Positivado o direito (inciso I, do artigo 32-A da Lei 13.786/18), por qual razão não aplicá-lo?
O cenário da compra e venda de imóveis no Brasil foi substancialmente alterado pela promulgação da Lei 13.786/18, conhecida como a Lei do Distrato.
Com efeito, o referido veículo normativo surgiu com o objetivo de “disciplinar a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento do solo” [1], ou seja, enumerar os direitos e obrigações quando da rescisão do contrato de compra e venda por culpa do comprador, conferindo, assim, segurança jurídica e previsibilidade para ambas as partes.
Dentre as importantes alterações promovidas pela Lei 13.786/18, destaca-se o direito de retenção da fruição prevista no inciso I do artigo 32-A. Isto é, havendo a rescisão do contrato de compra e venda por culpa do comprador, a loteadora poderá reter mensalmente, a título de fruição, até o equivalente a 0,75% do valor atualizado do contrato, desde a data da transmissão da posse até a sua restituição ao loteador.
Entretanto, para a surpresa das loteadoras, o mencionado direito vem sendo sistematicamente negado pelos tribunais, que afastam não só o direito posto, como também todas as teses e argumentos que o sustentam, sempre por meio de um simples chavão jurisprudencial (segundo o qual não se admite a retenção da fruição em lote vago, isto é, em terreno não edificado).
Não obstante o referido posicionamento, entendemos humildemente, e com todas as vênias cabíveis, que a retenção da fruição é manifestamente legítima pelas seguintes razões.
Por primeiro, o direito à retenção da fruição está previsto em lei, o que por si só bastaria para a sua aplicação. Aliás, a fruição está prevista em norma específica e promulgada para regulamentar e pacificar a matéria, ou seja, a fruição não deriva de nenhum esforço hermenêutico, tampouco da interpretação subjetiva de princípios ou normas abstratas, mas sim de um direito objetivo. Logo, por qual razão deixar de aplicá-lo?
Por segundo, não se desconhece que é dado ao juiz o direito de afastar a aplicação de determinada norma, contudo, para fazê-lo, deve-se respeitar o procedimento legal existente (controle difuso de constitucionalidade) o que nem de longe é realizado nos casos de rescisões contratuais.
Portanto, enquanto não houver a declaração de inconstitucionalidade do inciso I, do artigo 32-A da Lei 13.786/18, é poder-dever do judiciário realizar a sua regular aplicação e não simplesmente negar vigência ao referido inciso.
Por terceiro, a jurisprudência e o próprio STJ são pacíficos em reconhecer que a fruição tem natureza jurídica de aluguel [2], contudo, contraditoriamente negam a sua retenção utilizando-se de um argumento padrão de que é indevida a fruição quando se tratar de lote de terreno sem edificação [3].
Ocorre que, a fruição não decorre da efetiva utilização do bem pelo adquirente, mas sim da disponibilidade jurídica do imóvel em favor do comprador, que se dá quando da transmissão da posse.
Tanto é verdade, que se o locatário de um imóvel optar por não fazer uso da coisa, ao término do contrato deverá pagar o aluguel correspondente? Por óbvio que sim!
E por qual razão? Porque o bem ficou à sua disposição, pouco importando se houve ou não a efetiva utilização da coisa ou qualquer proveito econômico.
Entendimento contrário, autorizaria o locatário a deixar de pagar o aluguel pelo período em que não fez uso do imóvel (viagem de férias), o que seria um absurdo.
Portanto, resta evidente que a fruição não deriva da ocupação/utilização física do imóvel pelo adquirente, mas da transferência da posse, que marca a efetiva disponibilidade/entrega do imóvel para o adquirente, podendo este fazer ou não uso da coisa caso queira.
Prova disso é que não há qualquer ressalva na Lei 13.786/2018 nesse sentido, tampouco menção acerca da necessidade de edificação sobre o lote ou efetiva utilização, e nem poderia ser diferente. Diz-se, isso, pois o artigo 32-A é aplicável exclusivamente para os contratos de loteamento, ou seja, para a compra e venda de lotes vagos (sem edificação).
Logo, se as retenções previstas no artigo 32-A da Lei 13.786/2018, em especial a fruição, são destinadas a reger os contratos de compra e venda de lotes de terrenos vagos, torna-se manifestamente contraditório deixar de aplicá-la por tratar-se de lote vago!
Ademais, como dito, a utilização ou não do lote pelo comprador, encontra-se exclusivamente no campo da sua discricionariedade, alijando por completo qualquer atuação da vendedora no sentido de obrigá-lo a fazer uso da coisa, mesmo porque eventual intromissão neste sentido constituiria inegável violação a esta legítima discricionariedade.
Portanto, uma vez transferida a disponibilidade do imóvel ao comprador, ficará exclusivamente ao seu critério fazer uso ou não da coisa, motivo pelo qual a vendedora jamais poderá ser “punida” se o comprador optou por deliberadamente permanecer com a posse do bem por longos anos sem erigir qualquer construção.
