Recente julgamento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (REsp 2.059.278/SC. Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. p/ Ac. Min. Raul Araújo, sessão de 26/05/2023, acórdão pendente de publicação), acrescentou um novo capítulo à discussão acerca de suposta antinomia quanto aos interesses da massa condominial versus o credor fiduciário, caso inadimplente o devedor fiduciante quanto ao pagamento dos débitos condominiais do imóvel em garantia.
Entre os aspectos recorrentes no debate quanto à solução das dívidas condominiais em imóveis alienados em garantia, a controvérsia perfaz usualmente as seguintes questões: (i) eventual responsabilidade pessoal do credor fiduciário; (ii) possibilidade de penhora do imóvel, e; (iii) prioridade de obrigações propter rem (condomínio e IPTU/ITR) frente ao direito de garantia do credor fiduciário.
De modo geral, duas são as correntes atualmente adotadas. A primeira, predominantemente na 3ª Turma do STJ, estabelece que, não sendo o credor fiduciário responsável pela obrigação (art. 27, §8º da lei 9.514/97), estaria afastada a possibilidade de penhora do imóvel, já que a propriedade resolúvel integra o patrimônio do credor fiduciário e a penhora não poderia avançar sobre patrimônio de terceiro. Assim, restaria ao condomínio tão somente a penhora e excussão dos direitos aquisitivos do devedor fiduciante sobre o imóvel.
A segunda corrente, presente em julgados de cortes estaduais[1] e recentemente abraçada pela 4ª Turma do STJ (acórdão pendente de publicação), entende que, sendo a obrigação condominial de natureza propter rem, o imóvel responde pela dívida e deve ser alienado para pagamento da massa condominial, cujos interesses prevaleceriam sobre os interesses do credor fiduciário.
Importante ressaltar que a propriedade fiduciária de bens imóveis foi introduzida em nosso ordenamento jurídico pela lei 9.514/97. Conforme lição no mestre Melhim Challub[2], na formalização do negócio fiduciário em garantia, opera-se a transmissão da propriedade de um bem ou direito do devedor fiduciante para o credor fiduciário, vinculada ao cumprimento de uma obrigação. Em consequência dessa vinculação, o bem é excluído do patrimônio do devedor fiduciante, sem, contudo, integrar plenamente o patrimônio do credor fiduciário, passando a constituir o que se denomina “patrimônio em afetação”.
Constituído o patrimônio em afetação, tanto a propriedade resolúvel do credor fiduciário quanto os direitos reais aquisitivos do devedor fiduciante estão ligados indissociavelmente ao bem e este, por sua vez, ao cumprimento da obrigação garantida.
Com o desdobramento da titularidade do bem e sua afetação, a posse direta do imóvel permanece com o devedor fiduciante, enquanto este se mantiver adimplente em suas obrigações. Entre as obrigações a cargo do devedor fiduciante incluem-se não só o pagamento da obrigação garantida, mas também, o pagamento de “todos os impostos, taxas e contribuições que incidem sobre o imóvel, notadamente o imposto predial e as contribuições condominiais, e é civilmente responsável pela correta utilização do imóvel perante terceiros e poderes públicos, devendo indenizar qualquer prejuízo ou dano, material ou pessoal, a que der causa, além de estar obrigado a conservar e manter o imóvel (art. 24, IV).”[3]
O dever do devedor fiduciante quanto ao pagamento das despesas condominiais decorre não só do uso e gozo exclusivo do bem, mas também, da responsabilidade quanto à guarda e conservação do imóvel em garantia. Assim prevê expressamente a lei 9.514/97 em seu art. 27, § 8º, reforçado pelo recentíssimo § 2º do art. 23, introduzido pela lei 14.620/2023. Pretender atribuir ao credor fiduciário a responsabilidade pessoal pelo pagamento das despesas condominiais, vai de encontro à natureza jurídica da propriedade resolúvel e à letra expressa da lei.
A divergência explicitada pelo julgamento da 4ª Turma do STJ, corretamente, não lança nenhuma dúvida quanto ao óbice de responsabilizar o credor fiduciário pelos débitos condominiais. E sendo o devedor fiduciante responsável pelo pagamento das despesas condominiais, a elas responde com todo o seu patrimônio particular (art. 789 do CPC), o que inclui, por óbvio, os direitos reais de aquisição sobre o imóvel que poderão ser penhorados na falta de outros bens preferenciais à satisfação da execução.
A penhora é ato de constrição judicial sobre o patrimônio do executado para garantia do pagamento da dívida e tem por finalidade tornar tal patrimônio indisponível ao executado.[4] Por tal razão, não há como contestar o sem número de julgados que afastam a tentativa de penhora do imóvel alienado fiduciariamente, pois implicaria em avançar sobre patrimônio de terceiro (devedor fiduciante).[5]
Ocorre que, se por um lado, na alienação fiduciária em garantia, o bem não está vinculado à pessoa do credor, mas sim ao cumprimento da obrigação garantida, não menos verdade é que o bem está igualmente vinculado ao cumprimento de outras obrigações a ele indissociáveis, como os débitos condominiais, por sua natureza propter rem.
