O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.
Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.
Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de “Jurisprudência Marítima”1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.
Neste artigo, abordaremos o tema do “atraso” no contexto do transporte marítimo. Além disso, apresentaremos dois casos concretos para uma análise mais detalhada e prática do assunto.
A atividade de transporte marítimo é recheada de intempéries e circunstâncias internas e externas que as influenciam, riscos estes que se consubstanciam na expressão internacionalmente consagrada ‘aventura marítima’. Em virtude de tais fatores, os contratos de transporte marítimo, em regra, não estipulam datas precisas de chegada das embarcações ou entrega das mercadorias no destino, mas sim previsões ou estimativas, que não implicam em certeza ou exatidão.
Tal imprecisão, conhecida de antemão tanto pelos armadores e transportadores como também pelos embarcadores, consignatários e seguradores de carga, não é apta a gerar pretensões e reclamações por eventuais atrasos, desde que, logicamente, dentro do limite do razoável.
O transporte marítimo, por sua natureza, está sujeito a inúmeros contratempos. Como mencionado anteriormente, a aventura marítima possui particularidades que envolvem situações exclusivas desse modal de transporte. Entre essas peculiaridades, destaca-se o atraso na chegada das embarcações, um evento frequentemente considerado normal, sobretudo quando decorrente de circunstâncias de força maior, especialmente aquelas de origem natural.
Assim, a jurisprudência reafirma que o atraso na entrega de carga pode, por regra, não imputar responsabilidade sobre o transportador, uma vez que, conforme demonstra a prática marítima, não se ajustam datas exatas em razão da natureza do negócio, devendo ser consideradas as peculiaridades concretas de cada caso.
Feitas essas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam o tema do atraso no transporte marítimo.
Primeiro julgado:
Atraso – Previsão de chegada do transporte não implica em certeza – Ausência de responsabilidade do transportador. 5.1 COMPRA E VENDA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS MATERIAIS (…). TRANSPORTE MARÍTIMO QUE POSSUI PECULIARIDADES PRÓPRIAS E ESTÁ SUJEITO A VÁRIOS FATORES CAPAZES DE ALTERAR SUA EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO AJUSTE DE DATA CERTA E DEFINIDA PARA A CHEGADA DO PRODUTO EXPORTADO AO PORTO DE DESTINO OU MESMO DE CIÊNCIA, PELAS RÉS, ACERCA DA NATUREZA DA MERCADORIA TRANSPORTADA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO, PELA AUTORA, DOS FATOS CONSTITUTIVOS DO SEU DIREITO (ART. 333, I, CPC/73; ART. 373, I, NCPC). SENTENÇA MANTIDA. AGRAVO RETIDO NÃO PROVIDO. RECURSO PRINCIPAL NÃO PROVIDO. (.) Além disso, a manutenção dos referidos documentos nos autos em nada socorre a tese da apelante. É que, ao revés do alegado nas razões do apelo, os e-mails trocados entre as partes, especialmente aquele de fls. 128/129, mencionado pela recorrente, faz apenas referência à previsão de chegada das mercadorias ao porto de destino, inclusive com a resposta da autora no sentido de aguardar novas previsões, dada as peculiaridades do contrato firmado. Neste contexto, conforme bem argumentado pela litisdenunciada MSC e ponderado pelo magistrado sentenciante “o transporte contratado possui natureza distinta dos demais contratos de transporte, além de peculiaridades próprias, especialmente porque sujeito a vários fatores capazes de alterar sua execução, que vão desde as condições climáticas e ao congestionamento dos portos até os mais variados problemas de ordem operacional. No conhecimento de transporte objeto desta lide, vale ressaltar, não se encontra data certa e definida para a chegada (fls. 87/88). As previsões lançadas ao longo da viagem estão sujeitas à alteração, sendo que a cláusula oito das condições gerais do contrato prevê a isenção de responsabilidade do transportador por atraso nas chegadas programadas, com menção expressa de que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar mercadoria em determinada data. E mais: “Saídas e chegadas anunciadas são apenas datas estimadas e tais itinerários poderão ser adiantados, atrasados ou cancelados sem aviso” (fl. 293). Quanto aos métodos e rotas de transporte, a cláusula 9.1 faculta ao transportador a transferência da carga para outro