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Artigo: O marco legal das garantias e a ressurreição da proscrita hipoteca – Por Mauro Antônio Rocha

A tão aguardada ressurreição da hipoteca pode advir ainda este ano caso confirmada a promulgação do PL 4.188/01, distinguido com o pretencioso epíteto de ‘marco legal das garantias’

 

No início deste século, o mais importante e utilizado instituto jurídico para a garantia no financiamento de bens imóveis, empréstimos financeiros e negócios  comerciais em geral – a hipoteca – perdeu o pouco prestígio que ainda detinha, deixando de oferecer a segurança desejada por conta de reiteradas decisões que firmaram jurisprudência favorável à admissão de embargos fundados na posse derivada de compromisso de compra e venda ainda que não registrado, numa dinâmica que culminou com a edição, no início de 2005, da súmula STJ 3081, que dela retirou os atributos da sequela e preferência, nas transações ali tratadas.

 

A partir de então, “num contexto de grande desenvolvimento em que as garantias reais existentes não se mostravam adequadas para dar vazão à produção de bens de consumo em série e ao capital acumulado para financiar a aquisição desses bens pela população, bem como para garantir o retorno dos valores investidos”, 2o milenar instituto restou praticamente proscrito no Brasil e substituído pela, naquele momento recém-criada, alienação fiduciária de bem imóvel.

 

Na prática, sobreviveu quase que exclusivamente na operação de incorporação imobiliária como garantia de pagamento de empréstimos financeiros destinados à consecução das obras e, na permuta física e financeira, do efetivo recebimento da parcela do empreendimento ajustada pelo proprietário de terreno. Subsistiu, ainda, na memória afetiva de agentes do mercado imobiliário, e financeiro pelo largo tempo de convivência e, também, por suas utilidades, suficiências e conveniências práticas não repetidas em outras garantias, que aspiravam sua reabilitação.

 

A tão aguardada ressurreição da hipoteca pode advir ainda este ano caso confirmada o final assentimento e promulgação do PL 4.188 de 2021, distinguido com o pretencioso epíteto de ‘marco legal das garantias’3que, provindo do Poder Executivo e aprovado pela Câmara Federal, trouxe em seu artigo 13, proposição de inserção de um capítulo específico na lei 9.514/97, para o tratamento da “execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca”.

 

O objetivo primário da partição formada por um único artigo enriquecido com quinze parágrafos coincide com a intenção comum a todas as matérias do projeto de lei – que exala do texto original elaborado nas entranhas do Ministério da Fazenda, ainda no governo anterior, com a participação do grupo integrante da IMK – Iniciativas do Mercado de Capitais4 – de propiciar aos mercados financeiro e de capitais meios de, pelo recrudescimento dos procedimentos de execução de débitos, facilitar, simplificar, automatizar para, ao fim e ao cabo, irresponsabilizar, pela força da garantia, a descuidada concessão dos créditos.

 

É reconhecida a importância do crédito para o funcionamento dos setores produtivos, das empresas e das famílias e não pretendemos aqui demonizar o robustecimento dos meios de recuperação dos recursos investidos e o imperioso cumprimento das obrigações assumidas, nem a defender o afrouxamento da responsabilidade patrimonial dos devedores. O que não parece razoável é o abrandamento – aparentemente coordenado e progressivo – dos critérios de pontuação de ‘score’ e apuração da idoneidade e capacidade financeira dos tomadores em contraponto para a excessiva oneração patrimonial do devedor e do consequente desperdício de garantia quando cumprida a obrigação ou para a excessiva penalização do devedor, no caso de descumprimento, pela excussão forçada, imediata e incontinenti para a venda do bem imóvel por valores incompatíveis com a grandeza patrimonial ali representada, que obriga o devedor a retirar-se de sua casa; é dizer, desertar de sua habitação, assentamento, ‘enraicinement’ humano, desestruturando a persona, a família e o patrimônio.