As obrigações de natureza propter rem acompanham o imóvel, independentemente de sua titularidade ou das relações sobre ele estabelecidas, uma vez que tais obrigações possuem os atributos da acessoriedade especial e da ambulatoriedade.
Assim, ainda que se busque atribuir à lei 9.514/97 uma suposta suspensão transitória da natureza propter rem dos débitos condominiais ao imóvel alienado fiduciariamente, o que absolutamente não parece ter sido a intenção do legislador, o fato é que, mais cedo ou mais tarde, estes débitos recairão sobre o imóvel e impactarão a garantia constituída.
Os que defendem a suspensão transitória do caráter propter rem das obrigações condominiais na alienação fiduciária, entendem que tal expediente visa preservar os interesses do credor fiduciário, garantindo que o imóvel permaneça integro para responder por eventual inadimplência do fiduciante. No entanto, tal assertiva parece desconsiderar que as obrigações propter rem não deixam de acompanhar o imóvel e deverão ser quitadas no futuro, seja pelo credor fiduciário, em caso de consolidação da propriedade, seja por eventual arrematante do bem em leilão extrajudicial, o que certamente afetará negativamente o valor patrimonial do bem e a sua atratividade, em caso de excussão da garantia.
Os credores fiduciários que se sentem blindados com a impossibilidade da excussão do imóvel por dívidas condominiais, estão, na verdade, sendo indiretamente atingidos pela depreciação da garantia ocasionada pelos efeitos da mora de tais despesas, sem que, na maioria das vezes, tenham sequer conhecimento dessa situação. Note-se que essa é justamente a situação tratada no REsp 2.059.278/SC, onde a obrigação garantida está sendo quitada regularmente pelo devedor fiduciante, apesar do inadimplemento condominial.
Muito se alega sobre a impossibilidade prática de os credores fiduciários, especialmente as instituições financeiras, controlarem o pagamento das obrigações propter rem. Se por um lado, a gestão da garantia é de interesse do credor fiduciário a fim de assegurar a preservação física e econômica da coisa, eventual dificuldade de seu exercício em nada freia a deterioração da garantia em caso de inadimplemento fiscal ou condominial, havendo somente uma falsa sensação de proteção que irá ruir no momento em que o devedor fiduciante ficar inadimplente e o credor fiduciário der início à execução da garantia.
Diante de tal situação, qual seria então a melhor maneira de satisfazer o crédito da massa condominial, recaindo o ônus dessa inadimplência sobre quem de direito – o devedor fiduciante – e, ao mesmo tempo, preservar o direito de garantia do credor fiduciário?
Tal impasse não é novo e decorre da coexistência de direitos patrimoniais sobre um mesmo bem indivisível, conforme já enfrentado tanto pelo CPC de 1973, em seu art. 655-B, quanto pelo CPC de 2015, em seu art. 843 e teve início com a oposição de cônjuges meeiros à execução de bens comuns ao casal para saldar dívidas contraídas exclusivamente por um dos cônjuges.
Por outro lado, a impossibilidade de alienação do imóvel comum, como forma de preservar os direitos do cônjuge inocente, implicava, na prática, em tornar a execução ineficaz pela pouca atratividade na alienação de fração ideal e estabelecimento de condomínio com o futuro adquirente. Conforme lição de Humberto Theodoro Junior[6], “é evidente o quase nenhum interesse despertado entre os possíveis licitantes numa hasta pública em tais condições; e quando algum raro interessado aparece só o faz para oferecer preço muito inferior àquele que se apuraria na alienação total do bem.”
Foi assim que o legislador buscou adotar solução intermediária, aceitando a alienação do imóvel, o que atenderia aos interesses do exequente, sem descuidar, todavia, de garantir ao cônjuge inocente o recebimento integral da sua quota parte, como condição para a excussão do bem (art. 655-B do CPC/73 introduzido pela Lei nº 11.382/2006).
Com o advento do CPC de 2015, o legislador reforçou a sua escolha ao ampliar as hipóteses de alienação do imóvel, ainda que o executado detenha somente parte dos direitos sobre tal bem, sempre que seu fracionamento alterar a sua substância, diminuir considerável seu valor, ou prejudicar o uso a que se destina (art. 87 do Código Civil).
A possibilidade de excussão do imóvel por dívida pessoal de um de seus cotitulares decorre, portanto, de um esforço legislativo de tornar efetiva a satisfação da execução, com a remoção de óbices formais e a ampliação das medidas executivas em favor do credor[7], assegurando, no entanto, a preservação do patrimônio dos demais titulares, ainda que monetizado.
