Apesar de haver imunidade penal para o cônjuge que praticar delito patrimonial em face do outro durante a sociedade conjugal, não se exime sua responsabilização criminal, haja vista o alargamento do entendimento acerca da violência doméstica e familiar
 
Em 30 de dezembro de 1976, em Búzios, RJ, Ângela Diniz foi assassinada com 3 tiros, dois na cabeça e um na nuca, pelo seu então namorado Doca Street. O crime passional chocou a comunidade carioca, especialmente as mulheres.  A perplexidade era gritante e não demorou muito para feministas do Brasil inteiro se manifestarem quanto ao ocorrido buscando  justiça pela socialite. No entanto, como em muitos outros casos, o réu e assassino permaneceu impune sob o argumento de “legítima defesa da honra”.
 
Foi logo após esse emblemático fato que as instituições governamentais brasileiras primeiro passaram a debater sobre o tema da violência contra a mulher. Foram promulgadas leis e desenvolvidas medidas com o fim de proteger o grupo feminino, a exemplo da instauração da primeira delegacia especializada para mulheres, em 1985. Contudo, foi apenas com o espantoso caso da esposa torturada até quase a morte1 que se viu a obrigação não apenas política, mas humanitária de criar um instrumento jurídico eficiente para combater especificamente a violência de gênero.  
 
Assim surge a lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que criou diversos aparatos jurídicos para coibir e, especialmente, punir aqueles que fossem autores de casos de violência doméstica. Suas premissas partem da complexidade desse tipo penal e se estruturam na necessidade de proteção, punição e educação sobre a temática. Ainda, com a delimitação e definição do que é violência contra a mulher, a lei faz uso de medidas para promover a celeridade nos processos – por meio de juizados especializados – a partir da tutela penal exclusiva com a finalidade de cortar os laços de violência ajudando na independência da mulher.
 
A referida lei ascendeu como uma revolução copérnica sobre a forma de interpretação e tipificação penal em matéria de tutela de direitos das mulheres: ampliou o que se entende por violência doméstica ao mesmo tempo que incluiu condutas que antes sequer eram tidas como tipos penais. Ao analisar a legislação se vê cinco grandes pilares que sustentam os tipos de violência de gênero: violência física, psicológica, sexual, moral e violência patrimonial.
 
No entanto, no presente artigo nos limitaremos a discutir um tipo especial de violência tida como uma das principais formas de aprisionamento2 feminino: a violência patrimonial.
 
De acordo com a lei,  se entende por violência patrimonial qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.3
 
Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, a violência patrimonial “são todos os atos comissivos ou omissivos do agressor que afetam a saúde emocional e a sobrevivência dos membros da família. Inclui o roubo, o desvio e a destruição de bens pessoais ou da sociedade conjugal, a guarda ou retenção de seus documentos pessoais, bens pecuniários ou não, a recusa de pagar a pensão alimentícia ou de participar nos gastos básicos para a sobrevivência do núcleo familiar, o uso dos recursos econômicos da pessoa idosa, da tutelada ou do incapaz, destituindo-a de gerir seus próprios recursos e deixando-a sem provimentos e cuidados”.4
 
Ainda, Mário Delgado expõe: “O atentado contra o patrimônio da mulher também pode ser praticado, por exemplo, pelo marido que subtrai ou faz uso exclusivo dos bens comuns”.5
 
A problemática sobre o assunto se situa justamente junto à  falta de informação sobre a matéria. Pouco se comenta sobre a violência patrimonial e sua abrangência pelo Código Penal Brasileiro. Tal desinformação faz preponderar o entendimento que apenas é violência aquilo que é físico, sendo este tipo dificilmente observado isoladamente, levando em consideração o ciclo da violência observado por Walker em que a violência física é a última do ciclo.6 Desse modo a violência patrimonial está muito mais relacionada aos demais tipos à medida que a limitação patrimonial da mulher acarreta diretamente na sua dependência do agressor.
 
