Recente decisão do STJ, reconhecendo dupla maternidade em caso de inseminação caseira, denota a urgência do tema

 

Registrar o nascimento de um recém-nascido é um ato rotineiro, mas alguns genitores/as podem esbarrar em burocracias extraordinárias. No caso de filhos gerados por duas mães fora de clínicas de fertilização, por meio da chamada inseminação artificial caseira (autoinseminação), o reconhecimento da filiação na certidão de nascimento pode exigir 12 anos de espera ou uma ação judicial.

 

Isso porque a técnica – que envolve a introdução sem supervisão médica de sêmen no canal vaginal da mulher – está à margem de regulamentações legais e provoca óbices no registro civil, suscitando questões que perpassam o melhor interesse da criança e impactos na saúde pública.

 

Panorama da reprodução assistida

 

No Brasil, a reprodução assistida segue critérios definidos pelo CFM – Conselho Federal de Medicina, que regulamenta procedimentos como inseminação artificial e fertilização in vitro.

 

Para o registro de criança gerada por reprodução assistida exige-se a apresentação de declaração do diretor técnico da clínica, atestando que o procedimento ocorreu sob supervisão médica e segundo normas éticas.

 

Esse documento, reforçado pelo provimento 63/17 do CNJ, é fundamental para assegurar a validade jurídica do vínculo parental.

 

Ocorre que tal documentação se torna um obstáculo significativo para famílias que recorrem à inseminação caseira, como muitos casais LGBTQIAPN+ e de baixa renda. Sem esse documento, essas famílias enfrentam dificuldades para obter o reconhecimento legal da dupla parentalidade.

 

Provimento

 

O IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, neste mês de outubro, apresentou ao CNJ pedido de revisão do provimento. O instituto argumentou que a exigência fere princípios como a dignidade humana e do melhor interesse da criança, pois limita o reconhecimento de diferentes estruturas familiares, contrariando a interpretação atual do STF sobre o reconhecimento de casais homoafetivos.

 

A ADFAS – Associação de Direito de Família e das Sucessões, a Anvisa e o CFM, a seu turno, manifestaram-se contra o pedido de providências.

 

Ao final, o Conselho negou o pedido do IBDFAM.

 

Melhor interesse da criança – Origem genética

 

A advogada e presidente da ADFAS – Associação de Direito de Família e das Sucessões, Regina Beatriz Tavares da Silva, alertou para os riscos da autoinseminação, como perfuração do colo do útero e possíveis transmissões de doenças, destacando que doações de sêmen são frequentemente oferecidas via redes sociais, o que aumenta o risco de contaminação com doenças como AIDS e sífilis.

 

Além disso, ressaltou que a ausência de dados do doador, com o desconhecimento da origem genética, pode dificultar futuros tratamentos médicos para as crianças.

 

Segundo Regina, a prática da inseminação caseira, sem regulamentação, gera situações complicadas, como potenciais disputas de paternidade, enquanto a reprodução assistida tem regras claras que eliminam vínculos de parentesco com doadores.

 

A advogada apontou ainda que o provimento CNJ 149/23, em seu art. 505, permite o reconhecimento de dupla maternidade para casais de mulheres após a criança completar 12 anos, caso a maternidade socioafetiva seja comprovada. Para crianças menores de 12 anos, o processo exige ação judicial.

 

Veja a entrevista:

Judicialização

 

No que se refere às ações judiciais, ainda neste mês de outubro, o STJ decidiu caso paradigmático relativo ao tema.

 

Sob relatoria da ministra Nancy Andrighi, por unanimidade, a 3ª turma da Corte permitiu o registro de dupla maternidade de criança gerada por inseminação caseira.

 

A decisão foi obtida apenas em sede de recurso especial após a negativa do cartório e das instâncias inferiores. O processo se estendeu por mais de dois anos até o mérito ser concluído.

 

A advogada Ana Carolina dos Santos Mendonça, representante das genitoras, enfatizou as limitações enfrentadas pela mãe não gestante, desde restrições de acesso a UTI neonatal até barreiras para acompanhar a criança em atividades cotidianas.

 

Ela apontou que o não reconhecimento de dupla parentalidade impediu a criança de usufruir plenamente dos laços familiares, privando-a de vínculos com avós e irmãos, perpetuando desigualdade jurídica.

 

Melhor interesse da criança – Segurança jurídica

 

Para Ana Carolina, as dificuldades no registro das crianças geradas por inseminação caseira revelam disparidade no Brasil: famílias com recursos para custear tratamentos em clínicas têm direito ao registro sem obstáculos, enquanto aquelas que recorrem à autoinseminação, por escolha ou necessidade, enfrentam barreiras.

 

A advogada observou que essa desigualdade afeta de forma particular as famílias LGBTQIAPN+, ressaltando que famílias heterossexuais podem registrar filhos gerados fora de clínicas sem comprovações adicionais.

 

Segundo a causídica, a ideia de que o reconhecimento de dupla parentalidade incentivaria a inseminação caseira reflete preconceito moral, pois a autonomia privada deveria ser respeitada, tanto quanto em relações heterossexuais casuais.

 

Ela também desmistifica a inseminação caseira como prática clandestina, destacando que muitos casos envolvem doadores conhecidos e apoio médico, garantindo segurança e consciência no processo.

 

Confira a entrevista:

A decisão do STJ aproxima-se do conceito de “direito vivo”, como descrito pelo jurista austríaco Eugen Ehrlich, ao refletir as necessidades reais da sociedade. Ao reconhecer a dupla maternidade, a Corte se alinhou à realidade cotidiana da família, suprindo lacuna que o ordenamento jurídico tradicional ainda não aborda plenamente.

 

O colegiado entendeu que essa seria a maneira adequada de priorizar o melhor interesse da criança e garantir seus laços afetivos, facilitando sua vida social e jurídica.

 

No entanto, conforme demonstrado, há também perspectiva contrária, que sugere que a facilitação da inclusão da mãe não genitora no registro da criança, com a alteração do provimento do CNJ, incentivaria inseminações caseiras, gerando riscos à saúde das mulheres e comprometendo – por outra ótica – o princípio do melhor interesse da criança, que permaneceria alheia à sua origem genética.

 

Enquanto o legislativo não se debruça sobre o tema, caberá aos tribunais, e ao CNJ, analisar cuidadosamente essa dupla ótica para interpretar qual seria a lente adequada ao melhor interesse da criança gerada por inseminação caseira.

 

Fonte: Migalhas

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