navio, inclusive com transbordo, prosseguir por qualquer rota (fls. 293/294). A transportadora comprovou a necessidade de transbordo (conforme links das reportagens citadas a fl. 230), da alteração de rotas e de portos, sendo certo que o navio não está obrigado a partir sem que se tenha carregado uma carga mínima. Não se comprovou, assim, a ação ou omissão involuntária, negligência ou imprudência pela ré ou pela denunciada a justificar a responsabilização delas pela entrega das mercadorias em data posterior ao Natal, pois sequer há prova de que no momento da cotação do frete pela ré ou do embarque do contêiner pela denunciada houvesse ciência da natureza da mercadoria transportada.” (fls. 332/333, destaquei). Ademais, é clara a comprovação da atividade empresária por ela desenvolvida, conforme se extrai do seu contrato social, cláusula 2.ª, “DO OBJETIVO SOCIAL, fls. 12. Neste sentido, “a autora se dedica ao ramo de importação e exportação de alimentos, não podendo alegar ignorância quanto às peculiaridades de cada meio de transporte utilizado nas suas relações comerciais no exterior.” Além disso, “O documento de fl. 153 demonstra que a autora já havia contratado o transporte por navio para o mesmo destino. Esse mesmo documento demonstra que a autora solicitou a cotação de frete padrão alimento, sem especificar o gênero alimentício e a necessidade de entrega em data certa. E diferentemente do sustentado pela autora, não consta em qualquer documento emitido pela denunciada data certa e nem definida para a chegada ao destino das mercadorias transportadas pela via marítima” (fls. 332, destaquei), ressaltando-se que a ré Norge “apenas cientificada sobre a natureza da carga e necessidade de entrega quando já iniciada a viagem.” (fls. 333). E, uma vez que “o ramo de atividade da autora está ligado à exportação e importação de vários produtos alimentícios, estando, por isso, invariavelmente afeita ao comércio que explora e habituada aos meandros da importação e do transporte marítimo”, o “risco pela falta de entrega da mercadoria ao comprador no prazo acordado entre a autora e o último, assim, deve ser assumido somente pela autora que elegeu o transporte marítimo que, sabidamente, não contém garantia de prazo de entrega.” (fls. 333, destaquei). Desse modo, nada há nos autos a comprovar ter a ré assumido a obrigação de entrega dos produtos exportados antes das festividades natalinas, ônus que, ademais, impendia à autora demonstrar, a teor do disposto no art. 333, I, do CPC/73, vigente à época (art. 373, I, NCPC). Como se vê, a sentença deve ser mantida por seus próprios e bem deduzidos fundamentos, os quais ficam inteiramente adotados como razão de decidir pelo não provimento do recurso, nos termos do art. 252 do Regimento Interno deste Egrégio Tribunal de Justiça que estabelece que “Nos recursos em geral, o relator poderá limitar-se a ratificar os fundamentos da decisão recorrida, quando suficientemente motivada, houver de mantê-la”. Ante o exposto, nega-se provimento agravo retido e ao recurso principal.
(TJSP, Apelação 1077648-79.2013.8.26.0100, des. relator Alfredo Attié, 26ª câmara de Direito Privado, j. 23/11/17)
Segundo julgado:
Atraso – Transporte Marítimo – Hipótese equiparada a caso fortuito – Exclusão de responsabilidade do transportador 5.10 Apelação cível – ação de indenização por danos morais – transporte marítimo – atraso ao destino designado – responsabilidade civil – hipóteses de exclusão. Caso fortuito ou força maior. 1. A empresa prestadora de serviços de transportes marítimos não pode ser responsabilizada se o fato ocorrera de forma alheia à sua vontade. 2. Defeito oriundo de fatos naturais e extremamente corriqueiros desta atividade comercial. 3. Não caracterização da culpabilidade da empresa prestadora do serviço.
(TJ/PA, AC: 2004300-24302, relator: Maria Rita Lima Xavier, data de publicação: 27/9/04.)
Pode-se observar que, no primeiro julgado, o TJ/SP aponta para alguns elementos determinantes no afastamento da responsabilidade pelo atraso da entrega de carga transportada por via marítima.
O primeiro fator destacado é a natureza do transporte marítimo, que possui peculiaridades próprias e está sujeito a fatores externos como condições climáticas, congestionamento de portos, entraves logísticos e operacionais, eventos por vezes atribuíveis ao interesse carga ou a terceiros, entre outros que não estão sob controle do transportador.
