Sugestões de mecanismos contratuais presentes para um futuro de incertezas.
1. O contexto
O advento da reforma tributária no horizonte político e jurídico do país é um desses eventos que modificam basicamente todo o sistema intrincado de normas a começar do texto constitucional, passando pela legislação Federal, estadual e municipal, para finalmente atingir os atos administrativos normativos.
A justificativa da reforma é a busca por um sistema mais justo e mais simples que, ao mesmo tempo estabeleça uma carga tributária que desonere a cadeia produtiva e recaia sobre o consumidor de bens e serviços, a partir de modelo de imposto de valor agregado que seja dual, consubstanciado aí em um IBS – Imposto Sobre Bens e Serviços e uma CBS – Contribuição sobre Bens e Serviços.
Já concretizada na dimensão constitucional a reforma ainda aguarda o trâmite no Congresso Nacional de sua lei complementar concretizadora no plano infraconstitucional, aprovada, no momento em que escrevo este artigo, apenas na Câmara dos Deputados e pendente no Senado Federal.
Apesar dessa redação ainda passível de mudanças, há um consenso de que boa parte dos trechos do PL vão permanecer como agora estão, pois não são núcleo de divergência política ou econômica.
O trecho no qual me detenho nesse artigo é uma parcela quase silenciosa da lei sobre os impactos da reforma nas relações privadas, é dizer, quando a sintática obrigacional não esteja focada entre o ente tributante público (credor) e o sujeito passivo da obrigação tributária, mas quando a relação seja entre dois agentes privados atuando no mercado.
Embora a lei tenha se preocupado em trazer mecanismos de solução dos impactos nos contratos administrativos, presumindo juris tantum a existência futura de desequilíbrios econômico-financeiros, a narrativa legal é bastante econômica quando se trata dos contratos privados, como podemos ler do atual art. 373 do PL:
Art. 373. Este Capítulo dispõe sobre os instrumentos de ajuste para os contratos firmados anteriormente à entrada em vigor desta Lei Complementar.
§ 2º O disposto neste Capítulo não se aplica aos contratos privados, os quais permanecem sujeitos às disposições da legislação específica.
Isso quer dizer que os dispositivos previstos legalmente para os reequilíbrios econômico-financeiros dos contratos administrativos não são extensíveis aos contratos privados, que deverão seguir as normas específicas sobre esse modelo de relação jurídica.
Para além do texto do PL, a exposição de motivos, enviada para o presidente da república pelo ministério da fazenda, reforça a ideia de que a correção de distorções deve ser feita através do tratamento legal que já é dado pelo ordenamento jurídico à autonomia da vontade:
No caso de contratos privados, a imposição genérica de um ou outro tratamento pela via legal não seria adequada para lidar com as diferentes consequências que podem advir da reforma tributária decorrente da EC 132, de 2023. Nesses casos, deve ser assegurada a autonomia da vontade, sem prejuízo dos instrumentos já existentes no Direito Privado nos casos de ausência de acordo entre as partes.
Há aqui uma política de intervencionismo mínimo legislativo por base dos artífices da reforma, legando aos instrumentos normativos já existentes, a correção de rota nos contratos privados de longo prazo. O objetivo deste artigo é analisar o campo em que essas discussões serão travadas e apresentar modelos de cláusulas em que prevejam a necessidade de eventuais correções.
2. Os contratos de longa duração
Primeiramente, devemos estabelecer como corte epistêmico do problema apresentado o modelo contratual que deverá sofrer impactos por força da reforma tributária. Logicamente que aqui estamos nos referindo a um contrato que se estenda no tempo e seja testemunha, enquanto produz seus efeitos, das mudanças operadas no ordenamento jurídico. A esse modelo contratual damos o nome de contrato relacional.
No cenário das relações obrigacionais contemporâneas, o contrato relacional emerge como uma figura jurídica de relevância, especialmente em situações que demandam continuidade e flexibilidade nas prestações contratuais. O contrato relacional caracteriza-se pela existência de um vínculo obrigacional que transcende a mera troca imediata de prestações, inserindo-se em um contexto de cooperação duradoura entre as partes.
Esse tipo contratual reflete uma interdependência substancial entre os contratantes, cujo objeto não se limita à prestação inicial, mas compreende uma série de obrigações sucessivas ou reiteradas ao longo do tempo, sujeitas à dinamicidade das condições econômicas, sociais e, como neste caso, tributárias.