Um caso bastante específico e pouco comentado tem relação com a violência patrimonial entre casais que compõem o quadro societário de uma empresa. A fraude e o estelionato são temas comuns neste paradigma, especialmente quando há a intenção de divórcio, que nada mais são do que formas ilícitas de transgredir e prejudicar o direito do cônjuge.7
 
Mamede e Manede descrevem alguns exemplos de artifícios utilizados pelo agressor para asfixiar economicamente a vítima, tais quisla cessão de quotas ou ações no processo de divórcio e até dilapidação de patrimônio negativo ou endividamento intencional da empresa tida em conjunto com a finalidade de prejudicar o cônjuge. Ademais, segundo Madaleno8, as fraudes acontecem especialmente quando uma parte, de forma dolosa, busca desmedidamente a liquidação do patrimônio, buscando reduzir ou aniquilar ao máximo a participação material do cônjuge. Desse modo, o autor do ilícito pode, por vias fraudulentas  promover o desvio de receitas, a ocultação de lucros, a manipulação de transações, a apropriação dos bens e ativos circulantes (caixa da empresa), e a redução  do valor da participação societária, assim acarretando o empobrecimento da vítima.
 
Aqui, um importante tema que tem sido debatido trata de certa imunidade que o código penal trouxe ao agressor durante o período do casamento em relação ao patrimônio, observadas pelos artigos 181 e 182 do CP, que dispõem sobre a isenção de pena àqueles que cometem agressão ao patrimônio do cônjuge.9
 
Desse modo, apesar de a Lei Maria da Penha  abstratamente proteger a mulher contra a violência patrimonial,  a mulher acaba não estando protegida quando da vigência do casamento ou união estável. Assim, enquanto não se consumar a separação, seja por divórcio ou dissolução da união (separação de fato), a mulher fica à mercê de impossibilidade de punição do companheiro que viola seus direitos em tese tutelados.
 
Vale lembrar que, ao longo do tempo, as relações empresariais se sofisticaram e instigaram a regulamentação de diversos âmbitos do direito, tal qual o direito penal. A promulgação do Código Penal, na década de 1940, fez valer uma esteira de tipificações cujo objetivo é a tutela do patrimônio enquanto bem jurídico. Essa evolução, no entanto, deixou brechas por meio da escusa absolutória descrita no artigo 181. À época, optou-se por deixar de recobrir por tutela as condutas relacionadas às questões patrimoniais familiares. Dispensadas ilações e considerando a evolução histórica da sociedade brasileira, a decisão adotada teve por premissa promover a guarida da conduta do chefe de família. 
 
O artigo 18310, por sua vez, indica quais as hipóteses em que as escusas absolutórias não se aplicam, indicando no inciso I, além dos crimes de roubo e extorsão, aqueles praticados com emprego de grave ameaça ou violência à pessoa. Daí, compreende-se que a violência ou a grave ameaça não precisam, necessariamente, ser elementares do tipo penal, mas podem tratar de crime autônomo, praticado na forma das hipóteses de concurso de crimes.
 
Antes, havia a possibilidade de reconhecer o dano psíquico à vítima como forma de lesão corporal à saúde da mulher, desde que comprovado o nexo causal entre resultado e a conduta do agressor. No entanto, com a inserção do art.147-B11 no CP passou a vislumbrar o dano psíquico como forma de violência psicológica à mulher, hipótese com o condão de excluir a escusa absolutória. A busca pelo controle do patrimônio da mulher, principalmente em se tratando de relações conjugais, pode resultar em graves alterações psíquicas.
 
As tentativas de controle patrimonial se estendem desde o artifício de fraudes na partilha, no curso do processo de divórcio envolvendo mulheres sem renda – que abdicaram da carreira para cuidar do lar e dos filhos – até às relações societárias entre cônjuges, em que por vezes há prática da asfixia financeira.
 
Pode-se ilustrar esse cenário por meio do voto proferido no Tribunal de Justiça de São Paulo:
 
PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. AMEAÇA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. RECURSO DA DEFESA. Recurso pelo afastamento da decisão de reconsideração do indeferimento inicial, com pleitos subsidiários de permissão de contato restrito a determinados canais ou para tratamento de questões empresariais. Não cabimento do pedido principal ou dos subsidiários, um dos quais não se conhecendo, por estar prejudicado. Deferimento das medidas protetivas em favor da vítima, a interessada F.C.F.C.. Ainda que concedida após inicial indeferimento, não se deslegitima a decisão que, a rigor, é suscetível a nova análise a qualquer tempo. Disparidade de informações com base nas versões do recorrente e da suposta vítima. A primeira alega ter sido vítima de infidelidade conjugal, o que teria levado ao fim do casamento, com sucessivos atos de violência psicológica, inclusive uma ameaça de morte atribuída ao recorrente. Além da violência psicológica, alega sofrer asfixia patrimonial, padecendo do risco de tergiversação de bens pelo antigo consorte, que, sendo advogado, dispõe de conhecimento técnico e meios práticos para viabilizar os próprios interesses em detrimento de sua estabilidade financeira. Tutela da vítima contra o risco de violência patrimonial. Apesar de não haver, aqui, base documental sobre a suposta testemunha T.B., como presencial à ameaça de morte, a violência psicológica é apenas um dos fatores que, na lógica de admissibilidade técnica de medidas cautelares pela Lei n° 11.340/2006, justificaria a preservação, por ora, das medidas adotadas, sem se incorrer no mérito de possível prática delitiva atribuída ao ora recorrente. Apesar de já estar superado o estado gravídico, há nos autos declaração médica, firmada por obstetra, registrando na vítima um quadro de hipercontratilidade uterina, decorrente, em tese, não só da própria gestação, como de forte estresse psicológico, segundo o laudo médico. Suspeita de idêntica infidelidade conjugal por F.C.F.C., composição de dúvida quanto à paternidade do segundo filho do casal, ora recém nascido (recente aforamento de ação de investigação de paternidade, atribuída pela vítima como tentativa de desqualificação moral e de reversão judicial das medidas judiciais favoráveis obtidas), que reforça o cabimento das medidas. Apesar da alegação de detidos esforços, por parte do recorrente, quanto à harmonização das relações com a vítima, as alegações em contrário desta, a suspeita de prática do crime de ameaça e o registro, em ação judicial que regulamentou a guarda provisória dos filhos (com regime de visitação paterna), de intensa animosidade entre as partes, ainda justificam cautelosa preservação das medidas impostas. Tendo, ainda havido extensão do regime de visitação, tema recorrente mantido razoável convivência familiar com a prole, não se extraindo dos autos notícia quanto ao risco de alienação parental, eis que encetado, no bojo do Poder Judiciário, o tratamento da visitação paterna estendida, como visto. Eventual necessidade de desenlace sobre questões relativas à empresa constituída pelas partes deve ser solvida por mandatários devidamente constituídos, por ora, ante a prioridade dos valores de relevância penal sobre interesses afetos ao direito privado, em que pese a inerente importância da sociedade para as partes. Não conhecido o pleito relativo ao comparecimento do recorrente ao parto do filho menor, eis que já solvida a questão em Primeiro Grau, suspendendo as medidas protetivas para esse fim específico, até a alta médica da vítima, não havendo notícia de que se tenha frustrado a decisão judicial que embasou a determinação.
 
Negado provimento, na parte conhecida.
 
Recurso Em Sentido Estrito 0026141-42.2019.8.26.0050 – São Paulo – VOTO 15.902
 
Nas hipóteses de ocorrência do dano psíquico como forma de violência a ensejar a exclusão da imunidade penal, deve-se cogitar a possibilidade de concessão de medidas cautelares, inclusive para afastar o cônjuge agressor da administração da empresa que esteja sendo utilizada para desferir as agressões, no caso em que haja sociedade empresarial com a vítima.12
 
Os tribunais brasileiros há pouco tempo começaram a voltar sua atenção para a questão da violência patrimonial, e o problema, gradativamente, tem sua jurisprudência consolidada. Ainda que dispositivos do Código Penal não convirjam com os ideais vanguardistas de tutela dos direitos patrimoniais e morais da mulher, o direito é vivo e deve caminhar de encontro com as ideias da sociedade ao tempo a que correspondem. Aqui a jurisprudência e doutrina possuem papel fundamental.
 
Diversas são as hipóteses de violência patrimonial, dada a infinidade de variáveis que dispõe a realidade. Dentre as condutas já identificadas como tal estão os casos em que o marido é recebedor da integralidade dos alugueres de imóvel pertencente a ambos os cônjuges, o que equivale a retenção ou apropriação de bens ou recursos econômicos, tal como previsto na lei 11.340/06; bem como o furto ao pagamento de pensão alimentícia arbitrada em benefício da mulher, especialmente nas circunstâncias em que o valor é destinado à satisfação das necessidades básicas; e casos em que o cônjuge alimentante, mesmo dispondo de recursos econômicos, adota subterfúgios para não pagar ou postergar o pagamento de verba alimentar.
 
