A história dos direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro no Direito brasileiro é marcada pelo desprestígio. Tal discussão, no âmbito do Direito Civil brasileiro, remonta às Ordenações Filipinas, nas quais o cônjuge ocupava o quarto lugar na ordem vocacional hereditária e só era chamado à sucessão na ausência de colaterais até o décimo grau.

Com a Lei 1.839/1907, chamada de Lei Feliciano Pena, o cônjuge passou a figurar no terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, antes dos colaterais, os quais passaram a herdar somente até o quarto grau, fato este consolidado pelo Código Civil de 1916, o Código de Beviláqua, marco normativo que estabeleceu as bases para a sucessão hereditária no país [1].

No contexto da época, o referido código delineou de forma clara e precisa as prerrogativas e limitações dos herdeiros, conferindo ao cônjuge uma posição distinta, mas não necessariamente privilegiada, em relação ao companheiro.

No Código Civil de 1916, o cônjuge ostentava a qualidade de herdeiro apenas em casos de inexistência de descendentes ou ascendentes, conforme previsto no artigo 1.603. Além disso, o cônjuge não era considerado herdeiro necessário, direito reservado apenas aos descendentes e ascendentes, conforme disposto no artigo 1.721 do referido diploma legal. Importante rememorar que, em tal época, não existia a figura do companheiro, pois este era tratado como concubino, logo, privado de qualquer direito sucessório.

A não previsão automática do cônjuge como herdeiro concorrente ou necessário no Código Civil de 1916 evidenciava a lacuna existente no ordenamento jurídico em relação à proteção dos direitos sucessórios do cônjuge sobrevivente. Essa lacuna, embora refletisse os paradigmas familiares predominantes na sociedade da época, suscitava debates acerca da necessidade de equidade e de justiça na distribuição da herança, instigando a necessidade de reformas legislativas que contemplassem de forma mais adequada as relações familiares contemporâneas.

Reparação histórica

Ao longo das décadas seguintes, diversas reformas legislativas foram implementadas, visando adaptar o direito sucessório às transformações sociais e culturais da época. Uma das principais alterações foi o reconhecimento da união estável como entidade familiar por meio da Constituição em 1.988, o que representou um avanço significativo na legislação brasileira, refletindo uma maior inclusão e proteção das relações afetivas não formalizadas.

No entanto, somente com o advento do Código Civil em 2002 é que os direitos sucessórios do cônjuge foram significativamente ampliados. O cônjuge passou a ter direito, além de eventual meação de bens, à quota parte da herança em concorrência com os descendentes (a depender do regime de bens) e com os ascendentes, consolidando também sua posição como herdeiro necessário.

A situação do companheiro, novamente, não fora das mais prestigiadas, pois o polêmico artigo 1.790 trazia uma clara diferenciação do direito sucessório dos companheiros em relação aos cônjuges, trazendo, muitas das vezes, grandes injustiças sociais, pela nítida desproteção ao companheiro. Somente em maio do ano de 2017, o Supremo Tribunal Federal enfrentou o tema ao julgar o Recurso Extraordinário n° 878.694 com repercussão geral reconhecida (Tema n° 809), declarando a inconstitucionalidade do referido artigo, trazendo, assim, uma verdadeira reparação histórica ao companheiro que outrora fora esquecido pelo Direito Civil [2].

Logo, passados, 29 anos da promulgação da Constituição, e 15 anos da vigência do Código Civil, é que finalmente pudemos falar sobre equiparação de direitos no ramo do direito das famílias e do direito sucessório ao companheiro.

Temeridade

No entanto, o anteprojeto de reforma no Novo Código Civil tem abalado esses alicerces, sinalizando uma possível mudança temerosa nos direitos sucessórios na sucessão legitima. A comissão formada por juristas, ao apresentar o anteprojeto de lei, propõe a extinção do direito concorrencial do cônjuge, hoje prevista no artigo 1.829, e da condição de herdeiro necessário, prevista no artigo 1.845 do Código Civil de 2002, trazendo assim, uma clara ruptura radical da evolução histórica dos direitos sucessórios.

O cônjuge e o companheiro, outrora protegidos pela lei como herdeiro imprescindível, enfrentam agora a perspectiva de serem relegados à margem da herança, sujeitos aos caprichos testamentários do cônjuge falecido e à possibilidade real de serem excluídos da sucessão.

Além disso, dados estatísticos recentes revelam que o Brasil possui uma cultura testamentária ainda muito baixa. De acordo com dados da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR), disponibilizados na 5ª edição do relatório intitulado “Cartório em Números”, o Brasil registrou entre os anos de 2007 até o final de novembro de 2023 um total de menos de 492.618 mil testamentos, o que dá uma média anual de menos de 29.000 mil testamentos por ano. No mesmo período, foram registrados (20 milhões) de casamentos, (58 milhões) de nascimentos e (25 milhões) de óbitos, em um país com população atual de mais de (220 milhões) de pessoas [3].

Outro dado alarmante é que mais da metade desses testamentos foram lavrados em apenas quatro estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná, demonstrando assim que nos estados do Norte, Nordeste e Centro Oeste a prática testamentária é baixíssima ou quase inexistente [4].

Sabe-se que no Brasil não é cultural falar sobre morte ou fazer planejamentos sucessórios. Ao longo dos anos, algumas pessoas começaram a buscar tal proteção patrimonial, mas ainda em números muito baixos. Outrossim, é aceitável que no regime da separação pactuada de bens, elaborado mediante pacto antenupcial, o cônjuge não seja herdeiro concorrente ou necessário.

