Desde o advento da então Medida Provisória nº. 1.085/21, hoje convertida na lei 14.382/22, uma questão tem desafiado os operadores jurídicos do mercado imobiliário. Trata-se da chamada “assinatura eletrônica avançada” que, nos termos do art. 17, §1º, da Lei de Registros Públicos, e art. 38, caput e §2º, da lei 11.977/2009, ambos alterados pela Lei 14.382/22, passou a ser admitida no Registro de Imóveis conforme regulamentação a ser dada pelo e. Conselho Nacional de Justiça1.
A matéria foi novamente ventilada na MP 1.162/23, que reformulou o “Programa Minha Casa, Minha Vida” e inseriu o art. 17-A na Lei das Assinaturas Eletrônicas (14.063/20), prevendo expressamente a possibilidade de utilização das assinaturas avançadas por instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário e os partícipes de seus contratos, dotando, aparentemente, tal específica previsão, de eficácia plena perante o registro imobiliário, independentemente de ulterior regulação.
Pois bem, definida pela Lei de Assinaturas Eletrônicas (14.063/20) a partir do uso de certificados “não emitidos dentro da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira”, a assinatura eletrônica avançada teria três características, quais sejam: “a) estar associada ao signatário de maneira unívoca; b) utilizar dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; c) estar relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior seja detectável”.
Apresentar-se-ia, então, como alternativa média entre a assinatura eletrônica simples, a qual permite qualquer tipo de dado capaz de identificar o signatário do documento, como, por exemplo, um mero e-mail cadastrado, e a assinatura eletrônica qualificada, aquela regulada dentro da ICP-Brasil pela MP 2.200-2/01, com todos os requisitos elaborados e fiscalizados pelo ITI e seu Comitê Gestor.
Os aspectos eminentemente jurídicos, pertinentes à estrutura e função do sistema notarial e registral em confronto com a novidade, parecem já ter sido adequadamente expostos em diversos textos de autores cuja autoridade suplanta, em muito, qualquer maior pretensão de contribuição destes articulistas, tendo sido apontado que a utilização da assinatura avançada poderia “subverter primados basilares do regime jurídico (…) especialmente a fé pública”2, dar “‘à raposa (…) a chave do galinheiro.”, com “prejuízos graves e injustificados aos consumidores”3 e ser capaz de criar um “caminho tortuoso, incerto e pouco confiável de fomento à monetização da especulação em detrimento à confiança das relações reais com sérias repercussões, especialmente, para o cidadão comum.”4
O presente texto tem outro viés e visa chamar a atenção para uma vivência prática que já tem contraposto interesses de consumidores e de players do mercado em contratações cada vez mais fáceis e rápidas que parecem se anunciar também para o sistema imobiliário.
Assim, em relação a outro mercado de crédito – este já bastante ágil, com crédito “na hora” -, algumas situações envolvendo assinatura digital têm afrontado os operadores do direito que atuam na esfera consumerista, sobretudo quando presentes consumidores “hipervulneráveis”, os quais, além da natural vulnerabilidade do consumidor, possuem ainda outros tipos de vulnerabilidade, como a social-econômica ou a etária frente à nova economia digital.
Trata-se da contratação facilitada do crédito direto ao consumidor, em especial na modalidade “consignado”, que apresentou inúmeras dificuldades nos últimos anos, justamente em decorrência de sua contratação digital rápida.
Assim, em 2021, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) firmou compromisso com a Febraban e a Associação Brasileira de Bancos para aplicar com maior rigor punições a bancos infratores de recomendações sobre a concessão de crédito ao consumidor, sendo que o “uso de tecnologias como reconhecimento facial para garantir consentimento do consumidor esteve entre os pontos debatidos”. A propósito, foram aplicadas multas milionárias para pelo menos três instituições bancárias por “abusividades cometidas na oferta e contratação de empréstimos consignados”5.
Foi apurado que uma boa parte de tais contratos possuía assinaturas fraudadas, as quais se tornaram possíveis justamente pela facilitação dada pelas assinaturas digitais.
Toda a fraude “começa na assinatura”, e, “como haveria pouca conferência e os processos são eletrônicos”, elas “costumam passar sem contestação por bancos”6. Segundo o Presidente da Associação Nacional dos Profissionais e Empresas Promotoras de Crédito e Correspondentes no País (Aneps), a assinatura frágil, sem certificação digital adequada, constituiria um verdadeiro “nascedouro de fraudes”.
