Importantes decisões judiciais proferidas pelos tribunais superiores, no trato de questões de família, ganharam a devida repercussão durante 2024 e serviram, essencialmente, para uma melhor dinâmica doutrinária. Um breve cotejo do repertório jurisprudencial peregrina nos temas que adiante são alinhados, a partir do Superior Tribunal de Justiça.
Partilha de bens
Tenha-se em primeira linha a questão da partilha dos bens na seara da ruptura da sociedade conjugal ou convivencial. Vejamos os acórdãos paradigmas:
(i) Um dos mais importantes julgados assumiu novo entendimento sobre a partilha de bens, após o divórcio, afastando limites temporais (prescrição ou decadência), para a sua formulação em juízo. Em 03 de setembro, o REsp n. 1817812-SP, julgado pela 4ª Turma do STJ, sob relatoria do ministro Marco Aurélio Buzzi, deixou assente que “ausente a configuração de prestação imputável a outra parte — dar, fazer, não fazer —, característica dos direitos subjetivos, não há falar em sujeição a prazos de prescrição”.
Demais disso: (i) por se tratar o direito à partilha expressão do poder de modificar ou extinguir relações jurídicas, por meio de uma declaração judicial, “a legislação pátria não comina prazo decadencial”; (ii) “a partilha consubstancia direito potestativo dos ex-cônjuges relativamente à dissolução de uma universalidade de bens, independentemente da conduta ou vontade do outro sujeito integrante desta relação (sujeito passivo)” (1)
Em reconhecendo tratar-se, portanto, de direito potestativo dos ex-cônjuges, cuido entender não mais prevalecer posição anterior do STJ quanto ao prazo prescricional de dez anos, como admitido no REsp nº 1.660.947-TO, julgado em 5/11/2019 pela 3ª Turma. Ao afastar a regra do artig 197, I, do Código Civil, diante do longo tempo de separação de fato dos cônjuges, o acórdão admitira ocorrer a prescrição ao direito de partilha. (2)
(II) Em situação equivalente, também entendeu o STJ que “o prazo prescricional da ação de sobrepartilha é decenal, contado a partir da homologação da divisão originária. (AgInt no AREsp n. 1.410.926/DF, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, julgado em 22/11/2021).
(iii) Ainda no tema, a 3ª Turma, deixou assente que “o imóvel adquirido de forma onerosa durante casamento sob o regime da comunhão parcial de bens deve integrar a partilha após o divórcio, mesmo que o bem tenha sido comprado com recursos exclusivos de um dos cônjuges”. (3)
(iv) A 3ª Turma decidiu possível a “partilha do patrimônio acumulado antes do período de convivência em união estável, desde que seja provado o esforço comum para a sua aquisição”. No ponto, resulta que “a jurisprudência tem estabelecido que a propriedade dos bens adquiridos antes da Lei 9.278/1996 é determinada pelo ordenamento jurídico vigente à época da compra (REsp 1.124.859) e que a partilha exige a prova da participação de ambos na aquisição (REsp 1.324.222)”.
Alimentos e prisão civil
Julgados do STJ no âmbito das obrigações alimentares avançaram no sentido de um maior refinamento doutrinário-processual para a aplicação e/ou cabimento da prisão civil do devedor, em face dos alimentos impagos. Destacam-se, por todos:
(i) Em abril, a 4ª Turma do STJ, decidiu que “o tempo da prisão por dívida de alimentos deve ter uma fundamentação específica, analítica e motivada. Isso implica dizer que ao ordenar a prisão do devedor de pensão alimentícia, o juiz deve apresentar os motivos pelos quais está definindo aquele tempo de prisão e não outro na variável de um período de um a três meses permitido por lei para a prisão civil por dívida alimentar.
O ministro Raul Araujo, relator do recurso em habeas-corpus, assentou ser vedado ao juiz escolha discricionária do tempo de restrição de liberdade, sob pena de incorrer em abuso de direito e arbítrio, inviabilizando a ampla defesa e o contraditório pelo devedor. Entre os elementos determinantes do tempo de prisão, o ministro situou “a capacidade econômica do devedor e o valor da dívida; o comportamento do devedor (se age de boa-fé ou se é reincidente); as características pessoais (se está desempregado, se tem outros filhos ou é doente); e as consequências do não pagamento para o alimentando (abandono de escola ou danos à saúde, por exemplo)”.
