Analisa a compensação por cuidados familiares no divórcio inglês e sua influência na reforma civil brasileira, reconhecendo o valor econômico do trabalho doméstico

1. A evolução das provisões financeiras pós-divórcio na Inglaterra

O divórcio existe na Inglaterra há séculos. Basta lembrar da conturbada vida amorosa de Henrique VIII que, quando tinha seu direito ao divórcio negado pelo Parlamento, decapitava as esposas. No entanto, sua quarta esposa, Anne of Cleves, teve a perspicácia de sair viva do casamento indesejado seis meses após sua realização, recebendo uma pensão generosa, várias propriedades e ainda o título de “irmã do Rei”, permanecendo na corte tranquilamente pelo resto da vida.

Não obstante, as questões atinentes às “provisões financeiras” (ou pensão alimentícia) ao ex cônjuge podem ser estudadas com maior proximidade ao nosso ordenamento a partir da pré-decada de 1970, quando os tribunais se limitavam a atribuir pagamento em dinheiro para esposas não proprietárias de bens.

As mulheres eram vistas como responsáveis pelos filhos, liberando o marido para suas atividades econômicas e, portanto, com direito a compartilhar seus frutos. Em consequência das mudanças culturais advindas com a igualdade de gênero, a Matrimonial Causes Act foi modificada, prevendo a possibilidade de substituir a pensão periódica em parcela única, através da aferição de vários fatores, como renda, capacidade de ganho, propriedades ou outros recursos financeiros, necessidades financeiras, obrigações e responsabilidades de cada parte, o padrão de vida desfrutado pela família antes do fim do casamento, a idade de cada parte e a duração do casamento e, antes de mais nada, o bem estar dos filhos.

Vale lembrar que, nos países de tradição common law, os precedentes judiciais constituem fonte primária do Direito, sendo sua análise essencial para a compreensão da aplicação das normas jurídicas. No emblemático caso McFarlane v McFarlane [2006], a esposa havia abdicado de sua carreira jurídica por 16 anos para se dedicar integralmente à família. Reconhecendo o impacto dessa decisão em sua vida profissional e financeira, o tribunal lhe concedeu uma pensão anual, a fim de compensá-la de forma justa pelas perdas sofridas durante o casamento, sobretudo pela redução de seu potencial de ganho. A corte entendeu que a mera divisão equilibrada dos bens adquiridos na constância da união não seria suficiente para reparar os prejuízos advindos da interrupção de sua trajetória profissional, sendo necessários pagamentos periódicos para assegurar-lhe uma compensação adequada.

O caso é citado pela Câmara dos Lordes para esclarecer e enfatizar que o objetivo primordial continua sendo atingir o resultado justo no equilíbrio patrimonial ao fim do casamento, sendo que as ferramentas utilizadas para tanto é a avaliação das necessidades, compensação e o direito à partilha de bens. Mais especificamente, a Baronesa Hale, no caso Miller; McFarlane, sugeriu que “o objetivo final é dar a cada parte um início igual no caminho para uma vida independente”.

Ambos os casos são mencionados naquele país para definir o reequilíbrio da vida financeira do ex casal tanto nos casamentos de curta duração (Miller x Miller), como nos casamentos de longa duração (McFarlane x McFarlane), inclusive no que tange a identificação do monte partilhável. No caso McFarlane x McFarlane, apesar de não ter havido contribuição direta da esposa na aquisição dos bens durante o casamento, já que sua atividade desempenhada era de homemaker em contraposição a money-eraner do marido, o tribunal reconheceu que a condição de desempenho dos trabalhos domésticos significava contribuição indireta, estabelecendo seu direito à uma parcela dos bens do marido.

Já o caso Miller v Miller (2005) sofreu diversas críticas pelos operadores do Direito daquele país, já que a duração do matrimônio foi de apenas três anos, tendo a esposa reconhecido seu direito à parcela significativa do patrimônio do ex marido.

