O CC regula cláusulas restritivas como inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade, protegendo bens doados e limitando sua alienação.
Cláusulas restritivas
A base legal que regulamenta a imposição de cláusulas restritivas ao direito de propriedade está majoritariamente no CC. Nele, são definidas as orientações sobre as cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade, especificando as condições para que sejam válidas, os limites de sua aplicação e as formas de proteção patrimonial que podem ser utilizadas para salvaguardar os bens transmitidos por meio de liberalidade (arts. 1.848, 1.849, 1.850, 1.911, 1.912 e 1.913).
É importante ressaltar que a inclusão das cláusulas restritivas mencionadas é permitida apenas em negócios jurídicos gratuitos e, para que tenham eficácia, precisam ser devidamente averbadas no registro de imóveis relativo ao bem objeto da transmissão.1 A cláusula de inalienabilidade de bens é uma condição secundária de atos de liberalidade, na qual o beneficiário perde o direito de alienar voluntariamente o bem recebido. Essa cláusula pode ser estabelecida por meio de disposições testamentárias ou contratuais, como em casos de doação.2
Portanto, a cláusula de inalienabilidade abrange atos como venda, doação, dação em pagamento, transação, hipoteca, penhor, anticrese, alienação fiduciária em garantia, entre outros. No entanto, é importante destacar que essa cláusula não impede que o imóvel seja adquirido por usucapião.3 A cláusula de incomunicabilidade, por sua vez, tem como objetivo proteger o bem doado em relação ao cônjuge do donatário, impedindo que ele se comunique com este, independentemente do regime de bens adotado no casamento ou união estável. Assim, visa proteger o herdeiro de eventuais incertezas futuras. 4
A impenhorabilidade proíbe que o bem doado possa ser executado pelo credor em execução de dívidas, considerando que este responde com todos os seus bens presentes e futuros no cumprimento de suas obrigações.5
Extinção das cláusulas restritivas
Em um primeiro momento, entende-se que as cláusulas restritivas impostas nas doações visam a proteção do patrimônio e do beneficiário, porém, não são raros os casos em que a medida acaba por prejudicar o favorecido futuramente. Nesse sentido, Flávio Tartuce leciona: “se a manutenção do clausulado oferecer sérios embaraços aos herdeiros, não há razão para a manutenção das restrições […]”(TARTUCE, 2023). Nos casos em que determinada cláusula impõe mais malefícios do que benefícios ao donatário, sua extinção pode ocorrer por meio de três formas: 1) pelo cumprimento de uma condição; 2) pelo decurso de um termo; e 3) pelo cancelamento judicial ou extrajudicial, dependendo das circunstâncias. Vejamos:
Condição
A condição consiste na vinculação da eficácia do negócio jurídico a um acontecimento futuro e incerto. Pode ser suspensiva, caso os efeitos do negócio dependam da concretização do evento, ou resolutiva, quando, com a ocorrência do evento, o negócio cessa seus efeitos.6 O CC, no seu art. 122, dispõe: São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.
Termo
Em um contrato de doação com a estipulação de um termo (prazo definido), pode-se concluir que o donatário já é titular do direito, mas estará impedido de exercê-lo até que o evento projetado ocorra, como o vencimento de uma data específica, por exemplo.7
Cancelamento
O § 2º do art. 1.8448 do CC dispõe que, havendo justa causa e autorização judicial expressa, os bens gravados podem ser alienados, cancelando-se, portanto, as cláusulas restritivas. Sobre o tema, Tartuce complementa: Apesar de a lei mencionar expressamente apenas o cancelamento da inalienabilidade, entendo que as outras cláusulas, de incomunicabilidade e impenhorabilidade, também podem ser extintas nos termos do diploma em questão. Para amparar tal afirmação, lembro que, pelo art. 1.911, caput, do CC/02 – que reproduz parcialmente a antiga súmula 49 do STF -, a instituição das cláusulas de inalienabilidade acarreta automaticamente a incomunicabilidade e a impenhorabilidade do bem.8
O cancelamento das cláusulas restritivas é possível quando o imóvel dos donatários apresenta dificuldades ou prejuízos para sua manutenção, conforme entendimento da 3° turma do STJ. A decisão expôs que, caso o bem doado se torne um ônus maior do que o benefício proporcionado, o cancelamento dessas cláusulas pode ser permitido. Esse entendimento busca preservar o interesse das pessoas, alinhando-se ao propósito original das cláusulas restritivas, que é justamente proteger o donatário.9
