O Senado, no último dia 13, aprovou o PL (projeto de lei) nº 182, de 2024, que institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), conhecido como o “mercado de carbono”. Trata-se de projeto com grande relevância e impacto para a sociedade brasileira, considerando-se as obrigações assumidas pelo Brasil e outros países signatários do Acordo de Paris em 2015, com os objetivos de reduzir as emissões de gases de efeito estufa.
O PL 182/2024 é fruto do PL 2.148/2015, do deputado federal Jaime Martins, que, em seu texto inicial, propunha a redução de tributos “para produtos adequados à economia verde de baixo carbono”. Ocorre que, em outubro de 2023, o Senado aprovou o PL 412/2022, do senador Chiquinho Feitosa, que tratava justamente do mercado do carbono em termos bem mais abrangentes e complexos, propondo a instituição do SBCE. Remetido à Câmara do Deputados, o PL 412/2022 foi apensado a outros projetos, que, por sua vez, foram apensados ao PL 2.148/2015, sendo este ao final aprovado pela Câmara e remetido ao Senado.
Este artigo aborda a seguinte pergunta: ao apreciar o projeto recebido da Câmara dos Deputados, o Senado deveria considerá-lo um substitutivo ao PL 412/2022 (atuando como casa iniciadora) ou como projeto autônomo, PL 2.148/20215 (atuando como casa revisora)?
Sabe-se que, do ponto de vista jurídico com base no artigo 65 da Constituição, o bicameralismo federal brasileiro é entendido como “assimétrico”, pois “as Câmaras no processo legislativo brasileiro não estão em pé de igualdade” [1], uma vez que, no processo de elaboração das leis ordinárias e complementares, a casa iniciadora é, também, a casa que detém a palavra final sobre o projeto no caso de haver emendas de mérito na casa revisora.
No caso em questão, o PL 412/2022, aprovado primeiramente pelo Senado, foi apensado ao PL 2.148/2015 em razão da Resolução 33/2022 da Câmara dos Deputados, que deu nova redação ao artigo 143, inciso II, de seu Regimento Interno (“RICD”), e concedeu precedência ao projeto mais antigo de uma matéria na Câmara dos Deputados e não mais aos projetos já aprovados pelo Senad .
Na Câmara dos Deputados, após a concessão de regime de urgência e dispensa de parecer colegiado de comissão especial, foi apreciado o PL 2.148/2015. Neste momento, o relator, deputado Aliel Machado, ao proferir seu parecer monocrático com emenda substitutiva em Plenário na sessão de 21/12/2023, consignou que o PL 412/2022 do Senado foi um dos projetos centrais para a apresentação de seu substitutivo, “pois são muitos os pontos positivos, e há também alguns aperfeiçoamentos que precisam ser feitos”.
De fato, percebe-se que a estrutura do texto normativo e a abordagem regulatória do texto ao final aprovado pela Câmara dos Deputados no substitutivo do PL 2.148/2015 aproxima-se muito mais do PL 412/2022 do Senado do que de sua redação original. Não obstante, a Câmara dos Deputados votou pela rejeição do PL 412/2022, enviando ao Senado somente os autógrafos do PL 2.148/2015.
Ao retornar ao Senado, o PL 2.148/2015 foi autuado como PL 182/2024. Neste ponto, a Presidência do Senado fez uma escolha procedimental: entendeu como efetivamente aprovado o PL 2.148/2015 da Câmara dos Deputados e não o PL 412/2022 do Senado, ratificando o entendimento da Câmara.
Durante os debates no Plenário do Senado no dia 12/11/2024, entretanto, houve questionamentos a esse entendimento. O senadr Carlos Portinho pontuou que a “ a Câmara dos Deputados, lamentavelmente (…) desprezou o texto do Senado, pegou a redação e incorporou num projeto mais antigo, apresentou com quatro pontos novos”.
Levantando questão de ordem, o senador Alessandro Vieira entendeu que haveria violação ao modelo bicameral de tramitação de projetos de lei no Congresso, uma vez que entendia que a Câmara havia efetivamente aprovado o PL 412/2022. Em sua visão, entender que o Senado seria casa revisora levaria a dois problemas: o primeiro, “o rebaixamento do Senado”, por considerá-lo casa revisora de um projeto que seria de sua autoria; o segundo, a transferência para a Câmara dos Deputados da palavra final sobre o projeto sem clareza sobre o compromisso e manutenção das alterações a serem feitas pelo Senado em sede de revisão.