Em contrapartida, é inegável que enquanto o bem permaneceu na posse do comprador, a loteadora (vendedora) restou privada de utilizá-lo, revendê-lo ou dispô-lo de qualquer outro modo, motivo pelo qual quando do desfazimento do contrato por culpa do comprador, a indenização torna-se manifestamente devida, sob pena de ensejar o enriquecimento sem causa.
Neste sentido, são alguns raros e valiosos julgados:
“A fruição se deve à utilização do imóvel pelo tempo em que esteve disponível ao consumidor. Se dele fez uso ou não, é circunstância que escapa aos limites da lide. Não se há que confundir os institutos.” (AgInt no REsp nº 1.863.339 SP. Julgado em 20/3/2021).
“A taxa de fruição se destina a obstar o enriquecimento sem causa daquele que teve à sua disposição a unidade imobiliária adquirida. Dessa forma, autora esteve em sua posse, devendo, por conseguinte, indenizar a empresa ré pelo tempo em que esta permaneceu tolhida de empregar outra destinação econômica ao bem conquanto o imóvel consista em lote de terreno não edificado, é inegável que a parte autora esteve em sua posse, devendo, por conseguinte, indenizar a empresa ré pelo tempo em que esta permaneceu tolhida de empregar outra destinação econômica ao bem.” (TJ-MS. Apelação Cível nº 0801614-25.2022.8.12.0002 – Julgado em 31/8/2023).
“Admite-se, a título de taxa de fruição, a retenção de um percentual pelo vendedor, além daquele a título de cláusula penal, a fim de que sejam devidamente compensados a privação da disponibilização do bem alienado, de posse da compradora, irrelevante tenha nele construído, ou não. No caso, recebendo a compradora a posse do imóvel, a taxa de fruição é fixada em 0,75% mensais sobre o valor do bem.” (TJ-MS. Apelação Cível nº 0810034-87.2020.8.12.0002 – Julgado em 27/5/2021).
Por último e não menos importante, a retenção da fruição além de se encontrar prevista na lei, também está prevista nos contratos assinados pelos compradores, onde estes fazendo uso de sua autonomia de vontade, optaram livremente por reconhecer como devida a retenção da fruição, que frisa-se, somente ocorre quando há o inadimplemento do contrato pelo próprio comprador.
Vale dizer, não há espaço para retenção da fruição em caso de adimplemento, mas apenas e tão somente em caso de inadimplemento, como meio de manter o equilíbrio econômico-financeiro do contrato violado pelo comprador.
Daí por que, qualquer ingerência em sentido contrário, significa desprestigiar por completo a Lei 13.786/18, violar flagrantemente os princípios da boa-fé contratual (artigo 422 CC), da autonomia da vontade (artigo 5º, II da CF/88) e da intervenção mínima (artigos 421 e 421-A do CC), contribuindo, assim, para premiar o inadimplente e gerar insegurança jurídica sobre o tema.
Posto isso, se o intuito do legislador quando da criação da Lei 13.786/18 foi de regulamentar a matéria para “…garantir segurança tanto aos consumidores quanto às empresas e evitando que inúmeras ações sejam encaminhadas ao judiciário” [4], infelizmente o seu objetivo não foi alcançado, não pela ausência de lei, mas pela falta de sua aplicabilidade.
[1] Preâmbulo da Lei 13.786/2018: “Altera as Leis n º 4.591, de 16 de dezembro de 1964, e 6.766, de 19 de dezembro de 1979, para disciplinar a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano.”
[2] A indenização pelo tempo de utilização do imóvel tem natureza jurídica de aluguéis e se justifica pela vedação ao enriquecimento sem causa. Por isso, a indenização pelo tempo de fruição do bem deve basear-se no valor de aluguel do imóvel em questão e o promissário vendedor deve receber pelo tempo de permanência do comprador desistente. (REsp nº 2.024.829/SC, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 7/3/2023, DJe de 10/3/2023.)
O supracitado precedente desta Corte e outros indicam que tal indenização pelo tempo de fruição do bem deve basear-se no valor de aluguel do imóvel em questão. (…) É de rigor, portanto, a reforma do acórdão recorrido também no ponto e fixada a indenização pelo tempo de fruição do bem com base no valor de aluguel do imóvel ocupado, a ser aferido em sede de liquidação de sentença. (AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.657.021/SP, relator ministro Marco Buzzi, 4ª Turma, julgado em 21/9/2020, DJe de 24/9/2020.)
No contrato de compra e venda de imóveis residenciais, o enriquecimento sem causa do comprador é identificado pela utilização do bem para sua moradia, a qual deveria ser objeto de contraprestação mediante o pagamento de aluguéis ao vendedor pelo tempo de permanência. (REsp nº 1.863.007/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 23/3/2021, DJe de 26/3/2021.)
[3] A jurisprudência sedimentada nesta Corte entende ser inviável a cobrança de taxa de fruição no caso de lote não edificado, em razão da efetiva ausência de utilização do bem. (AgInt no AREsp nº 2.141.386/SP, relator ministro Moura Ribeiro, 3ª Turma, julgado em 24/10/2022, DJe de 26/10/2022.)
[4] Justificativa do legislador para criação da Lei 13.786/18: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1323397&filename=Tramitacao-PL%201220/2015
Fonte: Conjur
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