Este artigo parte de dois pressupostos fundamentais:

Em primeiro lugar, baseamo-nos no fato de que as regras constitucionais devem ser observadas em todas as situações em que forem pertinentes.

Afinal, não pode existir conflito entre elas — se houvesse, uma revogaria a outra. Não há, portanto, que se falar em maior ou menor grau de aplicação das regras constitucionais.

Ao contrário dos princípios, que frequentemente entram em colisão e, nesses casos, devem ser ponderados para determinar qual deles deve prevalecer de acordo com o caso concreto, com as regras o raciocínio é outro.

Aqui, recorremos à teoria de Robert Alexy, a qual, neste momento, apresentaremos de maneira bastante simplificada.

O filósofo alemão diferencia regras de princípios: os princípios são mandados de otimização, ou seja, devem ser aplicados sempre na maior medida possível. Já as regras são binárias: ou são cumpridas em sua integralidade, ou não são cumpridas. Não há meio termo. Não existe uma aplicação incompleta das regras.

Não se trata de concordarmos sempre com o autor, mas, nesta pequena porção de seu pensamento, Alexy acerta em cheio.

Imagine um caso em que um sem terra invade uma fazenda improdutiva. Fato é que, neste caso, não será possível aplicar integralmente ambos os princípios constitucionais da defesa da propriedade privada e da função social da propriedade.

Contudo, o juiz, ao decidir, deverá buscar aplicar cada princípio da melhor forma possível, dado o contexto. Mais especificamente, nessas hipóteses, é considerado que o princípio da função social da propriedade deve ser aplicado em maior grau.

No entanto, o direito à propriedade privada não é completamente ignorado, haja vista a gorda quantidade de dinheiro que costumam receber os latifundiários quando suas terras são desapropriadas.

Porém, se existisse uma regra dizendo que o consumo de álcool é crime, e outra afirmando que é permitido, ou se aplicaria integralmente uma das regras, ou se aplicaria integralmente a outra e, no caso da regra não aplicada, esta seria revogada (pelo menos no caso concreto).

Em qualquer situação em que uma regra se imponha, ela deve ser aplicada integralmente.

Nosso segundo alicerce teórico é ainda mais simples: os diplomas internacionais de direitos humanos estão repletos tanto de regras quanto de princípios.

E uma vez que esses tratados são incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro por meio da aprovação pelo Senado, as normas de direitos humanos adquirem status constitucional, incluindo tanto princípios quanto regras.

E mais: muitos estudiosos contemporâneos do Processo Penal entendem que as regras processuais internacionais de direitos humanos, especialmente as que se referem a questões processuais penais, são, inclusive, superiores às normas constitucionais.

Ou seja, se a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) — Pacto de São José da Costa Rica — foi internalizada no Brasil com status supralegal, nem mesmo uma norma constitucional que vedasse o duplo grau de jurisdição poderia se sobrepor a esse direito convencional.

Pode parecer estranho para quem não é especialista, mas a visão mais contemporânea (e à qual me alinho, diga-se de passagem) é de que o devido processo legal não se resume à obediência das regras constitucionais durante a ação penal. Pelo contrário, até mesmo a Constituição deve ser limitada pelos direitos humanos [1].

Vale destacar que o duplo grau de jurisdição, ou a dupla conformidade das decisões judiciais, não é apenas um princípio: é também uma regra, elevada ao patamar de norma constitucional pela adoção dos tratados internacionais.

É claro que há um caráter principiológico nessas normas, mas também existem regras claras, determinando a obrigatoriedade do duplo grau de jurisdição ou da dupla conformidade em qualquer julgamento de um país democrático.

O artigo 8.2, alínea “h”, da CADH, senhores, é uma regra. E, como tal, jamais pode ser ignorada ou mitigada.

Embora cada país atribua características próprias ao que entende por duplo grau de jurisdição, os critérios mínimos para que a regra do duplo grau de jurisdição seja atendida são claros, conforme o exposto na CADH.

Em linhas gerais, o direito ao duplo grau de jurisdição – ou à dupla conformidade – significa, no mínimo, que qualquer indivíduo, ao ser julgado criminalmente, tem direito a um recurso que possa ser interposto pelo próprio indivíduo (sem necessidade de autorização estatal), com ampla devolução da matéria julgada, que seja capaz de substituir a primeira decisão e que, por fim, não possua qualquer outro requisito de admissibilidade além mera sucumbência.

Até aqui, muito simples. Tudo como antes no mundo de Abrantes.

Única exceção

Se analisarmos os procedimentos e ações penais brasileiras, é possível afirmar que, com uma única exceção, toda e qualquer decisão proferida em primeira instância estará sujeita ao duplo grau, ou à dupla conformidade.

Mesmo que, de imediato, não caiba recurso contra todas as decisões interlocutórias proferidas pelos juízes de primeira instância, qualquer decisão tomada ao longo de todo o processo será novamente analisada no recurso de apelação.

Até mesmo o recurso de habeas corpus, que não se trata de julgamento de primeira instância propriamente dito, terá seu conteúdo plenamente devolvido se houver interposição de recurso ordinário constitucional, cuja única exigência é a sucumbência da parte na decisão que defere ou indefere a ordem.

