Em nossa coluna de fevereiro, iniciamos o raciocínio sobre a reforma do CC em matéria de vício redibitório (arts. 441 a 446 do CC), tema que trabalhei em minha dissertação de mestrado nos anos de 1997-2002.

 

Temos, agora, o anteprojeto entregue ao Senado Federal. A entrega se deu em 17/3/24. Cabe, então, concluir nossas reflexões com o resultado final, ou seja, qual foi a proposta que constou do anteprojeto.

 

  1. a) Art. 441

 

A seção V passa a se chamar “Dos vícios ocultos”. Melhor que vícios redibitórios (apesar da tradição), porque: (i) uniformiza a linguagem com a adotada pelo CDC; e (ii) redibição – desfazimento do contrato – é apenas um efeito do vício, já que se permite, também, o abatimento (redução do preço).

 

Trocar “enjeitar” por “rejeitar” é atualizar a linguagem apenas. Os verbos são sinônimos. Dá mais clareza “rejeitar”.

 

Há um novo parágrafo acrescido ao art. 441 que assim dispõe: “§ 2º Os vícios ocultos de que trata o caput já devem ser ao menos existentes ao tempo da aquisição da coisa, não sendo necessário que estejam manifestados nessa ocasião.”

 

Leia-se: Não podendo ter se manifestado antes da entrega. Se já se manifestou antes da entrega, o visto passa a ser aparente e logo cabe ao adquirente rejeitar de imediato a coisa. Se a aceita, aceita o vício e dele não pode reclamar.

 

  1. b) Art. 441 – A

 

Art. 441-A. O transmitente não será responsável por qualquer vício do bem se, no momento da conclusão do contrato, o adquirente sabia ou não podia ignorar a sua existência, considerados as circunstâncias do negócio e os usos e os costumes do lugar da sua celebração.

 

Parágrafo único. Se a identificação do vício demandar preparação científica ou técnica, deve-se levar em consideração se, diante da qualificação do adquirente, de sua atividade profissional, ou da natureza do negócio, era seu ônus buscar elementos técnicos que permitissem aferir a presença ou não de vícios.

 

O dispositivo segue com a distinção entre vício aparente e vício oculto. Será aparente o vício se o adquirente sabia da existência (foi informado pelo alienante ou um terceiro, por exemplo) ou deveria saber (por exemplo, o preço do bem é tão ínfimo que só pode ter um defeito).

 

O termo “adquirente” substitui “comprador”, que constava da proposta original da subcomissão.

 

Novamente, o parágrafo mostra que o standard do “homem médio” não é sempre o utilizado para a distinção entre vício oculto e aparente. Um mecânico que compra um carro, um veterinário que compra um animal, um dentista que compra objetos de uso profissional etc. Aqui temos uma situação de qualificação do adquirente que exige dele maior cuidado na celebração do contrato comutativo. Eu chamaria de adquirente qualificado em razão de seus conhecimentos.

 

Não se trata mais de um adquirente “em abstrato”, mas sim em concreto.

 

  1. c) Art. 442

 

Art. 442. Caracterizado o vício oculto, o adquirente pode, à sua escolha:

 

I – rejeitar a coisa, resolvendo o contrato, sem prejuízo das perdas e danos;

 

II – reclamar o abatimento no preço ou;

 

III – salvo pacto em contrário, exigir seja sanado o vício da coisa, mediante o custeio de reparos, salvo se o alienante dispuser- se a realizá-los diretamente ou por terceiro.

 

Parágrafo único. Quando os reparos ficarem a cargo do alienante e não forem realizados no prazo de até trinta dias ou prazo superior que tenha sido pactuado pelas partes, o adquirente poderá optar pela resolução do contrato ou pelo abatimento no preço.

 

Além das tradicionais alternativas (redibição ou abatimento do preço), o anteprojeto dispõe que o adquirente (melhor dizer adquirente que comprador) possa exigir do alienante as despesas que teve com o reparo do vício, salvo se o último se propuser a realizar os reparos. A regra sugerida é positiva. O alienante tem a opção, a escolha de reparar o vício (ele mesmo ou terceiros por suas expensas). Se não fizer, o adquirente o fará e terá direito ao reembolso (direito restitutório). O prazo prescricional da pretensão de restituição será aquele previsto na parte geral para o enriquecimento sem causa (atualmente de 3 anos).

 

Nos moldes do CDC, se o alienante tiver que fazer os reparos, há um prazo de 30 dias para tanto. Decorrido tal prazo sem que o reparo tenha ocorrido, poderá o adquirente exigir o abatimento do preço ou a redibição.

 

Questão interessante se coloca. O adquirente pode se valer desde logo da ação redibitória ou da quanti minoris (incisos I e II do projetado art. 442) ou tem o direito suspenso até que decorram os 30 dias previstos no inciso III? A regra projetada é clara. O adquirente tem uma de três opções: i) redibição; ii) abatimento do preço; e iii) exigir o saneamento do vício. Não há, como no CDC, um direito do alienante de sanar o vício do bem.