(ii) Ainda a 4ª Turma entendeu por afastar o cabimento de prisão civil quando não se apresentar a medida coercitiva mais eficaz para obrigar o devedor de alimentos a saldar seu débito ou quando não mais existir risco alimentar ao credor dos alimentos. Em análise das condições do alimentando (pessoa de maior idade) com “potencial de condição de se manter com o próprio trabalho e esforço”, o min. Moura Ribeiro, concedeu ordem de habeas-corpus, restando ao credor “valer-se dos meios típicos de constrição patrimonial e das medidas atípicas previstas no CPC” para o recebimento dos seus créditos alimentares. (5)
(iii) O devedor de alimentos não precisa ser intimado pessoalmente sobre uma segunda execução baseada na mesma sentença. (STJ — 3ª Turma) (6)
Petição de herança
A 2ª Seção do STJ sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.200) estabeleceu que o prazo prescricional para propor a ação de petição de herança começa a correr na abertura da sucessão e não é suspenso ou interrompido pelo ajuizamento de ação de reconhecimento de paternidade, independentemente do seu trânsito em julgado.
O entendimento foi pacificado no julgamento dos EAREsp n. 1.260.418/MG (relator Ministro Antônio Carlos Ferreira, 26/10/2022) Entretanto, em oportuno, o min. Marco Aurélio Bellizze, relator do Repetitivo, defendeu a fixação de tese com força vinculativa, decisiva para a isonomia e a segurança jurídica. (7)
Inseminação artificial caseira
Em julgamento paradigmático, perante situações recorrentes da “autoinseminação” a relatora ministra Nancy Andrighi destacou no REsp. n. 2137415-SP que “a falta de disciplina legal, no âmbito de uma união homoafetiva, para o registro de criança gerada por inseminação heteróloga caseira — ou seja, com a utilização de sêmen doado por um terceiro — não pode impedir a proteção do Estado aos direitos da criança”. E enfatizou:
(…) “Conquanto o acompanhamento médico e de clínicas especializadas seja de extrema relevância para o planejamento da concepção por meio de técnicas de reprodução assistida, não há, no ordenamento jurídico brasileiro, vedação explícita ao registro de filiação realizada por meio de inseminação artificial “caseira”, também denominada “autoinseminação“. Ao contrário, a interpretação do art. 1.597, V, do CC/2002, à luz dos princípios que norteiam o livre planejamento familiar e o melhor interesse da criança, indica que a inseminação artificial “caseira” é protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro”. (8)
O IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), apoiado neste julgamento de 15 de outubro, onde funcionou como “amicus curiae”, através da jurista Maria Berenice Dias, renovou junto ao Conselho Nacional de Justiça pedido de providências para autorizar o registro de crianças concebidas por meio de inseminação caseira diretamente no Cartório de Registro Civil. Independente, por óbvio, de declaração clínica. Imperativo, outrossim, que políticas públicas sejam implementadas, atendendo as populações mais vulneráveis.
No tema, a doutrina tem dedicado valiosos estudos, a exemplo do artigo de Daniela Braga Paiano (9).
Filiação socioafetiva avoenga
Em novembro, a 3ª Turma constituiu a possibilidade de filiação socioafetiva avoenga. Mais um avanço nas relações entre avós e netos.
A relatora Nancy Andrigui admitiu o reconhecimento, “mesmo que o filho tenha a paternidade ou a maternidade regularmente registrada no assento de nascimento, tendo em vista a possibilidade da multiparentalidade, conforme estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal”. E adiantou: “Sobre o interesse processual do pedido de reconhecimento de filiação socioafetiva avoenga, deve ser verificado segundo a teoria da asserção, ou seja, a partir das afirmações do autor na petição inicial”.
Bem de ver que no REsp. 1.635.649-SP, em 27.02.2018, o STJ considerou viável a adoção de netos, pelo padrão hermenêutico do ECA. Com a relatoria da ministra Nancy Andrigui, o julgado enfatizou: “O princípio do melhor interesse da criança é o critério primário para a interpretação de toda a legislação atinente a menores, sendo capaz, inclusive, de retirar a peremptoriedade de qualquer texto legal atinente aos interesses da criança ou do adolescente, submetendo-o a um crivo objetivo de apreciação judicial da situação específica que é analisada (…)”.
Direito real de habitação
Em agosto, a 3ª Turma decidiu que o direito real de habitação não pode ser exercido por ex-cônjuge na hipótese de divórcio, tendo o instituto sua natureza exclusivamente sucessória, diante do falecimento de um dos cônjuges e sua aplicação se restringindo às disposições legais. Ou seja, a sua finalidade é a de preservar o direito de moradia ao cônjuge sobrevivente, nos casos em que o imóvel seja a única propriedade residencial da herança.
A ministra relatora Nancy Andrigui situou a ausência de posicionamento da doutrina acerca da possibilidade de aplicação do instituto típico do direito sucessório ao direito de família.
Teve-se analisada a questão nuclear seguinte: “o fato de a recorrente e sua filha permanecerem morando no imóvel que antes serviu de residência para o casal não é suficiente para que se cogite aplicar, analogicamente, o instituto do direito real de habitação”. Questão a ser resolvida na partilha de bens do divórcio. (10). O instituto reclama melhor tratamento legal a respeito, a exemplo da perda do direito real de habitação por ato de indignidade do cônjuge ou companheiro sobrevivente.