Também é aceitável no regime da comunhão universal de bens, como atualmente já existe, pois neste último, temos a certeza de que o cônjuge não ficará desguarnecido se houver bens de um ou ambos os cônjuges. Porém, a retirada do direito no regime da comunhão parcial de bens, que é o regime base do nosso ordenamento jurídico desde 1977, é nitidamente um retrocesso.

Sabe-se que o atual artigo 1.829 do diploma civilista, em especial o seu inciso primeiro, tem uma redação extremamente confusa, o que obrigou juristas e julgadores a se debruçarem para interpretá-lo. Porém, não é a simples exclusão do cônjuge e companheiro do rol que resolverá tal problema. Talvez, a melhor solução seria a simplificação do citado artigo, onde ocorreria a concorrência apenas no regime de comunhão parcial de bens:

“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente, se vinculados pelo regime da comunhão parcial de bens, exceto quanto aos bens que concorrer na meação;
II – aos ascendentes, em concorrência ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente
III – ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente;
IV – aos colaterais até o quarto grau.”

Em resumo, é necessária uma pequena alteração no artigo citado, mas sem a retirada do cônjuge como herdeiro concorrente, e finalmente retirando as eternas discussões sobre o regime da separação total de bens.

Já a solução para o artigo 1.845 seria extremamente mais simples pois bastaria a redação ser a seguinte:

“Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge ou companheiro, exceto se casados ou conviventes pelo regime de separação de bens;”

Impende salientar que, acertadamente, o projeto do novo código propõe a revogação do artigo 1.641 do atual código civil, que trata sobre o regime de separação obrigatória de bens, e dos artigos 1.672 a 1.686 também do atual do código civil, que tratam do Regime de Participação Final nos Aquestos. Logo, os únicos regimes de bens existentes, pela proposta, serão os da Comunhão Universal de Bens, Comunhão Parcial de Bens e Separação Pactuada de Bens. Assim, as soluções acima propostas trariam grande segurança jurídica para todos, em especial aos cônjuges e companheiros.

Um ponto importante a registrar é que, em caso de aprovação do texto na forma que está, o cônjuge prejudicado, como regra, será o cônjuge virago, ou seja, a mulher. Muitas vezes, ela dedica-se integralmente à família durante o casamento ou união estável, renunciando a oportunidades profissionais e financeiras para cuidar do marido, do lar e dos filhos. Com a mudança proposta pelo anteprojeto, ao enfrentar a perda do cônjuge ou companheiro, ela se verá desprotegida e desamparada, sem os direitos sucessórios que atualmente lhe são garantidos.

Ao retirar a condição de herdeiro necessário e herdeiro concorrente do cônjuge e do companheiro, o novo Código Civil pode criar lacunas na proteção dessas pessoas em casos de sucessão legítima. Essa supressão de direitos sucessórios representa um retrocesso nas conquistas alcançadas em termos de reconhecimento e proteção das diversas formas de constituição familiar.

Análise cuidadosa

Em uma leitura menos atenta do projeto de reforma, talvez possamos até nos iludirmos sobre a criação de novos direitos ao cônjuge ou companheiro, como por exemplo no inciso I do Artigo 1.832, que passaria a prever que quando o herdeiro comprovar que conviveu com o autor da herança e não mediu esforços para zelar e cuidar do mesmo nos últimos anos de vida, se concorrer à herança, terá direito imediato a 10% da sua quota hereditária.

Talvez se poderia até pensar que tal disposição foi prevista para beneficiar o cônjuge e companheiro que na grande maioria das vezes é quem cuida do outro consorte na enfermidade. Mas, pela redação proposta, o cônjuge ou companheiro será apenas herdeiro de terceira classe, ou seja, se inexistentes descentes ou ascendentes, o que demonstra de forma clara um novo desprestigio aos que, como regra, dedicaram a vida ao companheiro ou cônjuge.

Outra exclusão clara do cônjuge é a previsão do novo Parágrafo Único do artigo 1.846 que firma que o testador poderá destinar até um quarto da legitima a descendentes e ascendentes que sejam considerados vulneráveis ou hipossuficientes, sem citar o cônjuge ou convivente.

Portanto, é crucial que as propostas de alteração no novo Código Civil sejam cuidadosamente analisadas e debatidas, levando em consideração os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

Diante desse cenário, torna-se imperativo um debate amplo e aprofundado sobre as implicações dessas mudanças propostas. É fundamental considerar não apenas as questões jurídicas envolvidas, mas também as ramificações sociais e humanas dessa reforma. A preservação dos direitos do cônjuge e companheiro na sucessão hereditária não é apenas uma questão legal, mas uma questão de justiça e equidade para com aqueles que, ao longo da vida conjugal, compartilharam não somente bens materiais, mas também sonhos, aspirações e desafios.

Em última análise, a morte dos direitos sucessórios de concorrência e da condição de herdeiro necessário do cônjuge e do companheiro, proposta no Novo Código Civil não é apenas uma questão técnica ou legislativa, mas uma questão de valores e princípios fundamentais. Resta-nos, como sociedade, refletir sobre o tipo de proteção e reconhecimento que desejamos garantir aos cônjuges e companheiros em momentos de vulnerabilidade extrema e necessidade premente.

Referências bibliográficas

[1] Disponível aqui.

[2] Disponível aqui.

[3] Disponível aqui.

[4] Disponível aqui.

Fonte: Conjur

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