Em busca de soluções para tal problema, cresceu na doutrina e nos tribunais pátrios discussão a respeito da chamada ampliação do rol de medidas executivas, com o intuito de fornecer aos magistrados poderes para darem maior efetividade na busca do patrimônio do devedor. Entre elas, está o que se pretende debater neste artigo: a possibilidade e a viabilidade da penhora de criptoativos; que, apesar de existirem desde 2008², têm se difundido como um ativo alternativo para construção e proteção de patrimônio.

Inclusive, para se ter uma dimensão desse crescimento, os criptoativos movimentam trilhões de dólares em nível global (apenas o bitcoin, o mais conhecido deles, superou US$ 1 trilhão em Market Cap³). A mesma tendência vem sendo observada no mercado nacional: em 2023, os criptoativos movimentaram a soma recorde de US$ 12,3 bilhões em transações, representando um crescimento de 64% em relação a 2022, segundo dados do Banco Central⁴.

Logo, dúvida não há de que cada vez mais recursos financeiros serão transferidos para a criptoeconomia. Mas, embora os dados indiquem a modernização do sistema econômico brasileiro, há o outro lado da moeda: porque os criptoativos estão inseridos nas finanças descentralizadas (DeFi), seria juridicamente possível e viável sua penhora em execuções de título extrajudicial ou em cumprimentos de sentença? Se sim, o Poder Judiciário vem deferindo pedidos nesse sentido?

Pois bem. Para responder a estas indagações, é preciso inicialmente entender que o processo de aquisição de criptomoedas é simples. O primeiro passo é abrir conta em uma corretora de criptoativos (mais conhecidas como exchanges, que não são reguladas pelo Banco Central⁵) ou até mesmo em corretoras de investimento operadas por instituições financeiras, desde que estas disponibilizem ao investidor a possibilidade de compra de criptoativos. O segundo passo, por sua vez, é realizar uma transferência para tal conta e converter a quantia enviada em criptoativos.

Obstáculos à penhora

Contudo, embora a compra de criptoativos seja descomplicada e pouco diferente da de quaisquer outros ativos financeiros (ações em bolsa de valores, títulos de dívida pública ou privada, cotas em fundos de investimento etc.), não é possível dizer o mesmo em relação à sua custódia, ponto em que reside a verdadeira complexidade da penhora dessa espécie de bens.

Com efeito, para fins de penhora, o cenário menos complicado ocorre quando o comprador mantém os criptoativos sob custódia da própria exchange ou corretora de investimentos. Nesse modelo, um ofício judicial com a ordem expressa de transferência para o exequente ou a liquidação dos mesmos e consequente conversão em moeda corrente seria suficiente para a efetivação da medida. Porém, se os ativos estão custodiados em outros bancos, a grande dificuldade é saber onde estão sendo mantidos, uma vez que o sistema Sisbajud não é capaz de localizá-los porque não são regulados pelo Banco Central. Isso, consequentemente, compromete a localização dos ativos e, por arrasto, a viabilidade e efetividade da penhora. A despeito disso, o problema pode ser contornado pela análise dos extratos bancários do executado passíveis de obtenção judicial via sistema Infojud, já que, por meio dela, é possível localizar transferências para exchanges ou corretoras de investimento que operam criptoativos; o que facilita a localização de tais bens.

Mas, fora esse, há também outro problema que dificulta a penhora dos criptoativos: quando o titular, após adquiri-los por intermédio das exchanges ou corretoras de investimento, os transfere para as chamadas carteiras digitais (Wallets) ⁶. Quando isto ocorre, a Exchange ou corretora de investimento perde completamente a custódia dos criptoativos, uma vez que as chaves privadas (Seeds) passam a ser do próprio titular do criptoativo. Ainda não se encontrou solução para essa situação…

Sobre esse ponto, para facilitar a compreensão do que se diz, façamos uma simples analogia: quando um correntista tem quantias depositadas em suas contas bancárias, é inegável que ele é titular dos valores, mas a custódia cabe à instituição financeira, e é justamente por isso que o Sisbajud consegue bloquear e transferi-los para uma conta judicial.

Mas, se esse correntista sacar todo o dinheiro depositado e guardá-lo em um cofre protegido por senha, ele passará a ser, além de titular, o custodiante da quantia, de forma que só será possível a penhora dos valores se o cofre for localizado (hipótese improvável) e o executado fornecer sua senha (hipótese mais improvável ainda). Isso é precisamente o que ocorre quando o portador de criptoativos os transfere para uma carteira digital.

Evolução do tema na jurisprudência

Seja como for, para prestigiar a celeridade e efetividade da prestação jurisdicional (artigos 4º e 6º do CPC) e o princípio da satisfação do credor (CPC, artigo 831), o artigo 789 do CPC dispõe que o devedor responde com todos os seus bens para o cumprimento das obrigações, com exceção das restrições estabelecidas em lei, sendo que cabe ao magistrado a condução do processo determinando “todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária” (CPC, artigo 139, IV). Nesse cenário, ante a evidente dificuldade de localização de patrimônio executável retratada no primeiro parágrafo deste artigo, o que se verificou foi que os credores passaram a perseguir meios alternativos para a efetivação da execução, dentre os quais a penhora de criptoativos, apesar de suas dificuldades acima retratadas.