 

O adquirente, que pela redação atual do CC tinha duas alternativas, passa a ter três. Logo, o parágrafo único projetado se refere apenas ao inciso III e não aos demais.

 

É o inciso I que mudou radicalmente se compararmos o relatório da subcomissão e o relatório final:

 

Temos não mais “redibir”, mas sim resolver. Correto e melhor. Conforme analisei quando fiz minha dissertação de mestrado em 20011:

 

Seguindo o raciocínio de Orlando Gomes, a redibição dos contratos comutativos em virtude de vício oculto seria uma modalidade especial de resolução do contrato, pois tem como causa a inexecução parcial em forma específica, ou seja, a entrega de coisa que não tem as qualidades comuns às demais de sua espécie. Faltam à coisa qualidades próprias devido à existência do vício.2

 

Temos ainda menção às perdas e danos. As perdas e danos exigem má-fé do alienante (art. 443 do CC3). Em leitura sistemática, o art. 442 não aboliu o requisito do art. 443. Um artigo deve ser lido pelo outro. Se o alienante não conhecia o vício (boa-fé subjetiva), não cabem perdas e danos.

 

Por fim, o anteprojeto não condicionou a redibição ou o abatimento à extensão do vício ou à redução do valor da coisa. Sendo pequeno ou grande o vício, o adquirente pode optar por qualquer dos direitos que lhe confere o art. 442. Gosto da solução. Sempre defendi que o direito do adquirente era potestativo e incondicionado. Aqui a lei afasta a ideia de primazia da conservação do negócio jurídico (pelo abatimento do preço) e permite a extinção (em o adquirente utilizando a ação redibitória).

 

  1. d) Art. 445. Prazos.

 

Art. 445. Os prazos de garantia legal contra vícios ocultos, contados da data da entrega efetiva do bem, são de:

 

I – sessenta dias, se a coisa for móvel e tiver sido adquirida por valor inferior a dez salários mínimos;

 

II – um ano, se a coisa for móvel e tiver sido adquirida por valor igual ou superior a dez salários mínimos;

 

III – dois anos, se a coisa for imóvel.

 

  • 1º Se o adquirente já estava na posse da coisa, os prazos de garantia contam-se da data do contrato e serão reduzidos à metade.

 

  • 2º Transcorridos os prazos previstos neste artigo, cessa a garantia legal por vícios ocultos.

 

  • 3º O adquirente tem o prazo decadencial de sessenta dias, tratando-se de bem móvel, e de um ano, tratando-se de bem imóvel, para o exercício dos direitos previstos no art. 442, contado da data final do prazo de garantia, desde que o vício tenha aparecido antes de findo esse prazo.

 

O anteprojeto conjuga duas qualidades ao definir o prazo para se aparecer, manifestar o vício oculto (direitos previstos no art. 442 do CC): Mobilidade e valor da coisa. Se de maior valor, maior o prazo. Se imóvel (e aí não importa o valor), maior ainda a o prazo.

 

Seguindo regra atual do Código Civil, em ocorrendo traditio brevi manu4 (aquele que possui em nome alheio passa a possuir em nome próprio – locador que compra o carro locado, comodatário que compra a casa emprestada), o prazo para aparecer, se manifestar se reduz pela metade (I – 30 dias, II – 180 dias e III – 1 ano).

 

Claro que o início do prazo para o vício aparecer, se manifestar não pode mais ser a entrega da coisa, pois o adquirente já tem a posse direta. Assim, o prazo passa a ser o da celebração do contrato.

 

Se o vício aparece após tais prazos, nenhum direito tem o adquirente, salvo existência de garantia contratual.

 

A pergunta que surge é: se o vício aparece nos prazos previstos nos incisos I, II ou III do art. 445 (eventualmente reduzidos pela metade por força do §1º), qual o prazo teria o adquirente para exercer os direitos que lhe confere o art. 442?

 

O prazo não se inicia com o surgimento do vício, mas com o fim da garantia legal.

 

  • Para bens móveis de valor inferior a 10 salários mínimos, o prazo é de 60 dias que se inicia após 60 dias da entrega da coisa ao adquirente. Não importa se o vício surgiu no dia seguinte à entrega ou 30 dias depois;
  • Para bens móveis de valor superior a 10 salários mínimos, o prazo é de 60 dias que se inicia após 1 ano da entrega da coisa ao adquirente;
  • Para bens imóveis, o prazo é de 1 ano que se inicia após 2 anos da entrega da coisa ao adquirente;
  • E se o adquirente já estiver na posse do bem? É o caso do locatário que compra o bem locado.

