Introdução – Princípios norteadores dos direitos reais
O leitor, ao se deparar com o título desta publicação – e com os das próximas, se perguntará: qual a relação dos princípios norteadores dos direitos reais, tema tão abstrato e geral, com a natureza jurídica do direito de laje, questão tão específica?
A relação é clara; nada do que aqui se escreverá será inútil para uma análise percuciente da questão que a série pretende responder.
Para que se possa aceitar ou refutar argumentos, quaisquer que sejam eles, há de se ter uma base teórica sólida. No caso do direito de laje, esta base teórica se resume a boa compreensão do regime dos direitos reais em geral, do direito de propriedade e do direito de superfície.
É a partir desta base sólida, relativamente específica, que será possível criticar todos os argumentos dados pelos autores para o direito de laje ter esta ou aquela natureza jurídica. Se assim não se proceder, não se estará fazendo realmente ciência dogmática, mas construção de teorias derivadas de opiniões.
Iniciaremos, então, o estudo do regime jurídico geral dos direitos reais por breves notas sobre seus princípios norteadores.
Princípio da coisificação
Os direitos reais versam sobre coisas, e não sobre pessoas ou bens que não se caracterizam como coisas, ainda que se tratem de bens patrimoniais.1
Coisas, na definição de José Manoel de Arruda Alvim Netto, são “objetos corpóreos, isto é, não só existem no mundo físico, como também se apresentam formando um corpo, donde hão de ser tangíveis pelo homem e devem ter consistência”.2
Assim, segundo o autor, “os direitos reais recaem sempre sobre uma coisa determinada, tangível e corpórea (móvel ou imóvel), que são seu objeto material.”3 Este é o significado do princípio da coisificação.
Esta concepção, que se pode dizer clássica, contudo, vem ganhando novos contornos com o desenvolvimento da sociedade e o surgimento dos chamados “novos” bens, havendo tendências para a equiparação de determinadas realidades à coisa. É o que ocorre, por exemplo, com a equiparação feita pela própria lei de certos bens com valor econômico (v.g., energia elétrica) às coisas.4
Princípio da taxatividade (numerus clausus)
Por taxatividade dos direitos reais entende-se que são direitos reais somente aqueles desenhados segundo este regime em lei. Nesse sentido, a identificação do direito real e a conceituação como tal dependem de eleição do legislador que, atendendo a conveniências de certas ordens5, insere-os no ordenamento jurídico.6
Desta feita, a criação, pelos privados, de direitos reais não previstos em lei é vedada, diversamente do que se passa com os direitos obrigacionais, que podem ser criados para além dos modelos previstos em lei.7
Deve-se frisar que a taxatividade dos direitos reais exige apenas que a sua criação se dê por meio de lei, não se restringindo, porém, ao Código Civil.8 Exemplifica esta afirmação a criação da alienação fiduciária em garantia de bens imóveis pela lei 9.514/1997, etc.
Princípio da tipicidade
A tipicidade, diversamente da taxatividade dos direitos reais, diz respeito aos elementos constitutivos, ao conteúdo dos direitos reais: não pode o particular alterar as situações reais, afastando a incidência da norma que a disciplina, mediante modelação negocial.9
Assim, a tipicidade é uma exigência adicional à da taxatividade. Enquanto a taxatividade diz respeito à enunciação dos direitos reais, a tipicidade diz respeito à estruturação destes.
Nesse sentido, não só a criação de direitos reais não previstos em lei é vedada aos privados (taxatividade), como também o é a modificação do regime jurídico legalmente estabelecido pela autonomia da vontade (tipicidade).