Em seguida, o acordão destacou a ausência de data certa e definida para a chegada das mercadorias ao destino no contrato do transporte. Ainda que a transportadora tenha informado datas de previsão ao longo do transporte, as mesmas consistiam em meras estimativas, conforme previam as cláusulas contratuais no caso concreto.
Ainda nesse sentido, as condições gerais previstas no conhecimento de embarque traziam expressa a isenção de responsabilidade do transportador por atrasos, e indicavam que itinerários e prazos poderiam ser alterados sem aviso prévio. Por essa mesma razão, o Tribunal reconheceu que a autora não demonstrou que o transportador assumiu a obrigação de entregar a carga em data certa. Tampouco provou que o transportador tinha ciência da natureza perecível das mercadorias antes do início do transporte.
Por fim, relevante destacar que o acordão reconheceu que, como empresa atuante no comércio internacional de alimentos, a autora deveria estar ciente dos riscos e peculiaridades do transporte marítimo. Sendo assim, o risco pela falta de entrega no prazo acordado com o comprador final foi atribuído exclusivamente à autora.
Em síntese, o transportador marítimo foi isento de responsabilidade pelo atraso na entrega, por ausência de previsão contratual de prazo garantido e pela falta de comprovação de culpa ou negligência, ressaltando a influência da natureza do transporte marítimo na imputação de responsabilidade ao transportador pelo atraso.
No segundo julgado do TJ/PA, observa-se o reconhecimento da ocorrência de caso fortuito ou força maior, circunstâncias que resultam na exclusão de responsabilidade do transportador marítimo em situações que escapam completamente ao seu controle e independem de sua vontade, conforme previsto no art. 393 do Código Civil. Esse dispositivo legal estabelece que o devedor não responde por prejuízos resultantes de força maior ou caso fortuito, salvo se expressamente responsabilizado por contrato.
É importante destacar que caso fortuito e força maior, embora frequentemente tratados como conceitos correlatos, possuem distinções no âmbito jurídico. Ambos dizem respeito a eventos imprevisíveis e inevitáveis que impossibilitam o cumprimento de uma obrigação, mas diferem quanto à origem do evento e à sua relação com a esfera de controle.
O caso fortuito refere-se a eventos imprevisíveis de origem interna, relacionados às atividades ou ao contexto do transporte. A força maior, por sua vez, decorre de fatores externos à vontade ou ao controle das partes, usualmente provocados por fenômenos naturais ou sociais. No transporte marítimo, é evidente que os fenômenos naturais desempenham papel predominante, como alterações climáticas, condições adversas do mar e outros fatores intrínsecos à atividade marítima.
Nesse sentido, o acórdão prolatado pela relatora analisou de forma criteriosa os elementos que caracterizam a exclusão de responsabilidade do transportador marítimo em virtude de força maior. Conclui-se, assim, que a decisão é plenamente compatível com a realidade fática e com a legislação brasileira, excluindo, de forma legítima, a responsabilidade do transportador por atrasos decorrentes de força maior ou caso fortuito.
Examinados os julgados acima, e retomando a análise das eventuais responsabilidades em casos de atraso, convém relembrar um relevante artigo publicado anteriormente nessa coluna, por ocasião dos atrasos sofridos pelas cargas a bordo do navio “Ever Given”, quando do encalhe no Canal do Suez2.
Naquela oportunidade, destacamos:
“Mas como fica a responsabilidade do transportador no caso de atrasos decorrentes de um evento como no caso Ever Given?
Não há um regime internacional uniforme que discipline o atraso no transporte marítimo. O maior esforço nesse sentido são as Regras de Hamburgo, as quais estão em vigor apenas em 35 países e o Brasil, apesar de ter sido um dos signatários das referidas Regras, não as ratificou.
As Regras de Hamburgo definem que o atraso é constatado quando a carga não é entregue no destino no tempo acordado ou, na ausência de uma previsão expressa de um prazo no contrato de transporte, em um período que poderia ser razoavelmente esperado para tanto. As Regras de Hamburgo limitam a indenização a duas vezes e meio o valor do frete da carga atrasada, não podendo esse valor exceder o frete total. Todavia, o que mais interessa no caso em análise, é que as Regras disciplinam que o transportador não será responsável por atrasos decorrentes de eventos que não estejam sob sua responsabilidade.
