Sábado passado, enquanto relia, empolgado, o livro Inteligência Artificial & Data Science no Judiciário brasileiro, de Roberta Eggert Poll (Fundação Fênix aqui), fui indagado por Sofia (minha filha de 16 anos que, para minha alegria, gosta de filosofia, cognição, inteligência artificial e quejandos; Felipe, Artur e Caio gostam mais de futebol e jogos eletrônicos, embora sejam antenados) sobre o reducionismo de se chamar o que as máquinas fazem de “inteligência artificial”.

 

Sofia, então, perguntou-me: pai, quando eles falam de inteligência artificial, de que inteligência eles falam? Dialogamos sobre o momento histórico da nomeação do domínio (1956), dos achados da ciência contemporânea e de que as máquinas conseguem realizar inferências dedutivas e, no limite, indutivas, sem que a abdução seja viável, por enquanto. Nunca se sabe sobre o que poderá advir no futuro, até porque ela reconhece a possibilidade quanto à conexão máquina-humanos.

 

Finalizamos com a conclusão de que é injusto ler a expressão (inteligência artificial) fora do seu contexto de atribuição. Muitas vezes a crítica sequer entende do que se trata. Em seguida ela perguntou-me sobre a autora e o conteúdo do livro.

 

Respondi: então, Sofia, conheci Roberta Eggert Poll pelo mundo virtual, quando da defesa do seu trabalho de doutorado junto ao programa de doutorado da PUC-RS, sob orientação do colega Eugênio Facchini Neto. Calhou com o tema que pesquisamos porque os diálogos que travamos desde então sempre ocorreram pela rede, em poucos e proveitosos debates quanto aos limites e possibilidades da máquina em apoio à decisão humana, nunca em substituição.

 

Sofia me disse — e concordei — que existem diversos tipos de sentença e nem todas demandam atividade cognitiva, devendo-se separar o grau de exigência (por ser filha de mãe e o pai juízes, já viu modelos de extinção de execuções pelo pagamento, por exemplo). De fato, se houve pagamento e o credor concordou, não há controvérsia a ser dirimida por sentença que, então, poderia ser prolatada pela máquina sob supervisão humana.

 

No entanto, quando se tratar de decisão com inferências quanto à articulação entre premissas normativas e fáticas, a questão se modifica. Mesmo assim, a depender dos pontos controversos, por mais que a máquina não decida, poderá apoiar na organização do conteúdo, atualização de fontes (legislação, doutrina e jurisprudência), além de auxiliar na construção de modelo pessoal do julgador.

 

Aqui a máquina pode muito, como demonstrou Fábio Porto no recente livro sobre IA Generativa no Direito, aqui. Aliás, tenho construído e refinado os meus modelos e ficado impressionado com a acurácia das entregas (voltarei ao tema no futuro. Funcionam).

 

Perspectivas não excludentes

Eis o contexto digital que estamos inseridos, no qual as coordenadas que orientam a atuação jurídica exigem três perspectivas não excludentes: (a) continuidade; (b) ajuste; e/ou, (c) ruptura. Entretanto, para que tenhamos um debate minimamente honesto, além do “fla-flu” (rivalidade de posições: contra ou favorável), mostra-se necessário entender as possibilidades e os limites da inteligência artificial, com ênfase na generativa (GPT, Lhama, Claude, Gemini, Mistral etc.) porque depois, pelo menos, do uso de “tokens” e do “Transformers” (aos menos avisados não é o filme de carros-robôs), é revolucionária a capacidade de os modelos aprenderem contextos.

 

Aliás, o Lhama da Meta conta atualmente com três versões de 8, 70 e 405 bilhões de parâmetros, com alto potencial de uso porque “open source”. O ritmo das novidades é incompatível com o das discussões que se referem a modelos de inteligência artificial fora do atual “estado da arte”.

 

Fabiano Hartmann, Fernanda Lage, Isabella Ferrari, Dierle Nunes, Vinícius Mozetic, Alexandre José Mendes, Raimundo Teive e Diogo Cortiz, dentre outros, demostram a importância de revisão do contexto, evitando-se críticas a modelos ultrapassados. Em geral, a crítica jurídica é alheia ao que se discute no domínio da IA, valendo-se da falácia do espantalho (constrói uma caricatura fantasiosa do que não é).

 

Nesse sentido, Roberta Poll escreveu um livro de modo direto e consistente sobre temas complexos, articulando a temática de modo a conferir o devido letramento do leitor. A continuidade está descrita no item 2.1 do livro, com o respeito às regras do jogo democrático. Entretanto, os ajustes precisam acontecer de modo honesto e aberto, por meio de discussões informadas para além da superfície de gente que sequer sabe o que significa “hagging face” (visite e se assuste, se puder entender, claro aqui).

 

Antes disso, porém, devemos situar a transformação digital no Direito. O impacto da leitura do trabalho cuidadoso demonstra a preocupação com os destinos assumidos pelo processo eletrônico, transformado inicialmente em mero sistema de gestão de documentos, sem a “integração”, para usar um termo “cringe”, das amplas possibilidades da inteligência artificial.

 

No ponto, chegou o momento de termos um único sistema nacional porque é impossível que advogados, partes, magistrados e interessados tenham que se submeter a sistemas fracassados que continuam por renitência dos decisores, exigindo-se a unificação nacional, quem sabe, com o Eproc do TRF-4 que, como gestor de documentos, em relação aos concorrentes, ganha com sobras.