Justamente por suas características de continuidade, os contratos relacionais serão aqueles que refletirão as mudanças propostas pelo novo arcabouço legislativo tributário, o que demandará uma postura ativa dos contratantes, dentro do espaço da autonomia privada, para que não haja desequilíbrios profundos e impossibilidade de realização do objeto contratual no tempo.
Assim, os contratos de distribuição, joint venture, franquia, locação de longo prazo, gestão de negócios, arrendamentos de longo prazo e até contratos de emprego para cargos de alta gestão, estão passíveis de sofrerem com eventuais modificações de alíquotas, com inclusão de uma operação em base de cálculo, ou até com alterações de natureza contábil.
3. Mecanismos preventivos para o reequilíbrio contratual
O legislador, ao optar por uma postura de intervencionismo mínimo, deixou à mercê dos contratantes a tarefa de adequar suas relações jurídicas à nova realidade tributária. A lacônica previsão do art. 373, § 2º, do projeto de lei complementar, que exclui os contratos privados do regime de reequilíbrio automático conferido aos contratos administrativos, reflete um entendimento segundo o qual a autonomia da vontade deve prevalecer, desde que respeitados os limites impostos pelo ordenamento jurídico.
Aqui parece que o comando da lei de liberdade econômica (lei 13.874, de 20/9/19) está sendo atendido em sua inteireza:
Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
VIII – ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública;
Mas, se para os contratos administrativos é reconhecido um desequilíbrio econômico-financeiro presumido, por que não poder-se-ia partir da mesma presunção para os contratos privados de longa duração? A autonomia da vontade seria suficiente para garantir a exequibilidade das relações a longo prazo, uma vez que sabemos que naturalmente há sempre uma parte contratual que faz valer sua vontade de modo mais impositivo, como geralmente acontece nos contratos por adesão?
Para além desse questionamento, os agentes econômicos, sobretudo aqueles mais vulneráveis devem se atentar para a inclusão em instrumentos contratuais de cláusulas que supram a lacuna normativa da reforma tributária, fazendo com que, dentro do campo da autonomia da vontade, o reequilíbrio contratual seja presumido.
A análise dos impactos potenciais da reforma tributária nos contratos privados revela a necessidade de um tratamento cauteloso e fundamentado pela via da autonomia privada, em respeito à política de mínima intervenção legislativa. Nesse sentido, a elaboração de cláusulas contratuais específicas surge como instrumento imprescindível para a preservação do equilíbrio econômico-financeiro das relações contratuais de longa duração.
a) Cláusula de reajuste tributário
Propõe-se a inclusão de uma cláusula que permita às partes revisarem os valores contratuais quando houver alteração na carga tributária incidente sobre as prestações contratuais:
“Ocorrendo modificação na legislação tributária que implique aumento ou redução dos encargos fiscais relacionados ao objeto contratual, as partes poderão, de comum acordo, revisar os valores pactuados, a fim de restabelecer o equilíbrio econômico inicialmente previsto.”
b) Cláusula de revisão de equilíbrio econômico-financeiro
Este dispositivo visa garantir a renegociação do contrato em situações de desequilíbrio econômico-financeiro decorrente de mudanças tributárias:
“Caso sobrevenha alteração legislativa que impacte substancialmente as bases econômicas do presente contrato, as partes obrigam-se a promover a renegociação dos termos contratuais, buscando preservar a equivalência das prestações originalmente pactuadas.”
c) Cláusula de solução de controvérsias por arbitragem ou mediação
Considerando a complexidade técnica das questões tributárias, recomenda-se a adoção de mecanismos extrajudiciais de resolução de conflitos:
“As divergências relacionadas à aplicação das cláusulas de reequilíbrio econômico-financeiro, originadas por alterações legislativas tributárias, serão dirimidas por meio de arbitragem, conforme as disposições da Lei nº 9.307/1996.”
A reforma tributária impõe desafios inéditos às relações contratuais privadas, sobretudo às de longa duração, em que o impacto das mudanças legislativas será mais evidente. A ausência de uma previsão legal específica para os contratos privados reforça o papel central da autonomia da vontade na adaptação das relações jurídicas à nova realidade tributária. Assim, o êxito na mitigação dos desequilíbrios contratuais dependerá, em grande medida, da habilidade dos operadores do Direito em formular instrumentos contratuais robustos, capazes de equilibrar os princípios de liberdade contratual e segurança jurídica.
Fonte: Migalhas
Deixe um comentário