Poder familiar
No tema da destituição do poder familiar, o STJ ofereceu julgado paradigma, aduzindo o ministro Marco Aurélio Belizze, na 3ª Turma, “o princípio da primazia da família natural, que é o direito da criança e do adolescente de serem criados por sua família natural, sendo a colocação em família substituta uma excepcionalidade”. O julgado exaltou que a destituição exigirá: (i) análise da situação atual da família e não com base em fatos passados e, por decisivo, (ii) “circunstâncias pontuais relacionadas sobretudo à vulnerabilidade econômica não devem prevalecer” (11)
Decisões do STF
A Corte Constitucional contribuiu com julgados de excelência decisória ao direito de família. Vejamos:
(I) No julgamento do Tema 1.236 de Repercussão Geral, em 01.02.2024, o STF fixou a seguinte tese: Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública”. Autorizada a opção por regime de bens diferente do obrigatório previsto no Código Civil, o ministro relator Luís Barroso, operou a modulação, incluindo em seu voto que “a presente decisão tem efeitos prospectivos, não afetando as situações jurídicas já definitivamente constituídas”.
(ii) Em julgado do RE 1.211.446, conferiu-se direito ao gozo de licença maternidade à mãe servidora ou trabalhadora não gestante, em união homoafetiva, e caso sua companheira tenha usufruído o benefício, o mesmo direito pelo período equivalente ao da licença-paternidade.
(iii) O STF declarou inconstitucionais, em 23 de maio, todas as práticas de desqualificação das mulheres vítimas de violência, v.g. a de questionamentos do seu modo de vida em apuração e julgamento de crimes contra elas. Perguntas sobre vida sexual e comportamento perpetuam a discriminação e a violência de gênero, além de vitimizar duplamente a mulher (ADPF 1.107).
(iv) Em 17 de outubro, o STF concluiu julgamento no sentido de a “Declaração de Nascido Vivo” incluir os termos “parturiente/mãe” no lugar de apenas “parturiente”, após o parto de uma criança nascida viva. A decisão também estabelece a mudança do campo “responsável legal” para “responsável legal/pai”. A decisão operou-se na ADPF 787, “na qual a Corte determinou que o Ministério da Saúde deve garantir atendimento médico a pessoas trans e travestis em especialidades relativas ao sexo biológico”
(v) Em dezembro, o STF decidiu que o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) não deve incidir sobre planos de previdência privada do tipo Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL) e Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL) na hipótese de morte do titular. Essa decisão tem impacto significativo no planejamento sucessório e na proteção patrimonial das famílias.
Conclusão
Todas essas decisões demonstram o compromisso do STJ e do STF em adaptar o ordenamento jurídico às transformações sociais, promovendo a igualdade e a dignidade nas relações familiares. A jurisprudência contribuiu, em 2024, com um novo direito de família, para o futuro que começa agora.
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Referências
(1) STJ. Web:
https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201703214970&dt_publicacao=20/09/2024
(2) STJ. Web:
https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201700587183&dt_publicacao=07/11/2019
(3) STJ. Web: http://kli.cx/mie9
(4) STJ. Web:
https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/20062024-Prescricao-da-peticao-de-heranca-conta-da-abertura-da-sucessao-e-nao-e-interrompida-por-investigacao.aspx
(5) STJ. Web: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/18032024-Prisao-civil-pode-ser-cassada-quando-nao-for-medida-mais-eficaz-para-obrigar-devedor-de-pensao-alimenticia-a-pagar.aspx
(6) STJ. Web: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/20022024-Devedor-de-alimentos-nao-precisa-ser-intimado-pessoalmente-da-segunda-execucao-com-base-na-mesma-sentenca.aspx
(7) STJ. Web:
https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=247212412®istro_numero=202203082686&peticao_numero=&publicacao_data=20240528&formato=PDF
(8) STJ – 3ª Turma, REsp. n. 2137415-SP, Rel, Min. Nancy Andrigui, j. em 15.10.2024. Web. Acórdão:
https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202401367449&dt_publicacao=17/10/2024
(9) PAIANO, Daniela Braga. Reprodução assistida: autoinseminação e suas implicações jurídicas eas alterações trazidas pela Resolução n. 2294/2021 do Conselho Federal de Medicina. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 11, n. 1, 2022. Web: https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/view/732/606
(10) STJ. Web:
https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/14082024-Direito-real-de-habitacao-nao-pode-ser-exercido-por-ex-conjuge-em-caso-de-divorcio.aspx
(11) STJ. Web:
https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/04102024-Destituicao-do-poder-familiar-exige-analise-da-situacao-atual-da-familia.aspx
Fonte: Conjur
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