Muito se tem falado e se tem ouvido sobre o projeto de atualização e reforma do Código Civil, sobretudo após a entrega oficial do Anteprojeto de Lei nas mãos do Senador Rodrigo Pacheco, ocorrida no dia 17 de abril.
A periodicidade dos artigos publicados nesta coluna tem sido de suma importância para trazer alguns esclarecimentos quanto a pontos que vêm sendo discutidos, desde então, em Congressos, palestras e em salas de aula dos cursos de Direito.
Importante frisar que não é um Anteprojeto de um “Novo Código Civil”. Mesmo que o número de artigos apresentado possa, aos olhos de alguns, representar uma modificação bastante extensa a ponto de poder ser tida como um novo diploma, essencial ressaltar que muitas das modificações propostas foram, apenas e tão somente, adequações do texto legal ao mandamento constitucional de igualdade, mormente porque o projeto do Código Civil de 2002 já tramitava quando da promulgação da Constituição Federal, sendo esperado que as atualizações feitas por emenda pudessem deixar escapar, como ocorreu em vários dispositivos, discriminações não mais aceitas, desde 1988, em que pese a aprovação do texto civil tenha se dado mais de uma década depois.
Focando no Direito de Família, um dos livros com grande número de atualizações propostas, podemos dar como exemplo a discriminação com relação aos filhos adotivos, como aquela que proíbe o casamento do “adotado com o filho do adotante” (artigo 1.521, V, do Código Civil). Ora, o que seriam estes se não irmãos?
Não se justifica uma disposição neste sentido e o que se tem feito em salas de aulas, há mais de 20 anos, é comentar sobre o deslize de nossos legisladores ao manterem dispositivo previsto no Código Civil de 1916, categorizando a filiação, uma vez que, desde 1988, temos a vedação expressa de discriminação entre os filhos (artigo 227, parágrafo 6º, Constituição Federal).
Outro exemplo de não atenção ao princípio da igualdade, agora relacionado ao gênero, pode ser citado na redação do inciso V do artigo 1.597 do Código Civil, no qual se considera filho por presunção aquele havido “por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”, ou seja, pode ser utilizado na inseminação espermatozoide de doador apenas com a concordância do marido. Não se exige, dessa forma, a anuência da esposa. Saberia o marido o que é melhor para o casal? O projeto parental não teria de ser de ambos?
Mais um destaque pode ser feito com o próprio caput do artigo 1.597 que presume concebidos “na constância do casamento” os filhos nas situações descritas em seus cinco incisos. Questiona-se, neste caso, se há presunção apenas para filhos concebidos na constância do casamento… Não seriam também filhos por presunção aqueles concebidos na constância da união estável, reconhecida, constitucionalmente, como entidade familiar, desde 1988?
No âmbito patrimonial, a extinção da obrigatoriedade do regime da separação total de bens para o maior de 70 (setenta) anos é também medida que atende à igualdade, garantida na CF de 88, uma vez que, em lei, existe idade para adquirir a capacidade, mas não para perdê-la, sendo a obrigatoriedade imposta pelo atual texto civil prática de etarismo com “roupagem” de proteção patrimonial, absolutamente contrária à igualdade constitucional.
Estes são alguns exemplos que demonstram que os três grandes pilares constitucionais que modificaram substancialmente o Direito de Família, quais sejam, igualdade entre homens e mulheres, igualdade entre filhos e o reconhecimento da União Estável como entidade familiar não foram integralmente observados no texto do Código Civil atual.
Fazendo uma análise um pouco mais acurada da proposta apresentada ao Senado, pode-se observar que a palavra convivente aparece 150 (cento e cinquenta) vezes no Anteprojeto proposto para a reforma, o que demonstra a necessidade de termos a proteção, prevista em lei e de forma clara, das pessoas que vivem em união estável, considerada um núcleo familiar e, assim sendo, merecedora de ser tratada como tal.
No quesito da atualização, percebe-se pela novidade do Livro proposto para o Direito Civil Digital que, nestas últimas décadas, surgiram temas tão novos que não se poderia supor, nos idos dos anos 70 – início da tramitação do projeto do atual Código – que seriam tantos os nossos desafios. Máquinas que antes eram apenas ferramentas, hoje disputam com seres humanos a resolução de problemas com o uso da Inteligência Artificial, ao final, trazendo-nos, ao invés de apenas soluções, inúmeros impasses.
Outro importante exemplo de situação não existente quando da elaboração do projeto do Código Civil de 2002 é o da Reprodução Humana Assistida por meio de emprego de técnicas médicas.
O primeiro bebê concebido por fertilização “in vitro”, chamado de “bebê de proveta”, veio ao mundo, em 1978, na Inglaterra, sendo a técnica utilizada, no Brasil, pela primeira vez, em 1984, portanto, há 40 (quarenta) anos.
No Código Civil em vigor há apenas 3 (três) incisos que tratam do tema, mas em todos há imperfeições técnicas e, sobretudo, discriminações.