No Direito Brasileiro, aplica-se à hipótese de atraso na entrega de mercadorias o regime geral de responsabilidade civil por danos. O Código de Processo Civil de 1939 previa, em seu art. 756, o prazo de 15 dias para que o consignatário da carta apresentasse eventual “reclamação por motivo de atraso”, mas, no entanto, não trazia uma definição do que seria considerado “atraso” e a regra tampouco foi acolhida pelos Códigos Processuais posteriores.
A lei civil, por sua vez, disciplina, no art. 733, § 1° que “o dano, resultante do atraso ou da interrupção da viagem, será determinado em razão da totalidade do percurso”. Tal previsão ainda deixa margem para interpretação sobre o que seria considerado um excesso de tempo capaz de configurar um atraso, não obstante trazer o critério da comparação com o percurso realizado.
Sob a ótica contratual, o prazo de cumprimento de uma obrigação e as penalidades contratuais em caso de atraso podem ser inseridos nas cláusulas do contrato e regulados conforme a vontade das partes, desde que a redação da cláusula não seja abusiva ou contrária à ordem pública. Entretanto, os contratos de transporte marítimo, em regra, não estipulam datas precisas de chegada das embarcações ou entrega das mercadorias no destino, mas sim previsões ou estimativas, que não implicam certeza ou exatidão. Por vezes, há inclusive a inserção de cláusulas dentro das condições gerais do conhecimento de transporte prevendo expressamente que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar as mercadorias em data determinada. Tal imprecisão, conhecida de antemão pelos embarcadores, consignatários e seguradores de carga, não permite uma apuração categórica sobre o termo “a quo” de eventual atraso.
Tal questão, inclusive, já foi palco de exame pelos nossos tribunais:
(…) Da análise dos autos constata-se que inexiste qualquer prova de ter a primeira ré se comprometido junto à autora a entregar o bem transportado exatamente no dia 16/4/04, contrariando, assim, a narrativa constante da exordial. (…) Sabe-se, todavia, que previsão não significa certeza, exatidão, não sendo apta a gerar pretensão. (…). De outra maneira, o contrato de conhecimento celebrado entre as partes contratantes (…), não estipula datas de chegada da mercadoria adquirida pela parte autora, ao contrário, dispõe na cláusula 13 que “A transportadora não garante as datas de chegada. A transportadora não se responsabiliza pelo atraso…” Nestas condições, não restou evidenciado ter a parte ré agido de má-fé ou mesmo descumprido o quanto se obrigou mediante ajuste. (…) apenas forneceu à contratante/autora uma data provável de execução total do contrato. De outro modo, a data prevista de entrega do bem foi frustrada por razões alheias à vontade da empresa acionada, conforme restou demonstrada através da prova carreada aos autos (…) (TJ/BA, proc. 644289-8/2005, juíza Maria De Fátima Silva Carvalho, 2ª vara Cível, j. 30/9/08)
E, tirando o foco do contrato de transporte, o julgado abaixo, proferido pelo E. TJ/SP, serve como um alerta para que tais circunstâncias sejam devidamente tratadas na seara do contrato de compra e venda internacional de mercadorias pactuado entre o exportador/embarcador e o importador/consignatário, no âmbito da relação comercial entre os mesmos, especialmente em casos nos quais existe a necessidade de que a carga chegue ao destino a tempo de uma determinada ocasião.