Ao julgar o REsp 2.022.860-MG, o relator, após analisar aspectos como a doação entre ascendentes e descendentes e a justa causa para o cancelamento das cláusulas restritivas, concluiu que “apesar de a doação ter sido feita sob o antigo Código Civil e de haver diferenças em relação às normas atuais, ambos os regramentos permitem a desconstituição das restrições em casos excepcionais.” Além disso, o colegiado entendeu que o levantamento do gravame sobre o bem doado “melhor atenderia à vontade dos doadores que o instituíram”, buscando assim “uma interpretação alinhada com a finalidade da legislação.” De mais a mais, destaca-se que em situações excepcionais, é admitido o levantamento ou a sub-rogação de cláusulas restritivas impostas pelo testador ou doador, como nos casos em que há risco de perecimento do bem, para garantir sua utilidade ou assegurar a dignidade do titular do patrimônio. Tal interpretação deve ser feita sob uma perspectiva civil-constitucional, respeitando integralmente os princípios constitucionais. Dessa forma, é incoerente garantir a uma pessoa um patrimônio sem possibilitar ao titular o uso necessário, especialmente quando este uso é imprescindível para sua sobrevivência.10
Sobre o tema do presente artigo, destaca-se o posicionamento de Marcelo Truzzi Otero: “Pelas mesmas razões, a autorização para alienar ou desonerar o imóvel gravado de impenhorabilidade atende a conveniência do herdeiro ou legatário que pretende utilizar os recursos para quitar as mensalidades da faculdade ou de curso de pós-graduação, assegurando-lhe, futuramente, o exercício de uma profissão e, mais do que isso, preservar-lhe a própria dignidade; o mesmo se dá para quitar crédito educativo; para oferecer o próprio imóvel em garantia do crédito para custeio agrícola, sem o que o imóvel doado ou herdado não cumprirá a função social, considerando a carência de recursos financeiros do herdeiro ou legatário para fazê-lo produtivo; ou, ainda, para permitir ao herdeiro necessário ou seu parente próximo submeter-se a tratamento estético para a correção de imperfeição física ultrajante” 11
Nota-se, portanto, que os tribunais têm autorizado o cancelamento de cláusulas restritivas em situações excepcionais, quando devidamente demonstrados os riscos e necessidades que envolvem o beneficiário da doação. A doutrina acompanha esse entendimento, uma vez que não faz mais sentido manter tais cláusulas para assegurar a vontade do doador se elas resultarem em prejuízos ao patrimônio e ao próprio beneficiário.
Conclusão
Ao refletir sobre as cláusulas restritivas, percebe-se que a intenção delas é proteger o patrimônio familiar, preservando o bem contra possíveis riscos, de forma a mantê-lo na família por um longo período, mesmo após o falecimento do instituidor. No entanto, é essencial ter cautela ao estipulá-las nos negócios jurídicos, considerando os prejuízos que podem resultar dessa decisão. Não são raras as ocasiões em que o beneficiário se vê forçado a cancelar a cláusula restritiva, seja em função de sua atividade, como ocorre com imóveis rurais, ou por necessidade.
Diante desse cenário, percebe-se que uma medida inicialmente planejada para proteger e blindar o bem pode, na prática, se transformar em uma armadilha. Além disso, mesmo com a possibilidade de cancelamento, a demora na anulação da cláusula pode gerar consequências irreversíveis. Nesse sentido, é importante observar que, ainda que o cancelamento de uma cláusula restritiva possa ser contrário à ideia inicial do doador, é fundamental analisar se a manutenção dessa restrição realmente atenderá à sua vontade.
Mesmo que a anulação da cláusula não fosse o desejo original, preserva-se como mais relevante a proteção e continuidade do patrimônio, sendo essa, de fato, a intenção primordial do instituidor. Portanto, é fundamental que se faça uma reflexão sobre o tema, sobretudo os profissionais do direito, que ao orientarem seus clientes, devem tomar o cuidado sobre a inclusão dessas cláusulas nos negócios jurídicos, para evitar que, no futuro, o resultado seja contrário ao previsto pelo instituidor.
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1 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: direito das coisas, direito autoral, volume 4. 2. ed. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 34.
2 NERY JUNIOR, Nelson. Código Civil comentado. Ob. Cit., p. 2776.
3 TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 6: direito das sucessões. Ob. Cit., p. 259.
4 MALUF, Carlos Alberto Dabus. Das cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e Impenhorabilidade. – 5. ed. – São Paulo: YK, 2018, p. 51.
5 NERY JUNIOR, Nelson. Código Civil comentado. Ob. Cit., p. 2776.
6 Idem, p. 418-419.
7 GAGLIANO, Pablo Stolze. O contrato de doação: análise crítica do atual sistema jurídico e os seus efeitos no direito de família e das sucessões. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 118.
8 TARTUCE, Flávio. O cancelamento das cláusulas restritivas inseridas no testamento e na doação. IBDFAM, Belo Horizonte. 2023. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1987/O+cancelamento+das+cl%C3%A1usulas+restritivas+inseridas+no+testamento+e+na+doa%C3%A7%C3%A3o+. Acesso em 18 out. 2024.
9 REsp 2.022.860/MG, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 27/09/2022.
10 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. São Paulo: Atlas, 2015. v. 7: Sucessões. p. 390
11 OTERO, Marcelo Truzzi. Justa causa testamentária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 178
Fonte: Migalhas
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