Atenderia ao princípio da igualdade prever que são filhos por presunção aqueles havidos a qualquer tempo quando se tratar “de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga”? Ou seja, apenas aqueles que estão congelados e foram feitos com material do próprio casal (homóloga)? Se estiverem congelados e tiverem sido concebidos com material de doadores (heteróloga) não são filhos por presunção?
Outras reverberações, omissões e incongruências sobre a aplicação e uso das técnicas de Reprodução Humana Assistida serão trazidas em uma próxima contribuição a esta coluna, uma vez que ensejaram a apresentação no Anteprojeto de detalhamento em capítulo específico chamado de Filiação decorrente de Reprodução Assistida (Artigos 1.629-A e seguintes).
Os pontos ressaltados, contudo, ilustram a desigualdade da atual disciplina legal, mais uma demonstração de que urge a revisão.
A parentalidade socioafetiva, há muito reconhecida pelos tribunais, é também apresentada no Anteprojeto para que possa ser regulada em lei, o que lhe confere a segurança e a igualdade de tratamento necessárias (Artigos 1.617-A e seguintes).
Embora muitos outros temas possam ser destacados, os acima escolhidos contribuem para que os leitores compreendam que muito do que se propõe é uma adequação necessária a mandamentos constitucionais e às exigências de novos temas que ainda não foram regulados pelo texto civil, aprovado em 2002.
Necessário, por fim, ressaltar que a reforma, no Livro de Família, trouxe mudanças significativas na ordem de alguns dispositivos.
Em primeiro lugar, as Relações de Parentesco foram trazidas logo no início, em capítulo próprio nominado “Das Pessoas na Família”, alteração defendida pela relatora Rosa Maria Nery como mudança primordial para podermos, de pronto, saber “quem é quem” nas relações familiares.
Observamos, na consultoria, a necessidade de se retirar a União Estável de um tratamento apartado para colocá-la no mesmo local em que estão os dispositivos relativos ao Casamento, pois estariam ambas as famílias tuteladas de forma equânime.
Outro mote dos trabalhos foi o de buscar a simplificação dos procedimentos e prestigiar a autonomia da vontade.
Notam-se estas características na simplificação do então chamado processo de habilitação do casamento, agora na proposta – Procedimento Pré-nupcial, e na opção pela supressão das causas suspensivas, ambos os pontos bem justificados pelo relator Flávio Tartuce.
A liberdade de pactuar pode ser vista na Sunset Clause (Artigo 1.653-B), inserção defendida pelo relator da Subcomissão de Direito de Família, Pablo Stolze.
Merece distinção a preocupação com a proteção de vulneráveis, demonstrada, exemplificativamente, no reconhecimento de filiação, tendo sido incluído, no texto da proposta, o registro da paternidade para aquele que foi apontado como genitor, em via administrativa, em caso de negativa de realização do exame de D.N.A, restando a ele eventual contestação e respectivo ônus da prova (artigo 1.609-A), texto aprovado após as ponderações de Maria Berenice Dias.
A proteção dos vulneráveis pode ainda ser observada com a inserção na proposta dos Alimentos Compensatórios, com alinhamentos de Rolf Madaleno (Artigo 1.709-A e seguintes), e com a Tomada de Decisão Apoiada, com as ponderações do Ministro Marco Buzzi (Artigo 1.783-A e seguintes).
É bem verdade que prestigiar a igualdade e a autonomia exige sair do antigo modelo e passar a viver sob a perspectiva da responsabilidade pelas escolhas e consequentes renúncias, alterações que, embora fundamentais, nem sempre são fáceis ou de simples implementação.
Por fim, para aqueles que desaprovam as mudanças propostas com o argumento de que elas, muito em breve, também estarão desatualizadas, seguem as lições de Miguel Reale, quando, na qualidade de Supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil de 2002, na exposição de motivos que fez, em 1975, ressaltou que “o que importa é ter olhos atentos ao futuro, sem o temor do futuro breve ou longo que possa ter a obra realizada”1, afirmando que “Códigos definitivos, intocáveis não os há, nem haveria vantagem em tê-los, pois sua imobilidade significaria a perda do que há de mais profundo no ser do homem, que é o seu desejo perene de perfectibilidade”2.
Que a imobilidade não nos domine, que o desejo de perfectibilidade nos mova e que a noção da nossa falibilidade sempre nos acompanhe para que mantenhamos a humildade própria daqueles que sempre evoluem e aceitam discutir ideias novas sem a paralisia do medo de errar.
Minhas mais sinceras homenagens ao bravo grupo de 40 (quarenta) juristas, nas pessoas dos Relatores Gerais Rosa Maria de Andrade Nery e Flávio Tartuce, e do Presidente e Vice-Presidente da Comissão Ministros do STJ Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Belizze que lideraram por meses os trabalhos árduos, porque democráticos, realizados com tanta dedicação por todos. Foi, é e sempre será um orgulho fazer parte deste tão valoroso grupo.
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1 M. REALE, O projeto do Novo Código Civil: situação após aprovação pelo Senado Federal, 2ª ed., Saraiva, São Paulo, 1999, p. 47.
2 Idem.
Fonte: Migalhas
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