John Eekelaar, por exemplo, descreveu o julgamento em Miller como uma “descida ao caos” (Eekelaar 2005), enquanto Rebecca Bailey-Harris declarou: É impossível prever quando um princípio estatutário articulado será apreendido em um julgamento, ou quando um novo subprincípio será inventado, ou quando a busca por um princípio será simplesmente rejeitada (Bailey-Harris 2005).

De todo modo, a ideia embrionária desses dois precedentes foi a introdução da compensação pecuniária por desvantagens de oportunidades perdidas em razão do casamento. A controvérsia da sua aplicabilidade decorre especialmente do fato do Direito naquele país ser consuetudinário, de onde advém o excesso de discricionariedade dos julgadores, e a insegurança jurídica às partes. Segundo Auchmuty 2016, “(…) é uma loteria completa” (Hitchings 2009, p. 200). (…) A National Chair of Resolution, organização de advogados de família comprometida com o divórcio sem confronto, em um artigo intitulado “Vamos Jogar Assistência Ancilar” comparou o processo a um “jogo de azar” (Greensmith 2007, p. 203)”.

Ao contrário daquele país, no Brasil vigora a tradição da Civil Law. Nos baseamos em códigos e leis escritas, e os precedentes apenas tem força vinculante nos casos expressamente indicados na própria lei. A liberdade judicial não é ampla como ocorre na common law, não sendo dado ao juízo a possibilidade de criar novas regras, diminuindo consideravelmente o critério da loteria ou jogo de azar na resposta judicial aos fatos da vida. Ou ao menos esse é o objetivo.

2. Da prestação compensatória no projeto de reforma do Código Civil:

A projeto de reforma do Código Civil traz no art. 1.688, §§ 1º e 2º a regra de que, no casamento ou união estável regidos pela separação convencional de bens “Ambos os cônjuges ou conviventes são obrigados a contribuir para as despesas do casal na proporção dos rendimentos de seu trabalho e de seus bens, salvo estipulado em contrário no pacto antenupcial, ou em escritura pública de união estável. § 1º No regime da separação, admite-se a divisão de bens havidos por ambos os cônjuges ou conviventes com a contribuição econômica direta de ambos, respeitada a sua proporcionalidade. § 2º O trabalho realizado na residência da família e os cuidados com a prole, quando houver, darão direito a obter uma compensação que o juiz fixará, na falta de acordo, ao tempo da extinção da entidade familiar.”

No regime da separação de bens cada cônjuge mantém a propriedade exclusiva dos bens que já possuía antes do casamento e dos que adquirir durante. Em suma, não há comunicação automática dos aquestos. É a escolha mais acertada para casais que já possuem patrimônio consolidado antes do casamento, ou atividades profissionais ou empresariais independentes, optando pela autonomia financeira.

O regime da separação de bens depende, e continuará a depender com a reforma do Código, da disposição da vontade expressa dos cônjuges ou conviventes. Não obstante a opção inicial do casal pela manutenção de patrimônios separados, pode vir a ocorrer que, durante o casamento ou união estável, por contingências da vida, um deles seja forçado a se afastar da vida profissional para exercer os deveres de cuidados aos filhos advindos com necessidades especiais, ou outros imprevistos familiares.

O projeto tem como objetivo resguardar a boa-fé e assegurar a equidade nas relações matrimoniais, propondo a participação na partilha de bens mesmo sob o regime de separação convencional, sempre que comprovada a contribuição econômica de ambos os cônjuges ou conviventes para sua aquisição. Além disso, adota-se, mutatis mutandis, entendimento consagrado pelas cortes inglesas, segundo o qual aquele que se afasta do mercado profissional para se dedicar integralmente aos cuidados da família – quando necessário – deve ser compensado financeiramente, com o objetivo de proporcionar a ambas as partes condições igualitárias para recomeçar a vida de forma independente. Ou, nas palavras da Baronesa Hale, “o objetivo final é dar a cada parte um início igual no caminho para uma vida independente”.

