamento seguem o art. 1.900 do Código Civil e dispõe todas elas, incluindo sob aspectos também que favoreçam as pessoas a que se referem os artigos. 1.801 e 1.802.
São nulas a disposição dos bens quando:
– institua herdeiro ou legatário sob a condição captatória de que este disponha, também por testamento, em benefício do testador, ou de terceiros;
– se refira a pessoa incerta, cuja identidade não se possa averiguar; que favoreça à pessoa incerta, cometendo a determinação de sua identidade a terceiro;
– que deixe a arbítrio do herdeiro, ou de outrem, fixar o valor do legado;
– e também que favoreça as pessoas a que se referem os arts. 1.801 e 1.802, além das nulidades genéricas de todo negócio jurídico, como um todo, alinhadas no art. 166 do mesmo Código, ou seja, quando:
– celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
– for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
– o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
– não revestir a forma prescrita em lei;
– esta for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;
– tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
– a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.
Júlio destaca que também são anuláveis os testamentos que apresentarem disposições “eivadas por erro, dolo ou coação, como assevera o art. 1.909 do CCB”, alertando que para essas o prazo é de quatro anos para pedir a anulação, a partir do conhecimento do vício, conforme a Lei. Já para as primeiras hipóteses listadas acima não há prazo, já que o ato nulo não convalesce, como regra geral de direito.
Se os personagens da novela, Elenice e Theodoro, fossem filhos de Aurora e não sobrinhos, e agissem com negligência em relação à vida da mãe, eles poderiam ser privados da legítima no caso do cf. art. 1.962 do Código Civil, a ser provado, em que “há desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade”. Outras situações presentes no art. 1961 também impediriam que mesmo herdeiros necessários, a legítima fosse provada, tais como se houver sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; houver acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; por casos de violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
Disputa entre familiares
O testamento é um ato extremamente seguro, mas muitas vezes motivo de conflitos e disputas entre familiares após a morte do testador. O advogado Júlio Martins explica que na prática, a ação do testador nem sempre agrada os herdeiros e familiares, e a cobiça se torna o motivo que permeia estas desavenças. “Observamos na prática que nem sempre a vontade do testador agrada os seus herdeiros/familiares, e a intenção de anular e desfazer a vontade pode surgir, lamentavelmente”.
Júlio esclarece uma dúvida que muitas pessoas possuem, sobre o verdadeiro efeito deste ato e o momento em que ele é válido. “Muitas pessoas pensam, equivocadamente, que o testamento é absoluto e desde já determina a divisão patrimonial, porém, a verdade é que a eficácia deste importante instrumento está ligado à sua não modificação/revogação em vida pelo testador e pela ocorrência do evento morte. Assim, feito o testamento nada se modifica ainda; somente com a morte é que ele passará a surtir efeitos se não for anulado pelos interessados”, afirma. E há de fato o risco de a vontade não ser cumprida, a menos que profissionais qualificados acompanhem o testador durante a realização do ato. “O que sempre recomendamos é um planejamento sucessório e a realização de testamentos, se for o caso, somente por instrumento público e com assistência de advogado, embora a lei assim não exija (mas não também proíba)”.
Segundo ele, o testamento público realizado em cartório é muito mais seguro que aquele que a lei permite que seja feito pelo sujeito em sua casa, sem qualquer assistência de tabelião ou advogado. Mas ele reforça que “qualquer das formas existentes de testamento podem ser alvo de ação buscando sua anulação, como se viu”. “O testamento não é um instrumento absolutamente inatingível por demandas que busquem sua anulação e desfazimento. Soluções mais sofisticadas podem ser buscadas através de outros instrumentos no que diz respeito a planejamento sucessório e, ainda assim, o experiente e cauteloso advogado por certo alertará o interessado sobre os riscos de cada medida”, explica Júlio.
A cultura brasileira não beneficia muito que a população se interesse por temas relacionados a planejamento sucessório. Isso porque muitas famílias não aceitam nem falar sobre o assunto por acreditar que estão atraindo a morte ou coisa parecida. Por outro lado, muitos acham que testamento é tema para quem tem muitos bens e vem de família rica.
“A verdade é que já há uma regra legal “genérica” para atender a todos os casos de quando a pessoa morre e deixa bens; o testamento (fazendo parte de uma solução maior e mais sofisticada que é o planejamento sucessório) é uma das alternativas para suplantar a orientação que a lei já dá para a destinação dos bens, permitindo, dentro das complexas regras do que a lei faculta, um direcionamento diferenciado dos bens. Como falamos, sim o testamento pode ser anulado. Se não for ao final anulado, pode pelo menos ter o desfecho do inventário postergado por anos de briga judicial – o que é demasiadamente prejudicial para as famílias”, encerra o advogado.
Concluindo, o fato é que Elenice e Theodoro poderiam buscar, por meio da justiça, a anulação ou revogação do ato realizado pela tia Aurora mas por outros motivos, e não por pensarem terem direito à herança da tia, já que não são considerados herdeiros necessários perante a lei.
Fonte: CNB/RJ
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