Dentre os julgados acerca do tema, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu:
 
ALIMENTOS. PROVISÓRIOS. EX-COMPANHEIROS. VIOLÊNCIA PATRIMONIAL. Insurgência contra decisão que indeferiu alimentos provisórios à autora. Decisão reformada. Ainda que tenha transcorrido lapso temporal importante entre a separação e o ajuizamento da demanda, peculiaridades do caso. Dedicação exclusiva ao lar durante o período da união estável, atual estado de depressão profunda da autora, utilização indevida de seu CPF pelo ex-companheiro para abertura de firma. Agravado mostra ainda mantém a agravante sob violência patrimonial (art. 7º, IV, Lei 11.340/2006). Circunstâncias a indicar que ela não teria condição de trabalhar para prover o próprio sustento. Alimentos provisórios fixados em meio salário mínimo. Recurso provido. (TJ-SP – AI: 20226016820208260000 SP 2022601-68.2020.8.26.0000, Relator: Carlos Alberto de Salles, Data de Julgamento: 29/06/2021, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 29/06/2021)
 
Nesta toada, julgou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:
 
Competência. Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Estelionato. Apropriação indébita. Relação íntima. Violência patrimonial. 1 – Para os efeitos da Lei Maria da Penha (L. 11.340/06), caracteriza violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. 2 – Se a violência – psicológica e patrimonial -, ocorreu no contexto de convivência íntima (relacionamento amoroso) e teve motivação de gênero, sobretudo porque não há dúvidas sobre a vulnerabilidade da vítima em relação ao indiciado, a violência é doméstica, a justificar a competência do juizado especializado. 3 – Conflito de competência conhecido para declarar competente o juízo suscitante – 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Brasília – DF. (TJ-DF 07066736420218070000 – Segredo de Justiça 0706673-64.2021.8.07.0000, Relator: JAIR SOARES, Data de Julgamento: 12/05/2021, Câmara Criminal, Data de Publicação: Publicado no PJe : 25/05/2021 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)
 
Ainda, acerca da temática, decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
 
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL – MEDIDAS PROTETIVAS – VIOLÊNCIA PATRIMONIAL – FORMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – NECESSIDADE DE PROSSEGUIMENTO DO FEITO – SENTENÇA ANULADA. A violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos é uma das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher elencadas no art. 7º da Lei 11.340/06. (TJ-MG – APR: 10024170638456001 MG, Relator: Fernando Caldeira Brant, Data de Julgamento: 29/08/2018, Data de Publicação: 05/09/2018)
 
Por fim, o Superior Tribunal de Justiça, acerca da problemática da violência patrimonial no contexto de quadros societários compostos por cônjuges, entendeu:
 
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL Desconsideração inversa da personalidade jurídica. Ação de divórcio. Evidências da intenção de um dos cônjuges de subtrair do outro, direitos oriundos da sociedade afetiva. Aplicação da teoria da asserção. Sócia beneficiada por suposta transferência fraudulenta de cotas sociais por um dos cônjuges. Legitimidade passiva daquela sócia para a ação de divórcio. Existência de pertinência subjetiva. (REsp 1.522.142-PR, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, por unanimidade, julgado em 13/6/2017, DJe 22/6/2017.)
 
De antemão, deve-se preponderar o entendimento de que a norma, que antes era ferramenta para preservação do casamento e das relações familiares, já se encontra defasada em virtude das demandas atuais que cobram maior proteção da mulher. A literalidade da lei não contempla importantes perspectivas sociais, principalmente quando uma das partes tem a administração exclusiva do patrimônio e com o divórcio pretende prejudicar outra, ferindo a dignidade de seu cônjuge. Em outras palavras, não faz mais sentido o uso de uma lei que vai contra as necessidades da sociedade atual, especialmente no que diz respeito à violência patrimonial contra a mulher, que nada mais é que uma forma silenciosa e brutal de violência à medida que mantém as amarras e dependência econômica atadas ao agressor.
 
Isto posto, embora haja dificuldade de imputar crimes patrimoniais aos cônjuges, a Lei Maria da Penha se aprofundou no entendimento da violência contra a mulher (art. 7°). Desse modo, apesar de haver imunidade penal para o cônjuge que praticar delito patrimonial em face do outro durante a sociedade conjugal, não se exime sua responsabilização criminal, haja vista o alargamento do entendimento acerca da violência doméstica e familiar. Assim, conforme foi demonstrado, está sendo sedimentado pelos tribunais o afastamento do benefício do art. 181 em função das demandas sociais atuais preconizadas pela  lei 11.340/06.