 

Chega a ser covardia a diferença da experiência do usuário. Aliás, muito se fala sobre o tema, em geral, sem o domínio das categorias necessárias à compreensão do suporte técnico e dos limites do campo da IA aplicado à gestão de processos judiciais, com iniciativas de duvidosa legitimidade que se abraçam em modelos comerciais sem a transparência necessária exigida inclusive pelos atos normativos do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

 

A crítica formulada por Roberta passa pelo desconhecimento quanto ao funcionamento das máquinas, com demandas de impossível atendimento, justamente porque se confundem os registros. As máquinas não podem tudo, mas podem muito quanto se trata de processar imensos volumes de dados, realizar consultas, promover a interoperabilidade dos diversos bancos de dados disponíveis e que, em regra, não são trazidos aos autos.

 

A premissa liberal do processo, consistente em “o que não está nos autos, não está no mundo”, decorria do contexto analógico, com a atribuição às partes do ônus de obter e juntar a documentação e, por consequência, os dados relevantes à resolução do caso.

 

No entanto, diante dos interesses em jogo, especialmente de vulneráveis (consumidor, idosos, deficientes, crianças e adolescentes etc.) e do interesse público subjacente em decisões de melhor qualidade na esfera do Direito Público, chegou a hora de negar as aparências, disfarçando as evidências quanto ao impacto da invasão tecnológica (virada tecnológica, diz Dierle Nunes).

 

Qual o motivo para não termos uma base de dados nacional de jurisprudência, legislação, fornecedores, indicação de julgados similares e outras funcionalidades disponíveis às partes e ao julgador? Capacidade tecnológica não falta, como os eventos organizados por Ademir Piccoli indicam.

 

Parece-me que a ruptura com o modelo liberal de direito civil também precisa aportar no processo. Se os bancos de dados podem se conectar aos processos eletrônicos por meio da chave CPF, custa acreditar na resistência de muitos em nome de um processo do tempo do papel, certidões, carimbos e juntadas.

 

Se o contexto analógico ficou para trás (sobre contexto Onlife de Luciano Floridi aqui), então, a resistência irracional quanto às possibilidades do uso de máquinas em apoio à decisão, dentro de controles estatais, é ineficaz e ineficiente. Claro que máquinas não conseguem tudo, mas podem apoiar. Muito. Eu mesmo uso diversos recursos de apoio, embora fora dos sistemas oficiais, porque internamente o que temos são meros gestores de documentos, com uma ou outra funcionalidade, ainda que a Plataforma Digital do Poder Judiciário seja promissora.

 

A preocupação de Roberta vai no ponto certo. Reproduzo a sua preocupação:

 

“Uma teoria da decisão judicial sob uma perspectiva de IA precisa demonstrar como se deve dar o discurso argumentativo, a partir do qual será construída a decisão judicial e quais os papéis dos seus diversos atores. Deve, ainda, demonstrar quais as consequências do descumprimento daquilo que foi decidido ou estabelecido pelo sistema inteligente. Além disso, deverá ser capaz de lançar luzes sobre a possibilidade de controle da decisão judicial, ou seja, os critérios mínimos que limitem a utilização de algoritmos decisionais, considerando o estágio atual de evolução da IA no Direito.”

 

É um sintoma do que se passa com as novas coordenadas impostas que já chegaram e são utilizadas, como se verifica atualmente com as oportunidades e riscos do GPT 4, 5, Lhama, Claude etc. O futuro chegou, principalmente para quem usa errado (pergunta sobre fatos para modelos, p.ex.; construir prompts é uma necessidade). As máquinas não podem tudo. Mas podem muito, para quem sabe ler o contexto e integrar as oportunidades, mantida a preocupação com a “democraticidade” das decisões, para usar o termo de Rui Cunha Martins.

 

O futuro, também, será o lugar em que Sofia, Felipe, Artur, Caio e Lucca (filho da Roberta) irão viver. Muito do que vivenciarão depende da geração atual. Nesse sentido, recomendo a leitura do livro, na esperança de que possamos construir modelos democráticos de decisão judicial. Até porque, como demonstra Roberta, no atual estado de coisas, não é inteligente desprezar todo potencial existente. É irracional, como diz Richard Susskind, no livro “Advogados do Amanhã”, traduzido para o português, pela editora Emais (aqui):

 

“É, simplesmente inconcebível que a tecnologia alterará radicalmente todos os ângulos da economia e da sociedade e, ainda de alguma forma, os serviços jurídicos serão uma exceção a toda a mudança. […] Tecnologia digital não é uma mania passageira. […]. E, ainda assim, muitos advogados, ignorantes, ainda afirmam que essa questão da tecnologia é exagerada. Poucos ainda apontam para uma bolha do ponto com e alegam – baseado não se sabe em quem – que o impacto da tecnologia está diminuindo e que a recente conversa sobre IA no direito não passará de teoria. Isto é uma leitura grotescamente equivocada das tendências.” (2023, p. 34-35)

 

Por fim, somos filhos da geração antecedente. Roberta teve a sorte de poder dialogar em casa, assim como Lucca também terá. Quem não dispõe de um mentor privado, precisa de boas fontes. O livro de Roberta é uma delas. Sofia me pediu um exemplar. Ganhou o livro da Roberta e, também, do Richard Susskind. O mundo mudou.

 

Fonte: Conjur

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