O Direito não é construção recente: uma caminhada de milhares de anos nos trouxe até aqui e, de resto, nos levará adiante até a extinção. Afinal, onde há seres humanos, há sociedade; e onde há sociedade, há Direito; máxima tão antiga, quanto latina: ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus. E, assumindo o peso dos anos, diversas questões foram sendo posicionadas e amoldadas para que se tornassem mais adequadas, vale dizer, para que atendessem melhor aos interesses da sociedade organizada em Estado. Amoldadas por merecerem forma específica; somente quando inexiste especificação, é possível adotar qualquer forma. Posicionadas por haver, para determinadas questões, ambientes próprios. E este ensaio irá se posicionar na esquina de dois ambientes jurídicos diversos: o Direito Societário e o Direito Sucessório. Mais especificamente, trabalhar sobre uma questão que foi acesa recentemente no diálogo jurídico brasileiro: disposições com eficácia post-mortem (para depois da morte) em contrato social de sociedade simples ou empresária.
A eficácia do ato de uma pessoa (viva) para além de sua morte é uma questão tormentosa. Mas é um tormento que a teoria já enfrentou e deu ordem. Ainda que a personalidade jurídica tenha extinção no exato momento da morte, o que se fez está feito e é válido; sua eficácia, contudo, conhecerá tratamentos específicos em ambientes diversos. Por exemplo, as declarações unilaterais e incondicionadas completam-se no momento da enunciação, tal como a emissão de títulos de crédito e o aval, conservando-se eficazes mesmo em face do passamento, com efeitos sobre o espólio. Já no que diz respeito às obrigações de execução pessoal, constantes de um contrato, não mais serão eficazes: o contrato se resolverá de forma diversa em face do passamento daquele que estava obrigado a prestar pessoalmente: cantar, dançar, trabalhar etc. Os dois exemplos, acreditamos, são suficientes para já aclimatar essa necessidade de dar a cada coisa os seus limites adequados: est modus in rebus, alertou Horácio em suas Sátiras há cerca de dois milênios: há – e deve haver – limite para as coisas.
Entre as disposições com eficácia post-mortem que são consideradas possíveis (lícitas, válidas e eficazes) está a faculdade de testar. Por meio de testamento (eventualmente, codicilo, na forma da regulamentação inscrita no Código Civil), pode-se enunciar disposições com eficácia post-mortem (também chamadas de atos de última vontade) sobre muitas coisas: do apartamento a participações societárias, quotas em fundos de investimento, incluindo a coleção de selos e… poderíamos colocar o cachorro salsicha aqui, mas as discussões nos Tribunais vão assanhadas, a incluir debates sobre pensão alimentícia e guarda compartilhada de animais domésticos. Por sorte, sem reflexos no Direito Empresarial, até aqui.
Entrementes, para preservar a vontade de quem se vai e os interesses dos que ficam, o testamento é detalhadamente regrado pelo Direito, que obriga a realização de inventário judicial ante sua existência. No entanto, uma discussão passou a grassar o Direito brasileiro na última parelha de anos: disposições de última vontade, ou melhor, disposições com eficácia post-mortem podem ser enunciadas em contratos sociais? Mesmo quando tenham conteúdo sucessório? Imagine-se uma cláusula assim:
“Morrendo o sócio Fulano de Tal, todas as suas quotas serão automaticamente cedidas a Beltrano de Tal, independentemente de qualquer autorização de terceiros, com imediata alteração deste contrato social.”
A questão precisa ser esmiuçada para que aspectos diversos sejam levantados e esclarecidos. Antes de mais nada, é comum que se acorde cláusula genérica pela qual, pela morte de um dos contratantes, seus sucessores assumirão sua posição societária, o que pode ser recomendável ou não, considerando as particularidades de cada situação. E tal previsão tem efeitos societários: é contratação de que os herdeiros serão aceitos como sócios. Mas é preciso ter cautela em relação ao aspecto patrimonial: quotas são ativos e muitas perguntas precisam ser respondidas se tomada a questão por tal ângulo. Os bens do espólio são suficientes para saldar os credores do falecido? Quem são os sucessores? Em qual proporção assumirão a posição societária do ascendente? Todos o farão? Houve doações em vida que devem ser compensadas? Como ficam os interesses da Fazenda Pública em face da sucessão causa mortis que, como se sabe, é fato gerador do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD? Para essas, e muitas outras questões, o inventário trará respostas.