Como ensina José Manoel de Arruda Alvim Netto, há, no direito das coisas, um conjunto de normas cogentes que serve ao direito privado, estando o limite à autonomia privada na inviabilidade de conformar ou redefinir os modelos dos direitos reais, o que só pode ocorrer pela lei. O que pode escassamente ocorrer, aponta o autor, é que a norma deixe espaço ou algum espaço à autonomia privada, como ocorre no que pode ser objeto de usufruto e de uma servidão. Nestes dois casos, diz, “não se pode pretender que estejamos em face de um tipo fechado e exaurientemente definitório da realidade nela gizada, senão que, em certa escala, aberto.”10
No direito português, por exemplo, o Código Civil é claro ao estabelecer que o objeto da servidão pode consistir em “quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, suceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que aumentem o seu valor”. De onde conclui Menezes Leitão que “as servidões constituem assim hoje um direito atípico.”11
No direito brasileiro, embora menos claro o Código Civil quanto à atipicidade, a doutrina relembra adágio romano – servitutum numerus non est clausus – para concluir que as espécies de servidão são “ilimitadas”.12-13
Igualmente, no direito de superfície pode ser identificado um espaço à vontade dos contratantes, deixando a lei margem ao proprietário a faculdade de conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, nos termos do art. 1.369 do Código Civil de 2002.14
Impende observar, finalmente, que há hipóteses que, embora não tenha sido explícito o legislador, devem também ser consideradas direitos reais, desde que amoldáveis a tipos suscetíveis a serem submetidos aos princípios dos direitos reais. Tem-se, como exemplo, o direito de retenção e o direito de retrovenda, que conferem ao titular direito à coisa, e não à indenização.
Assim, conclui-se que a taxatividade dos direitos reais, acima abordada, se entende como “somente são direitos reais aqueles previstos no sistema”, levando em consideração, porém, que “previsto pelo sistema não envolve, necessariamente, uma explicitude absoluta”.15
Princípio da publicidade
Os direitos reais devem ser ostentados publicamente, em razão de sua eficácia absoluta, erga omnes.
Em outras palavras, para que possam ser exercidos e produzir efeitos contra todos, impõe-se que sejam publicizados para toda a sociedade.16
No que diz respeito especificamente às coisas móveis, manifesta-se a publicidade precipuamente por meio da posse; no que diz respeito aos imóveis, avulta a função do Registro de Imóveis.17
Ressalve-se, porém, que nem todos os direitos com eficácia absoluta, que se exercem erga omnes, são direitos reais, como os direitos da personalidade, que “no necesitan de publicidad, como el derecho a la vida, al honor, etc., pues su existencia es suficiente, nadie podría alegar su ignorancia.”18
Princípio da transmissibilidade
Os direitos reais, à semelhança do que sucede com os direitos obrigacionais, podem mudar de titular, sendo transmissíveis inter-vivos ou mortis causa.19 A ligação entre um direito real e o seu titular é, nesse sentido, cindível.20
Ressalve-se, contudo, que a transmissibilidade consiste em nota meramente tendencial dos direitos reais, comportando exceções.
Cita-se, como exemplo que excepciona o princípio da transmissibilidade, o direito real de usufruto, que não é alienável inter-vivos (apenas seu exercício pode ser cedido, nos termos do artigo 1.393 do Código Civil de 2002), assim como não é sucessível, eis que se extingue com a morte do usufrutuário (art. 1.410, Código Civil de 2002).21
O princípio da transmissibilidade possui íntima relação com as formas de constituição e de aquisição dos direitos reais, que podem ser originárias ou derivadas.
No direito brasileiro, a tradição e o registro são os modos fundamentais de aquisição derivada de direitos reais, respectivamente, sobre móveis e imóveis. São, na linguagem vinda dos glosadores, o modus, antecedidos de um titulus. É por meio destes modos que há transmissão de direitos reais no ordenamento brasileiro.22
No que diz respeito aos direitos reais imobiliários, a eficácia do direito real depende da existência e validade do título causal. Se este é nulo, a aquisição do direito real não vale. Ou seja, o modo de aquisição é condicionado à validade do título que lhe serve de base, causa.23
Vale frisar que na aquisição originária de direitos reais, a situação se altera: perfeitos os requisitos da aquisição (como no caso da usucapião), passa a existir o direito real, do ponto de vista substancial. Não há, nesta hipótese, transmissão. Para vir a fazer parte formalmente do universo dos Direitos Reais, haverá de ser reconhecido judicial ou extrajudicialmente, como, ainda, deverá vir a ser objeto de publicidade, no caso de coisa imóvel, no registro imobiliário, com o que, então, logrará vir a ter a publicidade própria dos direitos reais. É certo, porém, que nesta hipótese, a publicidade não é constitutiva do direito real, como o é na hipótese de aquisição derivada.24
Princípio da atualidade
Ao contrário das obrigações, que podem ter como objeto mediato coisas futuras – tendo como objeto imediato uma conduta futura do devedor -, as coisas têm que ter existência presente, atual, para que possam ser objeto dos direitos reais.25
Assim, só pode haver direito real sobre coisas presentes que existam já em poder do titular e não sobre coisas futuras. A noção de coisa futura compreende ambas as vertentes, absoluta e relativa: as coisas que não existem ainda e aquelas que apesar de terem já existência física não estão ainda em poder do disponente.26
Com efeito, uma coisa que não existe não pode ser objeto de direito real. Por outro lado, a coisa pode existir sem que o direito real esteja na titularidade do disponente. Neste caso, o negócio de disposição do direito real é válido, se a coisa for tomada como futura. No entanto, a eficácia do negócio só vem a ser deferida para o momento em que o disponente adquire o direito.27
Há exceções, contudo, ao princípio da atualidade da coisa.