Jurisprudência
Não se trata de situação inédita na prática do Congresso, pois houve pelo menos dois casos em que algo semelhante ocorreu.
O primeiro é o caso do PLS 559/2013 de autoria do Senado, que culminou na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/2021). Aprovado no Senado, ao ser recebido na Câmara dos Deputados ele foi apensado ao PL 163/1995, também de autoria dos senadores, que originalmente tinha escopo muito pontual e reduzido.
A Câmara dos Deputados aprovou o PL 163/1995, incorporando a maior parte do texto aprovado do PLS 559/2013, e o devolveu ao Senado, o que gerou uma situação delicada: a prevalecer o entendimento de que o projeto aprovado era o PL 163/1995, o Senado não teria possibilidade de optar pela redação original do PLS 559/2013, uma vez que o texto a ser utilizado como base para deliberação já em fase final de apreciação seria o próprio PL 163/1995.
Por decisão da Presidência do Senado, em razão de o texto aprovado pela Câmara ter tido “contribuição muito maior do texto do Projeto de Lei do Senado nº 559, de 2013”, foi determinada sua tramitação como substitutivo ao PLS 559/2013 de forma a “possibilitar a efetiva atuação do Senado Federal como Casa Iniciadora”.
O segundo caso refere-se à Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023). O Senado aprovou o PL 1.153/2019, que fazia alterações pontuais na Lei Pelé (Lei 9.615/1998). Posteriormente, aprovou o PL 68/2017, que propunha a criação da Lei Geral do Esporte. Considerando-se a regra então vigente do art. 143, inciso II, do RICD, o projeto aprovado primeiro (PL 1.153/2019) teve precedência sobre o projeto aprovado posteriormente (PL 68/2017).
A Câmara dos Deputados, então, incorporou boa parte dos dispositivos do PL 68/2017, mas devolveu ao Senado o PL 1.153/2019 para fase final de tramitação. Novamente em razão da “contribuição muito maior do texto do Projeto de Lei do Senado nº 68, de 2017” e “para possibilitar a efetiva atuação do Senado Federal como Casa iniciadora”, a Presidência do Senado determinou que o projeto tramitaria como Substitutivo ao PL 68/2017.
Já o presente caso traz mais uma camada de complexidade à questão: o projeto de lei mais antigo que tramitava na Câmara dos Deputados era de iniciativa da própria Câmara e não do Senado. Nesse caso, ao aprovar projeto de sua autoria e não o do Senado, a Câmara acabou por se tornar a casa iniciadora de uma matéria anteriormente apreciada pelo Senado.
Roberta Simões Nascimento já antecipava o possível problema aqui: com a nova redação do artigo 143, inciso II, do RICD, a partir da Resolução 33/2022, é possível que o projeto a ter precedência não seja o do Senado, mas da própria Câmara dos Deputados, levando a uma possível violação ao artigo 65 da Constituição [2].
Em sentido semelhante, em obra de profundidade sobre o tema do bicameralismo no Brasil, Paulo Fernando Mohn e Souza destaca os inconvenientes dessa modificação, em possível violação também ao artigo 140 do Regimento Comum do Congresso (que concede prioridade ao projeto que primeiro chegar à revisão na outra casa) [3].
Em resposta à Questão de Ordem formulada pelo senador Alessandro Vieira, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, chamou a atenção para o “pragmatismo e praticidade” do entendimento de o Senado ser compreendido como casa revisora do PL 2.148/2015: após a aprovação pelo Senado do PL 412/2022 e a aprovação do PL 2.148/2015 pela Câmara, nova rodada de discussão e negociação entre as duas Casas foi iniciada, de modo que “um trabalho que foi feito pelas duas Casas que chega à conclusão de que há um terceiro texto que combina conceitos do Senado, combina conceitos da Câmara. Há inovações em relação aos dois textos, e isso só se admite no âmbito de um projeto que tem o Senado como Casa revisora”.
Isso, porque em fase final de apreciação das emendas feitas pela casa revisora, a casa iniciadora não pode inovar substancialmente entre os dois textos: ou aprova total ou parcialmente a redação original do projeto, ou aprova total ou parcialmente as emendas da casa revisora.
Iniciadora ou revisora
Volta-se ao questionamento central do presente artigo: ao apreciar o projeto recebido da Câmara dos Deputados, o Senado deveria considerá-lo um substitutivo ao PL 412/2022 (atuando como casa iniciadora) ou como projeto autônomo, PL 4.128/20215 (atuando como casa revisora)?