– Inventário? Tempo, dinheiro, conflito… para quê?
Cabeça e papel aceitam tudo. E se, para poupar esse processo, um criativo advogado orientasse seu cliente a dispor cláusula acima enunciada? Ágil e eficaz, não? Se há morte, há transferência automática, imediata e independente de autorizações. Não é melhor? Seria. Mas há limitações legais e elas precisam ser consideradas. Antes de mais nada, o Código Civil:
Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.
Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros.
Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.
Art. 1.796. No prazo de trinta dias, a contar da abertura da sucessão, instaurar-se-á inventário do patrimônio hereditário, perante o juízo competente no lugar da sucessão, para fins de liquidação e, quando for o caso, de partilha da herança. (Prazo ampliado para dois meses pelo artigo 611 do Código de Processo Civil de 2015).
O inventário é forma legal e obrigatória para a solução do patrimônio do finado, Há formas diversas de o realizar, mas, essencialmente, é inventariando que são assegurados os múltiplo direitos e interesses que estão – ou, no mínimo, podem estar – envolvidos na solução do patrimônio em relação ao de cujus e sua transmissão (ou não, como na hipótese de falência do empresário individual) para terceiros, sejam herdeiros legítimos (necessários ou não), herdeiros testamentários, credores (em pagamento), além do indispensável pagamento dos impostos devidos. Em suma, ainda que se trate de um sócio de sociedade empresária e das respectivas quotas ou ações, um inventário deve ser aberto.
Mas vamos além. E se, ato contínuo à morte, o administrador da sociedade apresentar aditivo contratual subscrito pelos sócios remanescentes e Beltrano de Tal, o Registro Público deveria aceitar o arquivamento? Pelo art. 1.028/CC, no caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua quota, salvo se o contrato dispuser diferentemente. O contrato dispôs diferentemente, trazendo a cláusula acima transcrita ou texto de mesma essência ou, ao menos, similar. Então, tudo certo? A cláusula é lícita?
Respondendo ao Recurso nº 14022.116144/2022-57, o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) reconheceu lícita uma cláusula de alienação automática de quotas a sócio remanescente em caso de morte. Não era sucessor, não era donatário, mas o ponto fundamental é o mesmo: uma destinação de um bem, em vida, pela via do contrato social, para produzir efeito póstumo. E os sucessores? E os credores do falecido? Segundo o DREI, “a competência deferida às Juntas Comerciais é estritamente formal, ou seja, de verificar as formalidades extrínsecas dos atos sujeitos a registro”, e “a Lei da Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, é cogente ao dispor que nos negócios empresariais deve prevalecer a vontade das partes, ou seja, se não houver expressa disposição legal em contrário a autonomia das partes deve sempre prevalecer”.
A solução e os argumentos parecem-nos estranhos. Primeiro, porque o exame registral não é apenas formal, mas, também, de mérito quanto à juridicidade. É o que se afere da lei Federal 8.934/1994:
Art. 35. Não podem ser arquivados:
I – os documentos que não obedecerem às prescrições legais ou regulamentares ou que contiverem matéria contrária aos bons costumes ou à ordem pública, bem como os que colidirem com o respectivo estatuto ou contrato não modificado anteriormente […].
Segundo, porque, embora a Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/19) corretamente eleve a importância da autonomia de vontade na aplicação do Direito, ela exceptua da licitude da convenção, naturalmente, as normas de ordem pública. É o que se resulta claro do art. 3º, VIII:
Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
[…]
VIII – ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública […].