Ainda, segundo a Senacon, a reclamação por empréstimos consignados aumentou em mais de 100% no ano de 2021, sendo que “Os principais problemas indicados pelos consumidores referentes a crédito consignado são os seguintes: a) cobrança por serviço/produto não contratado/não reconhecido/não solicitado; b) dificuldade para obter boleto de quitação ou informações acerca de cálculos, pagamentos, saldo devedor; c) não entrega do contrato ou documentação relacionada ao serviço; d) cobrança indevida/abusiva para alterar ou cancelar o contrato; e) portabilidade não efetivada; f) margem consignável: bloqueio/ contestação; g) SAC: Dificuldade para cancelar o serviço.”7 (grifo nosso)
Conforme procedimentos sancionadores instaurados justamente para a averiguação de tais práticas de assinaturas facilitadas sem a devida qualificação da parte e de sua vontade, a Senacon sublinhou que os casos, em geral, “envolvem uma qualidade especial de consumidores: os idosos. Eles merecem atenção especial quanto à sua proteção, em razão da sua condição de hipervulnerabilidade frente à contratação dos empréstimos consignados e a sua propensão a se tornar um consumidor superendividado. Ademais, é importante destacar que esses consumidores merecem, ainda, uma proteção mais especial no âmbito da economia digital, pois normalmente encontram dificuldades adicionais para utilizar bens e serviços oferecidos em meio eletrônico, se comparados com o resto da população.”8
Ora, a contratação do chamado crédito consignado rápido se utilizaria de informações como a própria selfie, fornecida espontaneamente pela vítima induzida por falsários, ou mesmo obtida de grandes bancos de dados comprados de data brokers ilegais a partir de grandes vazamentos9.
Nesse aspecto, não custa lembrar que para adentrar a qualquer edifício de escritórios hoje, deixamos corriqueiramente uma selfie e um documento de identificação, justamente dados que “a) estão associados ao signatário de maneira unívoca;” e “b) podem ser utilizados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo”.
A questão se torna ainda mais dramática quando se tem em conta que as próprias instituições financeiras, em si, muitas vezes não praticam qualquer ilícito na concessão do crédito, vez que os dados são obtidos por criminosos em decorrência de ato da própria vítima ou de terceiros. Em outras palavras, o consumidor lesado não conseguiria qualquer ressarcimento da própria instituição financeira, se constituindo o fato em verdadeiro “fortuito externo”10.
E essa facilidade da burla do sistema de assinatura, mesmo que contando com a utilização de biometria pelo reconhecimento facial, parece decorrer do fato de que embora tenhamos adotado a definição, quase literal, da Uncitral para as assinaturas avançadas11, não adotamos as regulações recomendadas para as entidades certificadoras, as quais, de acordo com os artigos 9º e 10, deveriam observar diversas medidas estritas de segurança, como, por exemplo, recursos humanos, sistemas e procedimentos adequados com auditoria por um corpo independente. Essas medidas de segurança somente existem no Brasil para a assinatura eletrônica qualificada, conforme os procedimentos normatizados pelo ITI dentro da ICP-Brasil.
Nesse sentido, uma assinatura avançada hoje, no país, pode observar adequadamente a legislação vigente sem possuir um grande grau de confiabilidade mantido por uma fiscalização e arcabouço regulatório satisfatório, os quais precisamente só existem para a assinatura qualificada.
É por tal razão que o Estado da Paraíba, por exemplo, editou a Lei nº. 12.027/21, a qual exige a assinatura física de idosos em contratos de operação de crédito. A lei foi impugnada por ADIN proposta pela “Confederação Nacional do Sistema Financeiro”, sob o argumento de que a restrição seria discriminatória e anacrônica, mas mantida pelo e. Supremo Tribunal Federal, sob o fundamento de que a norma “limita-se a assegurar que o cliente idoso tenha ciência dos contratos que assina e que seja seu o desejo de efetuar determinada contratação. É, portanto, matéria afeta ao direito do consumidor”. Conforme o relator, Min. Gilmar Mendes, “os dispositivos em questão não interferem no objeto do contrato pactuado, mas destina-se a garantir o direito à informação dos consumidores idosos do Estado da Paraíba, bem como a assegurar seu consentimento informado.”12
É justamente de segurança e consentimento informado que se trata.