(…) TRANSPORTE MARÍTIMO QUE POSSUI PECULIARIDADES PRÓPRIAS E ESTÁ SUJEITO A VÁRIOS FATORES CAPAZES DE ALTERAR SUA EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO AJUSTE DE DATA CERTA E DEFINIDA PARA A CHEGADA DO PRODUTO EXPORTADO AO PORTO DE DESTINO (…) O transporte contratado possui natureza distinta dos demais contratos de transporte, além de peculiaridades próprias, especialmente porque sujeito a vários fatores capazes de alterar sua execução, que vão desde às condições climáticas e ao congestionamento dos portos até os mais variados problemas de ordem operacional. No conhecimento de transporte objeto desta lide, vale ressaltar, não se encontra data certa e definida para a chegada. As previsões lançadas ao longo da viagem estão sujeitas à alteração, sendo que a cláusula oito das condições gerais do contrato prevê a isenção de responsabilidade do transportador por atraso nas chegadas programadas, com menção expressa de que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar mercadoria em determinada data. E mais: “Saídas e chegadas anunciadas são apenas datas estimadas e tais itinerários poderão ser adiantados, atrasados ou cancelados sem aviso”. Quanto aos métodos e rotas de transporte, a cláusula 9.1 faculta ao transportador a transferência da carga para outro navio, inclusive com transbordo, prosseguir por qualquer rota. A transportadora comprovou a necessidade de transbordo (…), da alteração de rotas e de portos, sendo certo que o navio não está obrigado a partir sem que se tenha carregado uma carga mínima. Não se comprovou, assim, a ação ou omissão involuntária, negligência ou imprudência pela ré ou pela denunciada a justificar a responsabilização delas pela entrega das mercadorias em data posterior ao Natal. (…) E, uma vez que “o ramo de atividade da autora está ligado à exportação e importação de vários produtos alimentícios, estando, por isso, invariavelmente afeita ao comércio que explora e habituada aos meandros da importação e do transporte marítimo”, o “risco pela falta de entrega da mercadoria ao comprador no prazo acordado entre a autora e o último, assim, deve ser assumido somente pela autora que elegeu o transporte marítimo que, sabidamente, não contém garantia de prazo de entrega.” Desse modo, nada há nos autos a comprovar ter a ré assumido a obrigação de entrega dos produtos exportados antes das festividades natalinas (…). (TJ/SP, apelação 1077648-79.2013.8.26.0100, des. Alfredo Attié, 26ª câm. de Direito Privado, j. 23/11/17)
Vale lembrar que a atividade de transporte marítimo é recheada de intempéries e circunstâncias internas e externas que as influenciam, riscos estes que se consubstanciam na expressão internacionalmente consagrada ‘aventura marítima’. Sob essa ótica e considerando-se que em nosso ordenamento jurídico, o atraso seria a extrapolação de um prazo expressamente acordado – e já se viu não ser a prática nos contratos de transporte marítimo de mercadorias a definição de prazos fixos para entrega – ou de um prazo razoável, considerando-se o percurso realizado, será necessário apurar concretamente, caso a caso, transporte a transporte, se houve efetivamente algum excesso de tempo, fora do que seria razoável estimar, entre o início e o término do transporte realizado, que pudesse ter causado um dano à carga ou ao consignatário, capaz de ocasionar responsabilização do transportador.
A esse respeito, a resolução normativa 18-ANTAQ da Agência Nacional de Transportes Aquaviários3 prevê, no seu art. 17, § 1º4, a ocorrência de um atraso quando, na ausência de prazo acordado, a carga não for entregue dentro de um prazo razoavelmente exigível, tomando-se em consideração as circunstâncias do caso.
E, para trazer parâmetros mais concretos ao que seria um “prazo razoavelmente exigível”, a prática internacional entende que um atraso passa a ser indenizável quando extrapola em mais de 50% o tempo estimado da viagem5.
Todavia, nem todo excesso de tempo na jornada marítima acima de tal limite gera, por si só, uma responsabilização por atraso, na medida em que se admite a ocorrência de hipóteses que justifiquem determinado atraso e, consequentemente, servem como excludentes da responsabilidade do transportador.
Nesse ponto, novamente a resolução normativa 18-ANTAQ prevê, agora no parágrafo 2º do art. 17, que “o atraso decorrente de caso fortuito ou de força maior não configura descumprimento do critério de pontualidade”.