 

Conforme citado por DIP5, “Dostoievski, na mais importante de suas todas sempre notáveis obras, Os demônios, põe sob o escrito de uma de suas personagens, Nikolai Stavroguin, a referência de que perder alguém o vínculo com sua terra, faz-lhe ‘perder os deuses’, ou seja, perder seus próprios fins”.

 

  1. Execução extrajudicial do crédito hipotecário

 

Para proporcionar a execução extrajudicial do crédito hipotecário o legislador apostou no aproveitamento dos procedimentos conhecidos e já experimentados da execução extrajudicial da garantia fiduciária, com as adaptações requeridas por se tratar a hipoteca, de direito real de garantia sobre coisa alheia.

 

O texto revisado e aprovado pelo plenário do SN tratou – acertadamente – de suprimir a proposta de inserção do referido capítulo na lei de regência da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia, para que, ‘com as adaptações redacionais necessárias e associadas aos ajustes provenientes de outras emendas’, seja transformado em capítulo, agora autônomo e “para inclusão onde couber”, com as emendas que serão a seguir comentadas.

 

Dispõe o ‘caput’ (do originalmente artigo 33-G da lei 9.514/97) que os créditos garantidos por hipoteca poderão ser executados extrajudicialmente “independentemente de previsão contratual”. No parágrafo décimo-terceiro do artigo em comento fica estabelecida a exceção com relação “às operações de financiamento da atividade agropecuária.”

 

A independência contratual aqui tratada é, a nosso ver, resquício da redação inaugural não expurgada que poderá ser refinada pela Câmara sem caracterizar alteração do texto bicameral aprovado.

 

De toda forma, encontramos no parágrafo décimo-quinto, acrescido ao texto pela emenda SF 17, disposição que torna explícita, como requisito de validade do negócio jurídico, previsão expressa no título constitutivo da hipoteca, “do procedimento previsto neste artigo, com menção ao teor dos §§ 1º a 10”.

 

Demais disso, a aplicação do procedimento executivo principiado deve ser, evidentemente, restrita aos contratos celebrados sob a vigência da lei, não afligindo contratos firmados antes de sua aprovação, em respeito ao direito intertemporal.

 

  1. Procedimento de excussão extrajudicial do crédito hipotecário           

 

Os parágrafos 1º, 2º e 3º prescrevem que a intimação pessoal do devedor (e se for o caso, do terceiro hipotecante ou seus representantes legais ou procuradores regularmente constituídos) que não paga a dívida hipotecária no vencimento aprazado seja realizada pelo oficial de registro de imóveis da situação do imóvel hipotecado, com a observância do disposto no art. 26 da lei 9.514/97, conferindo o prazo de quinze dias para a purgação da mora e regularização do débito.

 

O pagamento no prazo legal da dívida extinguirá a hipoteca e o das parcelas vencidas até a data da purgação implicará no convalescimento do contrato.

 

A não purgação no prazo concedido será averbada, a requerimento do credor, na matrícula do imóvel nos quinze seguintes ao decurso do prazo para o efetivo pagamento – o que corresponde na alienação fiduciária à consolidação da propriedade – ficando o credor autorizado a iniciar a “excussão extrajudicial da garantia hipotecária por meio de leilão público”.

 

Neste ponto, cumpre ressaltar os cuidados normalmente evocados quanto à validade da intimação realizada e a responsabilidade do registrador e do credor pela utilização da intimação ficta (intimação por hora certa e pela publicação de edital), bem assim pelo respeito aos prazos que, apesar de não expressamente peremptórios, podem ensejar prejuízos morais e materiais aos devedores e exigidos judicialmente.

 

  1. Remissão da hipoteca

 

Dispõe o parágrafo sétimo que, antes de o bem ser alienado em leilão, o devedor ou prestador da garantia hipotecária poderá remir a execução mediante o pagamento da totalidade da dívida, acrescido das despesas incorridas. Como ocorre na consolidação da propriedade fiduciária, após o averbamento do decurso do prazo de purgação da mora, a remissão será efetuada mediante o pagamento integral da dívida, despesas e encargos.