Por exemplo, em regra, não cabe a hipoteca de bens futuros, salvo no caso de prédio em construção ou apartamento em edifício coletivo, quando a referência ao memorial descritivo, plantas e projetos constituem os dados especializadores (v. princípio da especialidade, infra), de sorte a permitir que a evolução da construção, nas suas diversas fases, vá objetivando o gravame gradativamente.28
No âmbito das incorporações imobiliárias, o princípio da atualidade da coisa foi objeto de relevantes estudos doutrinários.29 De forma sucinta – como este espaço exige, pode-se afirmar que, no âmbito da incorporação imobiliária, é possível a existência de direito real sobre coisa futura, a partir da criação de um direito real preliminar sobre a coisa atual que, após a construção sobre esta coisa, sucede automaticamente sobre a coisa futura, construída.
Princípio da especialidade
O princípio da especialidade é aquele em que se estabelece, a partir da identificação da coisa, para viabilizar a percepção de uma situação entre o sujeito e o objeto (a coisa), proporcionando essa especificação a identificação objetiva da coisa. Ou seja: é a configuração dos indicativos objeto e sujeito do direito real sobre uma coisa.30
Assim, pelo princípio da especialidade, o direito real incide, sempre, sobre uma coisa certa e determinada, individualizada. Não incide, pois, sobre coisas genéricas ou indeterminadas.
Quanto à possibilidade de se estabelecer direitos reais sobre coisas coletivas (universalidades de fato), a doutrina portuguesa diverge. Parte dos autores entende que não existem direitos reais sobre universalidades, incidindo o direito individualmente sobre cada uma das coisas que compõem a universalidade.31 Outra corrente entende que o fato de os direitos reais terem como objeto coisas certas e determinadas, individualizadas, não é incompatível com a possibilidade de o seu objeto ser uma universalidade.32
Princípio da elasticidade (expansão potencial) e da consolidação
Pela elasticidade (ou expansão potencial) e pela consolidação, os direitos reais podem ser comprimidos quando um outro direito real passa a incidir sobre a coisa, e podem ser estendidos quando readquirem toda a sua amplitude por cessação de um direito real compatível.33
Segundo a doutrina majoritária, trata-se de princípio que norteia o regime de todos os direitos reais, e não só da propriedade. Esta ressalva é importante, pois são diversos os autores que tratam a elasticidade como característica exclusiva do direito de propriedade, o que não é tecnicamente correto.34
Por exemplo, tendo sido constituído um direito de usufruto sobre a coisa, será este e não a propriedade a ficar diminuído pela constituição posterior de uma servidão. Ao revés, é também o usufruto que se beneficia com a extinção da mesma servidão.35
Princípio da exclusividade (compatibilidade)
Em relação aos direitos reais, pode-se falar em princípio da exclusividade, no sentido de que não se pode conceber dois direitos reais, de igual conteúdo, sobre a mesma coisa.36 Em outras palavras, não é possível, onde um direito real anteriormente existe, estabelecer outro da mesma espécie.37
Assim, se sobre a coisa recaírem dois direitos reais, não serão da mesma espécie, ou, não serão integrais. Portanto, “com respeito aos direitos reais, duas pessoas não ocupam o mesmo espaço jurídico, deferido com exclusividade a alguém, que é o sujeito do direito real.”38
É o que ocorre no condomínio: os condôminos não são donos integrais da coisa, pois o direito real de propriedade, que sobre ela incide, é um só; este, entretanto, se divide entre os vários condôminos.39 Há uma pluralidade de sujeitos da mesma relação jurídica, mas esta é uma só, e o seu objeto não pode suportar nova relação da mesma natureza.40
A doutrina portuguesa fala também em princípio da compatibilidade, no sentido de que só pode existir um direito real sobre determinada coisa na medida em que seja compatível com outro direito real que a tenha por objeto.41
Fonte: Migalhas
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