A situação concreta revela um interessante caso de discricionariedade procedimental das Casas do Congresso. Em outras palavras, de acordo com a Constituição, havia discricionariedade de o Senado definir se ele se consideraria casa iniciadora ou revisora.
Como já exposto em obra doutrinária, do princípio constitucional da separação dos poderes, do artigo 51, inciso III, e do artigo 52, inciso XII, da Constituição, deve ser reconhecida às Casas do Congresso “um grau considerável de discricionariedade procedimental, para definir quais ritos e procedimentos irá utilizar, até eventualmente afastando de modo pontual algumas regras regimentais, desde que isso não distorça significativamente o papel do Parlamento como o principal lócus institucional do processo de tomada de decisões políticas vinculantes em uma democracia representativa e deliberativa” [4].
Em respeito à regra do artigo 65 da Constituição, deve-se considerar que, uma vez aprovado um projeto em uma casa, ela se torna a casa iniciadora. No presente caso, deve ser reconhecida à Casa iniciadora — ou seja, ao Senado por ter aprovado primeiramente o PL 412/2022 — a prerrogativa procedimental de, ao receber os autógrafos do PL 2.148/2015, definir a que título jurídico ele é recebido: como projeto autônomo, que tem a Câmara dos Deputados como casa iniciadora, ou como substitutivo ao PL 412/2022.
No caso dos projetos da nova Lei de Licitações e da Lei Geral do Esporte, o Senado entendeu por se considerar casa iniciadora. No presente caso do projeto de lei do mercado de carbono, o Senado entendeu ser casa revisora.
Ao contrário de ser uma violação ao artigo 65 da Constituição e à regra do bicameralismo, tal expediente, na verdade, é uma alternativa constitucionalmente admitida para a construção de entendimentos políticos sobre temas mais controversos e que são objeto de atenção das duas Casas.
Ao contrário de expedientes por vezes utilizados para encurtar a tramitação bicameral de um projeto (como, por exemplo, a utilização de emendas de redação pela casa revisora para envio direto à sanção), aqui aumenta-se o tempo de maturação parlamentar da questão em concretização ao princípio da deliberação do devido processo legislativo, que exige maior troca pública de argumentos em favor ou contra uma proposta.
Um limite constitucional, entretanto, a esta prática está justamente identificado no caput do artigo 65 da Constituição: uma vez aprovado um projeto em uma casa, ela se torna a casa iniciadora e, portanto, será ela a ter a discricionaridade procedimental para definir se receberá como projeto autônomo ou substitutivo um projeto de lei posteriormente recebido da outra casa cujo conteúdo seja substancialmente semelhante ao originalmente aprovado. Outro limite constitucional, como destaca Paulo Fernando Mohn e Souza, ocorre nos casos de iniciativa privativa de uma matéria, uma vez que aqui a Constituição fixa qual casa terá a palavra inicial e final [5].
Na prática, portanto, a decisão de o Senado considerar-se como casa revisora do PL 2.148/2015 permitiu a adoção de um modelo flexível de deliberação bicameral de projetos de lei com uma quarta fase, pois haverá uma nova oportunidade de a Câmara dos Deputados apreciar a matéria. Em casos como o presente, esse modelo permite a construção de um “terceiro texto” mais consensual entre as Casas, fruto de negociações para seu amadurecimento. Isso é de grande relevância para permitir-se que, a juízo da casa iniciadora, uma nova fase de apreciação seja aberta reduzindo a rigidez da regra do artigo 65 da Constituição Federal, sem, entretanto, haver sua violação.
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[1] Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Do Processo Legislativo, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012, pp. 234-235.
[2] Roberta Simões Nascimento, “PEC da Transição, apensação e o futuro do bicameralismo”, 2022. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/pec-da-transicao-apensacao-e-o-futuro-do-bicameralismo.
[3] Paulo Fernando Mohn e Souza, Processo legislativo bicameral no Brasil: como as câmaras resolvem suas divergências na elaboração legislativa?, Rio de Janeiro, Editora GZ, 2024, p. 453.
[4] Victor Marcel Pinheiro, Devido processo legislativo: elaboração das leis e seu controle judicial na democracia brasileira, Rio de Janeiro, Editora GZ, 2024, p. 354.
[5] Paulo Fernando Mohn e Souza, Processo legislativo bicameral no Brasil: como as câmaras resolvem suas divergências na elaboração legislativa?, 2024, p. 464.
Fonte: Conjur
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