 

  1. Leilão público para venda do imóvel hipotecado

 

O leilão público do imóvel hipotecado (parágrafos 5º a 9º) será realizado, inclusive por meio eletrônico, no prazo de sessenta dias contados da averbação do decurso do prazo de purgação, sendo obrigatória a comunicação das datas, horários e locais ao devedor (“e se for o caso, o terceiro hipotecante ou seus representantes legais ou procuradores regularmente constituídos”) por meio de correspondência dirigida aos endereços, inclusive eletrônicos, conhecidos.

 

Tal como na lei 9.514/97 o legislador nada informa sobre as formas de notificação admitidas e, principalmente, acerca da confirmação de envio e do recebimento dessa comunicação pelo destinatário, provavelmente aplicando o entendimento jurisprudencial majoritário do dever de manutenção dos endereços cadastrais atualizados e de ser bastante a comprovação do encaminhamento ao último endereço fornecido, inclusive eletrônico.

 

O imóvel hipotecado deverá ser oferecido em leilão para venda por valor igual ou superior ao valor estabelecido no contrato para fins de excussão ou ao valor de avaliação (sic) realizada para cálculo do ITBI, o que for maior.

 

Na ausência de lance vencedor, será realizado um segundo leilão nos quinze dias seguintes e “aceito o maior lance oferecido, desde que seja igual ou superior ao valor da dívida garantida pela hipoteca, das despesas, inclusive emolumentos cartorários, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais, podendo, caso não haja lance que alcance o referido valor, ser aceito pelo credor hipotecário, a seu exclusivo critério, lance que corresponda a, pelo menos, metade do valor de avaliação do bem”.

 

Ao atribuir ao credor o “exclusivo critério” para aceitação de lance inferior ao valor da dívida (que corresponda, a pelo menos, metade do valor de avaliação do bem), a redação opaca da norma nos permite entender que o exercício do consentimento legal desonera o devedor e impede o credor de prosseguir na execução de qualquer saldo devedor, porém, se assim for, não tem o menor sentido a limitação também imposta.

 

Caso a arrematação alcance valor superior à dívida acrescida dos encargos e despesas, o excedente será entregue ao hipotecante no prazo de quinze dias “contado da data da efetivação do pagamento do preço da arrematação”.

 

É inexplicável, quando transferências bancárias são realizadas de forma automática e instantânea, que o legislador confira o prazo de quinze dias para entrega do excedente ao devedor, sem a incidência de juros e atualização monetária sobre o montante retido em evidente prejuízo do excutido.

 

Não havendo lance vencedor o credor poderá (i)  apropriar-se do imóvel em pagamento da dívida, a qualquer tempo, pelo valor correspondente ao referencial mínimo devidamente atualizado, mediante requerimento ao oficial do registro de imóveis competente, que registrará os autos dos leilões negativos com a anotação da transmissão dominial em ato registral único, dispensada a ata notarial de especialização; ou (ii) no prazo de até 180 (cento e oitenta) dias contado do último leilão, realizar a venda direta do imóvel a terceiro, por valor não inferior ao referencial mínimo, dispensado novo leilão, hipótese em que o credor hipotecário ficará investido, por força desta Lei, de mandato irrevogável para representar o garantidor hipotecário, com poderes para transmitir domínio, direito, posse e ação, manifestar a responsabilidade do alienante pela evicção e imitir o adquirente na posse.

 

O parágrafo nono – com as disposições acima – ganha especial destaque pela redação desastrada que assim inicia: “na hipótese de o lance oferecido no segundo leilão não ser igual ou superior ao referencial mínimo estabelecido no § 6º para arrematação, o credor terá a faculdade de…”

 

Voltemos ao parágrafo sexto:

 

No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que seja igual ou superior ao valor integral da dívida garantida pela hipoteca, das despesas, inclusive emolumentos cartorários, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais, podendo, caso não haja lance que alcance referido valor, ser aceito pelo credor hipotecário, a seu exclusivo critério, lance que corresponda a, pelo menos, metade do valor de avaliação do bem.

