1. A figura do antecipatory breach no ordenamento jurídico brasileiro
A figura da quebra antecipada do contrato nasce no direito inglês, berço da common law, tendo sido posteriormente importada para o direito norte americano. Este instituto, apesar de não positivado no Brasil, não é novo no ordenamento jurídico nacional.
Segundo Judith Martins-Costa1, o inadimplemento antecipado não é um terceiro gênero de inadimplemento, mas sim espécie inserida dentro do inadimplemento definitivo.
Afirma a eminente autora que, embora já presente na doutrina desde a década de 50, o primeiro caso que se tem notícia em que aplicado o conceito, ainda que não com esta nomenclatura, foi em 1983, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Naquele julgado2 o tribunal gaúcho entendeu pela rescisão de contratos em conta de participação firmados pelos subscritores de quotas, em razão da ausência de providências relativas a centro médico hospitalar na construção de um hospital, antes mesmo de encerrado o prazo contratual para tanto.
A doutrina passou a conceber a ideia do inadimplemento antecipado quando desenvolvidos melhores estudos sobre o instituto da boa-fé e seus desdobramentos em critérios objetivos e subjetivos, conforme ressalta a autora. Desde então, passou-se a entender que a prática de atos ou declarações contrárias ao efetivo cumprimento do contrato violava o comportamento previsto na atuação em boa-fé.
Desta forma, conclui a autora que, nos sistemas jurídicos em que admitida a figura do inadimplemento antecipado passou-se a exigir a presença de alguns requisitos obrigatórios para sua configuração. São eles: (i) inadimplemento caracterizado como grave violação do contrato, possibilitando a resolução por justa causa; (ii) a certeza de que o cumprimento não se dará no vencimento, e; (iii) uma conduta culposa pelo devedor, seja por declaração de que não irá cumprir a avença, seja por sua inércia nos atos prévios necessários ao cumprimento.
O primeiro requisito diz respeito ao ato caracterizador do descumprimento em si. Isto é, o descumprimento contratual alardeado deve ser atinente a uma obrigação principal, e não acessória, ou secundária, cujo não cumprimento não afetaria o objeto principal do contrato.
No que se refere à certeza de inadimplemento, esta não pode ser confundida com a alta probabilidade de incumprimento, pois, se assim o for, não está preenchido o segundo requisito necessário. Não pode haver dúvidas de que não será possível o cumprimento da avença na data aprazada.
Quanto à conduta culposa do devedor, esta pode se dar pela confissão de que não cumprirá a avença, bem como por comportamento ou ausência de comportamento que possa levar à conclusão de que os atos necessários ao adimplemento não serão atendidos.
Nesta esteira, há recente discussão jurisprudencial acerca do enquadramento do instituto da quebra antecipada de contrato para as hipóteses em que o adquirente de unidade imobiliária com garantia de alienação fiduciária, isto é, o devedor fiduciante, pleiteia judicialmente a ruptura do contrato de alienação fiduciária em garantia e a devolução dos valores pagos, antes de sua constituição em mora.
O tema tem sido trazido à tona em razão da ausência de previsão na lei 9.514/97 para casos em que o fiduciante, antes de inadimplir o pagamento da parcela, pleiteia a resolução do contrato.
A lei 9.514/97 dispõe em seu art. 26, e seguintes, o passo a passo do procedimento extrajudicial a ser seguido para a execução da dívida garantida pela alienação fiduciária de bem imóvel.
O cerne da controvérsia reside no caput do art. 26, o qual dispõe o seguinte – em recente nova redação: “vencida e não paga a dívida, no todo ou em parte, e constituídos em mora o devedor e, se for o caso, o terceiro fiduciante, será consolidada, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário..”
O STJ, ao julgar o tema 1.095, em outubro de 2022, fixou tese em reconhecimento à preponderância dos procedimentos de execução previstos na lei 9.514/97 sobre o Código de Defesa do Consumidor.