Veja-se que logo após as novas leis sobre assinatura eletrônica no Registro de Imóveis, já se publicizou a intenção de contratação de crédito imobiliário por reconhecimento facial – uma das possibilidades da nova assinatura, já que, como informado, a “selfie” teria as três características antes citadas para classificar a assinatura como avançada -, reduzindo o prazo para liberação de recursos “de 25 dias para apenas 10 dias”, sendo possível, ainda, “quando a documentação está em ordem, chegar a fazer o processo em só três dias”13.
Ora, por regulamentação do Banco Central14, a liberação de recursos em financiamentos imobiliários somente pode ser realizada após a constituição da garantia, o que significa dizer que no prazo de só três dias, se encontram amalgamados a eventual conferência da documentação, suposta leitura e compreensão do contrato, sua efetiva formalização e assinatura, encaminhamento e análise registral e, finalmente, a própria constituição da garantia para liberação dos valores.
É de se imaginar que sob a rubrica da “assinatura por reconhecimento facial”, na verdade, foram empenhados os créditos não só da assinatura em si, mas de todo o processo de documentação, formação e qualificação da vontade.
Ora, se há 3 – ou mesmo 10 – dias para todo o processo acima descrito, quantos minutos haveria de reflexão e qualificação da vontade do consumidor antes de tomar o empréstimo que possivelmente será o maior passivo de sua vida?15
Cabe frisar que 80% (oitenta por cento) dos atendimentos do NUDECON-PR (Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Estado do Paraná) – cifra que se repete com pouca variação em praticamente todo o país – têm como objeto reclamações de consumidores idosos sobre vício na contratação de empréstimos consignados, sendo a principal delas a inexistência de informações claras, precisas e adequadas sobre o contrato, especialmente sobre a taxa efetiva dos juros e encargos. Que se dirá do tempo de reflexão e explicação necessários para auferir adequado consentimento em relação a sistemas de amortização (SAC? Price? Etc), taxas de juros e atualização (pré-fixado, IPCA+ etc), em um contrato garantido pela própria moradia do consumidor?
A questão do tempo de reflexão não parece burocrática para instituições financeiras de países como a Alemanha e o Japão, nos quais, por lei, é obrigatório aguardar um período que varia de duas semanas a até um mês antes de se poder formalizar efetivamente a garantia de empréstimos, com disposições que determinam, por exemplo, o recebimento antecipado da minuta da escritura pelo consumidor final ou uma pré-declaração de vontade anterior à formalização do negócio pelo garantidor.
A velocidade do crédito e a facilidade de sua formalização pretendida pela assinatura “rápida e digital” remetem a uma passagem que parece ter ficado esquecida num passado não tão distante. Nas exatas palavras do Relatório Final da Comissão Nacional sobre as Causas da Crise Financeira nos Estados Unidos (“Crise do Subprime/2008”): “For example, lenders have relied on “robo-signers” who substituted speed for accuracy by signing, and sometimes backdating, hundreds of affidavits claiming personal knowledge of facts about mortgages that they did not actually know to be true. One such “robosigner,” Jeffrey Stephan of GMAC, said that he signed 10.000 affidavits in a month- roughly 1 per minute, in a 40-hour workweek-making it highly unlikely that he verified payment histories in each individual case of foreclosure.”16
Quiçá, reduzir o prazo de liberação de recursos de 3 dias para 1 minuto, assinando 10.000 contratos por mês, seja uma melhoria ainda maior do sistema…mas para quem?
A situação envolvendo o fólio real ganha ainda mais dramaticidade quando se tem em conta que as fraudes envolvendo empréstimos em conta costumam ser percebidas rapidamente, uma vez que a disponibilização ou subtração de valores na conta de suas vítimas dificilmente se faz sentir em prazo superior a um mês. Por outro lado, as fraudes imobiliárias podem demorar anos para serem detectadas, uma vez que não é costume retirar certidões de matrículas de imóveis que estão em nome de seu proprietário e que não foram por ele mesmo objeto de qualquer negociação.
Ademais, uma vez que o registro não tem poderes jurisdicionais para a declaração da nulidade ou inexistência dos negócios eventualmente fraudulentos, a sua descoberta levará ao inevitável e delongado caminho processual contencioso, com possíveis anos de espera até que o imóvel possa ser novamente regularizado e devolvido ao mercado sem qualquer apontamento.
Em síntese, na esteira da redução de formalidades pretendida pela nova legislação, o novo sistema de assinatura digital trará com certeza uma alavancagem para as operações de crédito, mas se a forma é protetiva, alguém virá a pagar essa conta.
Fonte: Migalhas
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