A única exceção da legislação brasileira ocorre nas decisões proferidas em primeira instância nas ações penais de competência originária dos Tribunais Regionais.

Neste caso, seja contra decisão interlocutória, seja contra o acórdão sentenciador, os únicos recursos cabíveis são o recurso especial e o recurso extraordinário.

Nenhum desses recursos possui amplo efeito devolutivo, e ambos exigem uma série de pressupostos de admissibilidade (vale ressaltar que esses pressupostos são, em minha opinião, excessivos).

Isso significa que é possível, e até provável, que prefeitos municipais sejam julgados e condenados com base em uma única decisão, sem possibilidade de recurso.

No turvo cenário de entendimentos jurisprudenciais questionáveis, que teve início na Ação Penal 470, a consolidação do entendimento de que são admissíveis os embargos de infringência em ações penais de competência originária da Corte Superior foi uma verdadeira brisa de bom senso.

Naquela ocasião, decidiu-se pela aplicabilidade do parágrafo único do artigo 609 do Código de Processo Penal, com base no princípio da simetria, em relação ao artigo 333 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

Esses embargos infringentes resultaram, entre outras consequências, na absolvição de oito réus pelo crime de formação de quadrilha e de vários outros pelo crime de lavagem de dinheiro, além de um memorável embate entre o educado ministro Roberto Barroso e o, digamos, mais enérgico que polido, ministro Joaquim Barbosa.

Mais recentemente, esse entendimento foi reforçado em duas decisões, nos casos AP409-EI-AgR/CE e AP863-EI-AgR/SP, nas quais se determinou um número mínimo de votos divergentes para que fosse admissível a interposição dos embargos de nulidade e divergência.

Embargos são única forma de garantir o duplo conforme

O que se extrai de ambas as decisões não é a admissibilidade dos embargos de divergência apenas nas hipóteses em que houver votos divergentes suficientes para modificar a maioria, mas sim a necessidade de sempre admitir esses embargos, inclusive nos tribunais regionais.

Apesar das divergências sobre os pressupostos de admissibilidade dos embargos infringentes nas Turmas (como a quantidade de votos e a natureza dos votos vencidos, questões que se aplicam exclusivamente ao STF), o que ficou claro e foi fortalecido pelas decisões do Plenário do STF foi exatamente que o efeito jurídico interno do duplo grau de jurisdição, conforme o artigo 8.2, alínea “h”, da CADH, é permitir a interposição de embargos infringentes, uma vez que esse recurso concretiza o postulado do duplo exame e garante a aplicabilidade da cláusula convencional de proteção judicial efetiva.

Nesse contexto, o que se busca não é “unificar o entendimento da câmara julgadora” ou alterar o número de desembargadores que votam de determinada forma.

Quando há divergência nas decisões de ações penais de competência originária dos Tribunais Regionais, aumentar o número de julgadores por meio dos embargos de divergência costuma ser impossível, uma vez que as decisões são tomadas pela câmara cheia.

No entanto, os embargos de divergência acabam sendo a única forma de garantir o duplo conforme, já que não existe outro recurso que permita a devolução da matéria sobre a qual houve divergência, sem outros requisitos além da sucumbência da parte.

Ipsis litteris, preleciona Gilberto Niederauer Corrêa: “De decisões não unânimes, de Câmaras Criminais isoladas, que causem gravame aos acusados, sempre caberão Embargos Infringentes e de nulidade, pouco importando tratar-se de processos de competência originária ou recursal”.

A nosso sentir, considerando que o duplo grau ou duplo conforme é uma regra constitucional, sua vigência não pode, em hipótese alguma, ser negada, sempre que sua aplicação for compatível com os fatos.

E, antecipando a inevitável pergunta sobre quem terá competência para julgar esses embargos, respondo: nossos juristas e juízes são pessoas espertas e bem-preparadas, de modo que mantenho total confiança em sua capacidade de resolver esse “minúsculo” problema.

Afastando o argumento superficial de que, como as decisões que condenam prefeitos emanam de câmaras criminais completas (com cinco desembargadores), não há votos ainda não prolatados capazes de inverter a maioria, ressaltamos que nada impede que esses desembargadores mudem de ideia, reconheçam alguma nulidade ou, simplesmente, percebam o erro da primeira decisão.

E reforçamos: é exatamente por isso que se exige o duplo conforme!

“Duplo conforme significa que as decisões penais que afetam direitos fundamentais precisam se submeter à recorribilidade, gerando um duplo esforço cognitivo da situação.”

Não é necessário que esse duplo esforço cognitivo seja feito por pessoas de hierarquia superior. Nem mesmo é imprescindível que seja feito por outras pessoas (embora seja desejável).

Podemos relativizar nosso entendimento sobre a função dos embargos de infringência, assim como podemos ajustar a interpretação do que, em alguns casos, entendemos por duplo grau de jurisdição ou duplo conforme.

No entanto, o que definitivamente não podemos fazer é deixar de obedecer às regras constitucionais, especialmente aquelas oriundas dos tratados internacionais de direitos humanos.

 

[1] Nesse sentido, tivemos a sorte de ouvir palestra do doutor Felipe Martins Pinto. Infelizmente não fomos capazes de encontrá-la online.

Fonte: Conjur

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