As primeiras decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça sobre o tema, no entanto, foram no sentido de negar a medida, principalmente em razão da ausência de regulamentação pelo Banco Central e da natureza ainda incerta desses ativos⁷. Porém, com o crescente reconhecimento das criptomoedas como uma forma legítima de ativos, sua valorização crescente (só em 2024, até o fechamento deste artigo, apenas o bitcoin valorizou 133,96%) e o avanço para a regulamentação exigida, a jurisprudência passou a adotar posicionamento favorável à possibilidade de penhora judicial destes bens, a despeito das divergências quanto à sua classificação e da efetividade após o deferimento da medida.

Atualmente, portanto, o entendimento majoritário do TJ-SP é o de que os criptoativos são penhoráveis, pois são “ativos digitais com valor econômico, elevada liquidez e passíveis de penhora”⁸, cabendo intervenção judicial para a realização de pesquisas de criptoativos em nome dos executados, eis que a moeda digital “não é identificada pelo sistema Sisbajud” e “não está no alcance da parte exequente”⁹.

Percebe-se, nesse viés, que o Poder Judiciário tem buscado um equilíbrio entre a proteção dos direitos dos credores e a segurança jurídica necessária para os devedores no ambiente digital; posicionamento que, sem dúvidas, tem sido fortalecido pela crescente (mas ainda embrionária) iniciativa de regulamentação dos criptoativos pelas autoridades brasileiras competentes (Receita Federal, Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários e Poder Legislativo). Em suma, as mudanças no entendimento jurisprudencial refletem uma adaptação gradual às inovações do mercado financeiro, sinalizando uma abertura e um reconhecimento das criptomoedas como ativos com valor econômico que se agregam ao patrimônio do devedor e, portanto, são passíveis de penhora, apesar dos entraves encontrados para sua localização.

 

 

[1] “Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Justiça em números 2024. Cf. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/05/justica-em-numeros-2024-v-28-05-2024.pdf. Acesso em 24 de out. de 2024, às 15h34.

[2] Ano em que foi fundado o bitcoin (Cf. https://bitcoin.org/files/bitcoin-paper/bitcoin_pt_br.pdf).

[3] Valor de mercado do bitcoin supera US$ 1 trilhão pela primeira vez desde 2021. Cf. https://forbes.com.br/forbes-money/2024/02/valor-de-mercado-do-bitcoin-supera-us-1-trilhao-pela-primeira-vez-desde-2021/. Acesso em 24 de out. de 2024, às 16h45.

[4] Importação de criptoativos alcança recorde com U$ 12,3 bilhões em 2023. Cf. https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/importacao-de-criptoativos-alcanca-recorde-com-us-123-bilhoes-em-2023/#:~:text=Macroeconomia-,Importa%C3%A7%C3%A3o%20de%20criptoativos%20alcan%C3%A7a%20recorde%20com,12%2C3%20bilh%C3%B5es%20em%202023&text=A%20importa%C3%A7%C3%A3o%20de%20criptoativos%20somou,%24%2034%2C9%20bilh%C3%B5es. Acesso em 24 de out. de 2024, às 18h23.

[5] “As empresas que negociam ou guardam as chamadas moedas virtuais em nome dos usuários, pessoas naturais ou jurídicas, não são reguladas, autorizadas ou supervisionadas pelo Banco Central do Brasil. Não há, no arcabouço legal e regulatório relacionado com o Sistema Financeiro Nacional, dispositivo específico sobre moedas virtuais. O Banco Central do Brasil, particularmente, não regula nem supervisiona operações com moedas virtuais” (Cf. Comunicado n° 31.379 de 16/11/2017, do Banco Central do Brasil. Acesso em 4 de novembro de 2024, às 17h02).

[6] Confira-se: https://kriptobr.com/not-your-your-keys-not-your-coins-qual-a-importancia-de-ser-dono-das-suas-chaves/. Acesso em 5 de nov. de 2024, às 14h32.

[7] TJ-SP, AI nº 2223718-76.2021.8.26.0000, Des. Rel. Nelson Jorge Júnior, 13ª Câmara de Direito Privado, j. 14/5/2022; grifamos.

[8] TJ-SP, AI nº 2022544-11.2024.8.26.0000, Des. Rel. Luís H. B. Franzé, 17ª Câmara de Direito Privado, j. 26/4/2024; grifamos.

[9] TJ-SP, AI nº 2290233-59.2022.8.26.0000, Des. Rel. Achile Alesina, 15ª Câmara de Direito Privado, j. 14/3/2023; grifamos.

Fonte: Conjur

 

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