 

Parece evidente que o ‘referencial mínimo estabelecido’ a que se refere o § 9º é o valor integral da dívida, mais encargos e despesas, uma vez que a venda por valor correspondente a metade do valor de avaliação constitui exceção cuja adoção, ‘a exclusivo critério do credor’, não poderá representar prejuízo financeiro ou violação de direitos do devedor ou hipotecante.

 

Ademais, é tão desgastante ao credor a busca por algum sentido para a segunda alternativa, quanto pela opção por uma delas.

 

Na primeira alternativa, o parágrafo 9° outorga ao credor a apropriação do imóvel pelo ‘referencial mínimo’, transmitindo-lhe a propriedade plena que permite a venda direta a qualquer tempo, por qualquer preço, dispensada qualquer espécie de prestação de contas a quem quer que seja, com poderes para transmitir domínio e imitir o adquirente na posse.

 

Na segunda alternativa, ao credor é oferecido o prazo de 180 dias para realizar a venda direta do imóvel, por valor limitado ao ‘referencial mínimo’, – com mandato para representar o devedor hipotecário e poderes para transmitir domínio e imitir o adquirente na posse, mantida, naturalmente, a obrigação de prestação de contas no caso de venda por valor superior ao da dívida integral.

 

Com os critérios utilizados para a alienação fiduciária, dispõe no parágrafo décimo, que somente nas operações de financiamento para a aquisição ou construção de imóvel residencial do devedor – excetuadas as operações realizadas com administradoras de consórcios – na arrematação por valor insuficiente ao pagamento da dívida acrescida dos encargos e despesas o devedor ficará exonerado da responsabilidade pelo saldo remanescente, não se aplicando o disposto no art. 1.430 do Código Civil.

 

Finalmente, o parágrafo 9º dispõe que na opção pela apropriação do imóvel pelo credor o oficial de registro de imóveis “registrará os autos dos leilões negativos com a anotação da transmissão dominial em ato registral único”, dispensando a ata notarial de especialização.

 

Não consta do rol do art. 221 da lei 6.015 que “autos dos leilões negativos” constituam títulos admitidos a registro e, a rigor, não se encontrará na doutrina registral posicionamento favorável à transmissão automática da propriedade do bem ao credor tão-só pela ausência de lance vencedor em leilão.

 

  1. Transmissão da propriedade ao arrematante ou comprador

 

Aceito o lance vencedor, diz o parágrafo onze que os autos do leilão e o processo de execução extrajudicial da hipoteca serão distribuídos a tabelião de notas com circunscrição delegada que abranja o local do imóvel para lavratura da ata notarial de arrematação, com os dados da intimação do devedor e do garantidor e dos autos de leilão e constituirá título hábil de transmissão da propriedade ao arrematante a ser registrada na matrícula do imóvel.

 

Cabe ressaltar que não há serviço de distribuição, nem vinculação geográfica para os cartórios de notas, o que prejudica o entendimento do dispositivo acima referido.

 

Em qualquer das hipóteses (arrematação, venda privada ou adjudicação) deverá ser previamente apresentado ao registro imobiliário o comprovante de pagamento do imposto sobre transmissão e, se for o caso, o laudêmio.

 

A expressão previamente, inserida no parágrafo décimo-quarta se mostra inadequada, devendo os comprovantes tributários serem apresentados ao registro imobiliário por ocasião do requerimento de registro.

 

  1. Desocupação do imóvel e imissão na posse

 

A desocupação do imóvel excutido, mesmo quando houver locação, e a apuração da taxa de ocupação e despesas vinculadas ao imóvel obedecerá aos procedimentos estabelecidos para a alienação fiduciária de bem imóvel e se fará de conforme os §§ 7º e 8º do art. 27 e os art. 30 e 37-A da lei 9.514/97, equiparando a norma, “a data de consolidação da propriedade na alienação fiduciária à data da expedição da ata notarial de arrematação ou, se for o caso, do registro da apropriação definitiva do bem pelo credor hipotecário”.

 

Fonte: Migalhas

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