Seguindo-se esta linha, eventos da natureza que se enquadrem no conceito de força maior6, fatos do príncipe e até mesmo fatos de terceiro desconexos ao contrato de transporte, que fujam aos limites das cautelas e precauções a que o transportador está obrigado7, podem ser enquadrados no conceito de fortuito externo e, consequentemente, exonerar eventual responsabilidade por atrasos, como no caso a seguir julgado pelo E. TJ/PA:
Apelação cível – ação de indenização por danos morais – transporte marítimo – atraso ao destino designado – responsabilidade civil – hipóteses de exclusão. Caso fortuito ou força maior. 1. A empresa prestadora de serviços de transportes marítimos não pode ser responsabilizada se o fato ocorrera de forma alheia à sua vontade. 2. Defeito oriundo de fatos naturais e extremamente corriqueiros desta atividade comercial. 3. Não caracterização da culpabilidade da empresa prestadora do serviço. (TJ/PA, AC: 2004300-24302, relatora: Des Maria Rita Lima Xavier, pub: 27/9/04)
Com isso, cumpriria, no caso concreto, analisar não só a existência de dano, como também a causa do atraso. E, no exemplo do incidente no canal de Suez, para as cargas a bordo da embarcação Ever Given, a definição legal de eventuais responsabilidades sobre as cargas transportadas estará atrelada ao desfecho das investigações e a fixação das causas que geraram o incidente, especialmente se houver eventual constatação de força maior. Já para as cargas transportadas nas centenas de outras embarcações que ficaram impossibilitadas de trafegar pelo canal durante os dias que se sucederam, provavelmente, sob a ótica da lei brasileira, seria justificável o atraso ante à circunstância fortuita que viria a causar o acréscimo de mais alguns dias àquela jornada marítima. O cenário, no entanto, seria diferente para os transportes pactuados após a ocorrência do encalhe, pois, em tais casos, a situação já seria previsível e a logística poderia ser reajustada de antemão.
Por óbvio, cada caso concreto pode guardar especificidades aqui não vislumbradas, mas situações como estas exigem ponderação de todas as partes envolvidas, além da manutenção de um canal de comunicação, na medida em que, tanto o transportador como os proprietários de cargas podem trocar informações acerca do transcurso da jornada e eventuais ajustes de previsão de chegada do navio ao destino.”
Como se vê, a temática debatida por ocasião do encalhe do navio Ever Given no Canal do Suez bem se aplica ao tema aqui proposto.
Questões decorrentes de atraso, ainda que com maior ou menor intensidade, repercutem e afetam todos os envolvidos na logística do transporte e por vezes ocupam a agenda dos Tribunais brasileiros, para a definição de responsabilidades, razão pela qual esperamos que o presente artigo sirva como fonte de consulta ao tema sob debate.
Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.
Para acessar o livro, basta clicar no link: https://www.kincaid.com.br/livro-de-jurisprudencia-maritima/
* Coletânea de Artigos sobre temas de Direito Marítimo à luz das decisões dos Tribunais Brasileiros sob a coordenação de Lucas Leite Marques e Marina Falcão Oliveira.
1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 http://portal.antaq.gov.br/wp-content/uploads/2018/08/CARTILHA-ANTAQ2018-vf.pdf
4 Art. 17, § 1º O atraso ocorre quando a carga não for entregue dentro do prazo expressamente acordado entre as partes, ou, na ausência de tal acordo, dentro de um prazo que possa, razoavelmente, ser exigido do transportador marítimo, tomando-se em consideração as circunstâncias do caso.
5 Como afirma John F. Wilson em “WILSON, John F.; “Carrige of Goods by Sea”; Harlow, Inglaterra: Pearson, 2010″
6 RESPONSABILIDADE CIVIL – Transporte marítimo – Regressiva de seguradora sub-rogada – Perda de carga em razão de caso fortuito (furacão) – Incidência dos arts. 102 do Código Comercial e 1.058 do Código Civil, excluindo a responsabilidade do transportador – Improcedência da ação em 1º grau – Apelação não provida. “(…) O caso fortuito restou devidamente comprovado, presentes os requisitos da necessariedade e da inevitabilidade. O primeiro conceituado como o acontecimento que impossibilita cumprimento da obrigação e, o segundo, como a inexistência de meios para evitar ou impedir os efeitos do evento extraordinário. (…) A previsibilidade, a que se apegam os apelantes, era dispensável, desde que “se surgiu como força indomável e inarredável, e obstou o cumprimento da obrigação, o devedor não responde pelo prejuízo (…)”. (TJ/SP, apelação 604283-7, relator des. Jorge Farah, 1º Tribunal de Alçada Civil, j. 31/7/93).
7 O C. STJ já reconheceu que fato de terceiro e as circunstâncias estranhas que não guardam conexidade com o transporte em si podem ser equiparáveis a fortuito externo apto a excluir responsabilidades, conforme EREsp 1.431.606; REsp: 38891 (relator: ministro Claudio Santos, pub. 28/3/94); AgRg no REsp: 1285015 (relator: ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 18/6/13) e; REsp: 70393 (relator: ministro Carlos Alberto Menezes Direito, j. 10/3/97).
Fonte: Migalhas
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