 

  • Para bens móveis de valor inferior a 10 salários mínimos, o prazo é de 60 dias que se inicia após 30 dias da celebração do contrato. Não importa se o vício surgiu no dia seguinte à entrega ou 30 dias depois.
  • Para bens móveis de valor superior a 10 salários mínimos, o prazo é de 60 dias que se inicia após 180 dias da celebração do contrato.
  • Para bens imóveis, o prazo é de 1 ano que se inicia após 1 ano da celebração do contrato.

 

Estes comentários vão ao encontro da justificativa apresentada pela Subcomissão de Contratos. Vejamos:

 

Os prazos decadenciais para o exercício dos direitos previstos no art. 442, quanto aos vícios manifestados durante o prazo de garantia, somente são contados a partir do término do prazo de garantia. Ou seja: Os direitos podem ser exercidos durante todo o prazo de garantia, e em até 60 dias, no caso de bens móveis, e 1 ano, no caso de imóveis, após o término daquele prazo. A ideia é fixar o marco legal na data da ciência seria problemático tanto por aumentar a litigiosidade quanto por prejudicar o adquirente que – por vezes – demora a ter certeza de que a inconsistência do bem adquirido é realmente um vício, e não uma mero transtorno tolerável.

 

  1. e) Art. 446. Garantia contratual.

 

Art. 446. A garantia contratual é complementar à garantia legal e será conferida mediante termo escrito.

 

  • 1º Esse termo deve esclarecer, de maneira adequada e clara, em que consiste a garantia, bem como a forma, o prazo e o lugar em que pode ser exercitada e os ônus a cargo do adquirente.

 

  • 2º Não correrão os prazos de garantia legal por vícios ocultos na constância de cláusula de garantia, mas o adquirente deve denunciar o vício ao alienante no prazo de trinta dias, sob pena de perda da garantia contratual.

 

  • 3º Cessada a garantia contratual, nos termos do parágrafo anterior, inicia-se o prazo de decadência da garantia legal, nos termos do art. 445.

 

Vejamos a redação atual do art. 446 e aquela do anteprojeto.

 

Utilizando-se a expressão “não correrão os prazos do artigo antecedente”, o atual art. 446 prevê o fenômeno do impedimento da decadência5, pois o prazo sequer se inicia. Não se trata de suspensão nem de interrupção do prazo. Nas hipóteses de suspensão, o prazo que já se iniciou para de fluir por determinado período de tempo e, depois, volta a fluir do dia em que parou. No caso de interrupção, o prazo se reinicia desconsiderando-se o prazo fluído anteriormente ao evento interruptivo.6

 

Com o CC de 2002, a existência de uma garantia contratual significa que os prazos decadenciais não se iniciam. Ora, como causa impeditiva da decadência que o é, o adquirente terá grande vantagem, pois poderá contar com prazos certamente superiores àqueles previstos no art. 445 para exercer seu direito. Apenas depois de esgotada a garantia teria início o prazo para redibição, abatimento etc.

 

Qual a questão que surge atualmente e o anteprojeto resolve?

 

Embora haja previsão de uma causa impeditiva de fluência do prazo decadencial, há também um dever imposto ao adquirente: informar ao alienante a existência do defeito em até trinta dias após seu descobrimento.

 

O legislador cria uma decadência intercorrente, pois dá ao adquirente prazo exíguo de 30 dias para que informe ao alienante, sob pena de perder a garantia contratual ou também a garantia legal?

 

Defendi em minha dissertação de mestrado que “caso o adquirente não cumpra o dever legal de informação no prazo de 30 dias, sofrerá a sanção de decair em seu direito”.7 Haveria perda de ambas as garantias.

 

O anteprojeto esclarece que não. A perda é somente da garantia contratual e, portanto, se não denunciado o vício em 30 dias, começam de imediato a correr os prazos da garantia legal (art. 445).

 

Com isso, acabamos a análise de todas as regras relativas aos vícios ocultos (arts. 441 a 446) contidas no anteprojeto de reforma do CC.

 

_________

 

1 À época, concluir que melhor seria usar o termo “rescindir”. Claro equívoco da juventude. “Resolver” está correto.

 

2 Orlando GOMES, idem, p. 172.

 

3 Art. 443. Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato.

 

4 Constituto possessório é o oposto: alguém que possui em nome próprio passa a possuir em nome alheio (proprietário vende a casa e celebra com comprador contrato de locação).

 

5 Permitida excepcionalmente pela regra do artigo 207 do Código Civil.

 

6 A questão é desenvolvida com maior profundidade quando da análise do artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor.

 

7 O dever de denúncia dos vícios previstos neste artigo está restrito exclusivamente às hipóteses em que há uma garantia estabelecida. Contrariamente, o Código Civil português (artigo 916) e o italiano (artigo 1.495) exigem a denúncia em toda e qualquer hipótese de vício oculto.

 

Fonte: Migalhas

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