A pergunta, então, deve ser recolocada: pode-se negociar o que será inventariado? Parece-nos que não. Aberta a sucessão, tudo pertence ao espólio. Só o inventariante poderia se manifestar, a partir daí, sobre os bens, com autorização judicial nas hipóteses do art. 619 do Código de Processo Civil. Afinal, é preciso preservar os interesses dos credores, da Fazenda Pública e dos herdeiros necessários, que, aliás, podem ser desconhecidos até então. Aberto o inventário, uma apuração de haveres poderia garantir a higidez dos direitos hereditários daqueles que não fossem beneficiados com a assunção da quota, evitando fraudes ou desequilíbrios indevidos. Nesse contexto, o sucessor indicado no contrato social poderia vir a ter preferência no recebimento da quota na partilha.
Ousamos discordar da solução dada pelo DREI na medida em que implica sejam fechados os olhos, pelo Registro Mercantil, para uma forma determinada em lei. A lógica de se tratar de simplificação, desburocratização ou, quiçá, liberdade e/ou criatividade jurídica não pode chancelar uma subversão do que é devido. Aliás, sob tal lógica e com o mesmo fundamento, poderiam ser feitas coisas do arco da velha, a incluir uma penca de fraudes e desconformidades altamente perniciosas a terceiros e ao Estado. Haverá quem afirme tratar-se de planejamento sucessório. O argumento não calha. Planejamento sucessório é uma arte jurídica que comporta várias soluções lícitas. Pode ser concretizada por meio de doação com reserva de usufruto, em favor de Beltrano, talvez satisfizesse os propósitos do de cujos. Entretanto, uma doação post mortem parece-nos ferir regra de ordem pública.
Desse modo, poder-se-ia admitir uma cláusula que pré-defina que nenhum herdeiro adentrará a sociedade? Sim. Seu efeito, contudo, é meramente social: não são aceitos no quadro de sócios. Não afeta seus direitos patrimoniais. Procede-se à liquidação das quotas do falecido ou à sua subscrição pelos sócios remanescentes ou terceiros (de modo a evitar a redução do capital social), sempre respeitando (i) o direito dos herdeiros à percepção do valor dos haveres titularizados pelo falecido, e (ii) o inventário como ambiente jurídico necessário. Também se admite uma cláusula que pré-defina que todos os herdeiros adentrarão à sociedade? Certamente. Porém, eles não estão obrigados a se tornarem sócios; podem aceitar ou recusar. Caso recusem, a mesma solução de liquidação ou assunção das quotas pelos sócios ou terceiros deve ser dada. E, também aqui, não se dispensa o inventário.
Agora, é possível uma cláusula que pré-defina que apenas esse e/ou aquele herdeiro (nominalmente identificados) possa(m) adentrar à sociedade, negando esse direito aos demais? Sim! Mas é previsão com efeito meramente social, e não patrimonial. Sob uma perspectiva social, havendo sociedade intuitu personae, os sócios têm a faculdade de aceitar ou recusar o ingresso de outras pessoas e, assim, a cláusula será lícita. Mas será preciso fazer o inventário e ao(s) herdeiro(s) pré-admitido(s) se atribuírem as quotas sociais em conformidade com seu quinhão. É esse o grande problema da cláusula analisada: o quinhão do pré-admitido pode ser inferior ao valor das quotas e, assim, a cláusula representará uma fraude indevida ao inventário (o que só poderia se fazer por meio de testamento e no limite da parte disponível do patrimônio do defunto). Por isso é preciso inventariar: para que ninguém seja prejudicado em seus direitos. Os herdeiros não aceitos recebem quotas e as liquidam ou cedem, como visto acima. Pode mesmo ocorrer de haver aceitação posterior pelos demais sócios.
Sim, a autonomia de vontade compõe o núcleo normativo da dignidade da pessoa humana. Apesar disso, lidamos desde cedo com suas limitações. É daí que o princípio da legalidade, na perspectiva privada, legitima nossos comportamentos e escolhas livres, desde que eles não subvertam normas limitadoras, condicionantes ou proibitivas. Não se pode ter tudo, já diziam Horácio, nossas doces avós e, quiçá, o finado fulano.
Fonte: Migalhas
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