Os debates travados entre os ministros no julgamento do caso, contudo, deixaram claro que a concordância quanto aos termos jurídicos e às expressões específicas utilizadas na delimitação da tese revelava a divergência que havia entre os julgadores em outra questão periférica.
A íntegra do voto condutor do ministro relator, Marco Buzzi, e a declaração de voto vogal pela ministra Nancy Andrighi, demonstraram o desentendimento de ambos os magistrados quanto à questão relativa à quebra antecipada do contrato. Enquanto o Relator se apegou à literalidade da redação do artigo 26 antes mencionado, a Ministra Nancy suscitou a larga aceitação no nosso ordenamento jurídico da figura da quebra antecipada do contrato.
A fim de ilustrar a divergência de entendimentos, vale transcrever o entendimento dos Ministros acerca do tema.
Neste sentido, o voto do ministro relator:
“Do mesmo modo, não há como prevalecer o ditame especial da lei 9.514/97 quando inexistir inadimplemento do devedor ou embora existente, não tenha o adquirente sido constituído em mora nos exatos termos do procedimento especial estabelecido nos arts. 26 e 27 da lei 9.514/97. Isso porque, o regramento especial estabelece, como requisitos mínimos para a sua deflagração, dívida “vencida e não paga, no todo ou em parte” E constituição em mora do fiduciante. Na falta de qualquer desses requisitos, não se afigura aplicável o procedimento especial de resolução do contrato de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária pelo ditame da lei 9.514/97.”
Em contrapartida, o voto-vogal da Ministra Nancy Andrighi assim dispõe:
“37. Não há, no ordenamento jurídico brasileiro, regra geral prevendo o mecanismo do vencimento antecipado do contrato. No entanto, a aplicação do instituto é admitida pela jurisprudência (REsp n. 309.626/RJ, 4ª turma, DJ de 20/8/01; REsp n. 1.792.003/SP, 3ª turma, DJe de 21/6/21) e pela doutrina, “em analogia com a modelagem da exceptio non adimpleti contractus e, de modo especial, da exceção de inseguridade (art. 477), uma ou outra devendo ser, conforme o caso, conectada com o princípio da boa-fé objetiva (art. 422)” (MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo CC: do inadimplemento das obrigações. Vol. V. Tomo II. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 244).
(…)
39. Nessa linha de ideias, o pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia, por desinteresse do adquirente na sua manutenção, qualifica-se como quebra antecipada do contrato (“antecipatory breach”), tendo em vista que revela a intenção do adquirente (devedor) de não pagar as prestações ajustadas.
40. Destarte, o inadimplemento contratual, para fins de aplicação dos arts. 26 e 27 da lei 9.514/97 não se restringe à ausência de pagamento no tempo lugar e modo contratados, mas abrange também o comportamento contrário do devedor ao cumprimento da avença (quebra antecipada do contrato), manifestado por meio do pedido de resolução do contrato por impossibilidade superveniente de arcar com os valores contratados.”
Para analisar o instituto do antecipatory breach sob a ótica dos contratos de alienação fiduciária de bens imóveis, faz-se mister averiguar o seu conceito e prática no mercado, além dos precedentes nacionais para, enfim, entender os desdobramentos e efeitos não mapeados de uma distorção do instituto legal.
Clique aqui par ler a íntegra da coluna.
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1 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 682.
2 Contrato de participação, assegurando benefícios vinculados a construção de hospital, com compromisso de completa e gratuita assistência médico-hospitalar. O centro médico hospitalar de porto alegre ltda não tomou a mínima providência para construir o prometido hospital, e as promessas ficaram no plano das miragens; assim, ofende todos os princípios de comutatividade contratual pretender que os subscritores de quotas estejam adstritos a integralização de tais quotas, sob pena de protesto dos títulos. Procedência da ação de rescisão de contratos em conta de participação. (Apelação Cível, 582000378, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Athos Gusmão Carneiro, Julgado em: 08-02-1983).
Fonte: Migalhas
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