A fixação da prestação compensatória inaugurada no nosso ordenamento pela reforma dependerá de fatores como: o grau e tempo de dedicação empenhados, duração da união, impacto na carreira profissional do cônjuge que se dedicou ao lar, condições econômicas de ambos os cônjuges, as necessidades de quem depende dos cuidados, a capacidade de reingresso no mercado profissional de quem presta os cuidados, entre outros que deverão ser observados pelo julgador no caso concreto, e poderá ser fixada em parcela única ou periódica.

Registre-se que a previsão não se confunde com os alimentos compensatórios patrimoniais e humanitários, cuja previsão vem nos arts. 1.709-A e 1.709-B da Reforma, definindo os alimentos compensatórios patrimoniais como aquele devido ao cônjuge ou convivente, cuja meação seja formada por bens que geram rendas, e que se encontrem sob a posse e a administração exclusiva do seu parceiro, enquanto os alimentos compensatórios humanitários1 são devidos ao cônjuge ou convivente cuja dissolução do casamento ou da união estável produza um desequilíbrio econômico que importe em uma queda brusca do seu padrão de vida.

Por sua vez, a prestação compensatória prevista no art. 1.688, § 2º, destina-se ao cônjuge ou companheiro que, sob o regime da separação convencional de bens, tenha se dedicado aos deveres de cuidado durante o casamento ou união estável e, em razão dessa atividade, se afastado de sua carreira ou atividade profissional.

3.Conclusão:

Percebe-se que, embora originadas em sistemas jurídicos distintos – o common law britânico, marcado pela prevalência dos precedentes e ampla discricionariedade judicial, e o civil law brasileiro, estruturado sobre normas codificadas -, as preocupações com a equidade econômica no rompimento das relações conjugais convergem na tentativa de mitigar as desvantagens financeiras suportadas por quem, em prol da família, abdicou de sua trajetória profissional.

A introdução do §2º do art. 1.688 no projeto de reforma do Código Civil representa, nesse sentido, um avanço no reconhecimento jurídico do trabalho doméstico e dos deveres de cuidado, atribuindo-lhes valor econômico e conferindo ao cônjuge ou convivente que se dedicou a essas funções o direito a uma compensação quando vigente o regime da separação convencional de bens, na qual poderia ver-se despido de qualquer vantagem financeira por não ter exercido atividade econômica externa durante a união e, por isso, não ter acumulado patrimônio.

Trata-se de uma inovação que dialoga com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade familiar e da igualdade substancial entre os cônjuges, reforçando a ideia de que a autonomia patrimonial prevista no pacto antenupcial não pode servir de escudo para perpetuar situações de injustiça material ao fim da união, o que possivelmente levará ao entendimento de que se trata de norma de ordem pública e, por conta disso, não pode ser afastada pela vontade das partes.

Assim, a reforma aproxima o ordenamento jurídico brasileiro das soluções já adotadas por outros países, havendo, no entanto, que serem estabelecidos parâmetros mais claros para a quantificação da compensação, como aqueles indicados nesse artigo, sem afastar a necessária apreciação do caso concreto e a ponderação dos interesses envolvidos.

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1 Definição atribuída por Rolf Madaleno na obra “Alimentos Compensatórios – Patrimoniais Humanitários”. O livro atualmente está na 2ª edição (2024), pela editora Forense.

Auchmuty, R., 2016. The Limits of Marriage Protection: in Defence of Property Law. Oñati Socio-legal [online], https://ssrn.com/abstract=2887017

Eekelaar, J., 2005. Miller v. Miller: The descent into chaos. Family Law.

Bailey-Harris, R., 2005. The paradoxes of principle and pragmatism: Ancillary relief in England and Wales. International Journal of Law, Policy and the Family.

MADALENO, Rolf. Alimentos compensatórios: patrimoniais humanitários. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.

Fonte: Migalhas

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