Ao se garantir a efetividade da execução ao mesmo tempo em que se preserva o patrimônio daquele que dela não participa, a lei processual busca garantir isonomia a todos os envolvidos.
No caso da alienação fiduciária, os direitos reais do credor fiduciário e do devedor fiduciante sobre o bem estão indissociavelmente ligados, razão pela qual não é possível seu fracionamento sem diminuir consideravelmente seu valor e sua atratividade.
Não por outra razão, o art. 799 do CPC estabelece a obrigação do exequente em intimar os credores fiduciários da execução sobre o bem, sendo reputada ineficaz a alienação de imóvel quando não houver tal intimação (art. 804, 3º do CPC)[8].
Importante ressaltar que a solução adotada pelo legislador pondera que mesmo para aqueles titulares de vínculo pessoal sobre o imóvel, não haveria óbice à sua monetização. No caso do credor fiduciário, cuja vinculação com o bem se dá exclusivamente por sua capacidade financeira de fazer frente ao pagamento de uma dívida em dinheiro, a monetização de seus interesses já está dada pela essência da relação com o bem.
Dessa forma, com execução judicial dos débitos condominiais, o credor fiduciário deverá ser intimado para conhecimento da existência da dívida (art. 889, V do CPC), abrindo-se a ele as seguintes opções, a seu exclusivo critério: (i) pagamento do debito condominial com a consequente sub-rogação do crédito, dando início à execução extrajudicial da garantia, nos termos da Lei nº 9.514/97; (ii) exercício do direito de preferência na arrematação do bem (art. 843, §1º do CPC), ou ainda; (iii) aguardar o leilão judicial para o recebimento de seus direitos fiduciários no equivalente em dinheiro, sendo vedada a arrematação por terceiros, caso o valor ofertado não seja suficiente para garantir o recebimento integral de sua quota-parte de acordo com o valor de avaliação do imóvel (art. 843, §2º do CPC)[9].
Finalmente, importante ressaltar que não há qualquer entrave jurídico de a penhora recair unicamente sobre os direitos aquisitivos do devedor fiduciante e o imóvel ser alienado como um todo para satisfação da execução condominial. Isso porque, a venda do imóvel ocorre como um instrumento de liquidação dos direitos penhorados e é, por esta razão, que o interesse patrimonial do terceiro não devedor é preservado (art. 843, §2º do CPC).
Essa é a opinião de Humberto Theodoro Junior: “A penhora, na verdade, não vai além da quota ideal do executado. O imóvel é alienado judicialmente por inteiro, como meio de liquidar a quota penhorada. Mas essa venda, de maneira alguma, poderá afetar a quota do condômino não devedor. Por isso, o § 2º do art. 843 defende o direito real deste, não permitindo que a expropriação por preço menor que o da avaliação prejudique o valor de sua quota ideal. Não se deferirá, portanto, a arrematação por preço que não assegure ao coproprietário “o correspondente à sua quota parte calculado sobre o valor da avaliação”.[10]
Conforme voto da Ministra Nancy Andrighi “daí porque, mesmo em se tratando de bem indivisível, a penhora deve cingir-se à quota-parte pertencente ao devedor, pois somente esta está afetada à execução e, uma vez liquidada, é que se destinará ao pagamento do credor.”[11]
Por tudo o que foi dito acima, a ponderação feita neste artigo quanto a inexistência de conflito entre a satisfação da massa condominial e a preservação dos direitos do credor fiduciário parte das seguintes premissas: (i) o credor fiduciário não é devedor das despesas condominiais, enquanto o fiduciante estiver na posse do imóvel em garantia; (ii) não sendo devedor, a penhora deverá recair exclusivamente sobre patrimônio do devedor fiduciante (direitos reais aquisitivos sobre o imóvel); (iii) não obstante a penhora recair sobre os direitos reais aquisitivos do fiduciante, o imóvel pode ser levado à leilão por inteiro para satisfação da execução, uma vez que o fracionamento seria um obstáculo à satisfação da dívida; (iii) por ser o débito condominial uma obrigação de natureza propter rem, aceitar a suspensão de sua acessoriedade ao imóvel enquanto não executada a garantia fiduciária, seria impor um duplo ônus a terceiros não devedores: a massa condominial por suportar o custo da inadimplência e ao credor fiduciário por suportar a depreciação da garantia, muitas vezes, ignorando tal situação; (iv) a satisfação da execução da massa condominial, todavia, somente poderá ocorrer, caso assegurado ao credor fiduciário o recebimento de seu direito patrimonial no equivalente ao valor de avaliação do imóvel.
Com a divergência aberta pela 4ª Turma do STJ, abre-se a oportunidade para a consolidação de um entendimento a respeito da matéria que garanta a segurança jurídica necessária a todos os envolvidos.
Fonte: Migalhas
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