Apelação Cível nº 1146173-30.2024.8.26.0100
Espécie: APELAÇÃO
Número: 1146173-30.2024.8.26.0100
Comarca: CAPITAL
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
Apelação Cível nº 1146173-30.2024.8.26.0100
Registro: 2025.0000166283
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1146173-30.2024.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante FLAVIA ABREU RIBEIRO, é apelado 18º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro da escritura pública de instituição de bem de família (fls. 10/15) na matrícula nº 131.032 do 18º Registro de Imóveis da Capital, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 13 de fevereiro de 2025.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL Nº 1146173-30.2024.8.26.0100
APELANTE: Flavia Abreu Ribeiro
APELADO: 18º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital
VOTO Nº 43.673
Direito civil – Apelação – Registro de imóveis – Provimento.
I. Caso em Exame
1. Apelação interposta contra sentença que manteve o óbice ao registro de escritura pública de instituição de bem de família voluntário. A recorrente argumenta que a impenhorabilidade do bem de família tem por objeto imóvel adquirido mediante financiamento com alienação fiduciária e que não há proibição legal para tal constituição sobe os direitos aquisitivos de devedores fiduciantes.
II. Questão em Discussão
2. A questão em discussão consiste em determinar se é possível instituir bem de família sobre imóvel alienado fiduciariamente, considerando a natureza da propriedade fiduciária e dos direitos do devedor fiduciante.
III. Razões de Decidir
3. A propriedade fiduciária tem natureza jurídica de garantia real, por força de expressa previsão legal (art., 1367 CC) afetada somente à satisfação de um crédito. Não se não se equipara ao direito de propriedade, tanto assim que, solvido o crédito, retorna ao domínio do devedor fiduciante independentemente de novo negócio jurídico.
4. O Código Civil não limita a constituição de bem de família ao titular da propriedade plena. Direito do devedor fiduciante tem a natureza jurídica de direito real de aquisição, dotado de valor econômico, podendo ser penhorado por terceiros. Do mesmo modo que não há óbice à instituição de bem de família convencional sobre imóvel gravado por hipoteca, também se admite que o devedor fiduciante institua o bem de família sobre os direitos aquisitivos dos quais é titular.
IV. Dispositivo e Tese
5. Recurso provido.
Tese de julgamento: 1. A propriedade fiduciária não impede a instituição de bem de família pelo devedor fiduciante. 2. A proteção do bem de família não é oponível ao credor fiduciário.
Legislação Citada:
– CC, arts. 1.231, 1.367, 1.368-B, 1.714, 1.715.
Trata-se de apelação interposta por Flavia Abreu Ribeiro contra a r. sentença de fls. 76/80, proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente do 18º Registro de Imóveis da Capital, que manteve o óbice ao registro de escritura pública de instituição de bem de família voluntário na matrícula nº 131.032 daquela serventia.
Sustenta a recorrente, em resumo, que a regra de impenhorabilidade do bem de família também abrange o imóvel em fase de aquisição, decorrente de financiamento bancário com garantia de alienação fiduciária; que o Banco Santander não é efetivamente o proprietário do bem dado em garantia de alienação fiduciária enquanto o contrato de financiamento é devidamente cumprido; que não há ofensa aos princípios da continuidade e da disponibilidade do bem imóvel, uma vez que a recorrente e seu marido constam como compradores do imóvel na matrícula do bem. Ainda, afirma que não há na legislação civil qualquer proibição de constituição de bem de família voluntário para imóveis que sejam objeto de contrato de financiamento bancário com garantia de alienação fiduciária. Pede, ao final, a reforma da r. sentença para que seja autorizado o registro da escritura de instituição de bem de família (fls. 86/91).
A Procuradoria de Justiça opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 111/114).
É o relatório.
Pretende a apelante o registro na matrícula nº 131.032 do 18º Registro de Imóveis da Capital da escritura pública de instituição de bem de família copiada a fls. 10/15.
De acordo com a escritura mencionada, a instituição do bem de família se circunscreve aos direitos aquisitivos sobre o bem, uma vez que, de acordo com o R.10 da matrícula nº 131.032, a apelante, no ano de 2014, alienou fiduciariamente o imóvel ao Banco Santander S/A (fls. 65/66).
O registro não foi admitido nem pelo Oficial nem pela MM. Juíza Corregedora Permanente, forte no argumento de que a inscrição fere o princípio da continuidade.
Sem razão, contudo.
Preceitua o art. 1.367 do Código Civil:
Art. 1.367. A propriedade fiduciária em garantia de bens móveis ou imóveis sujeita-se às disposições do Capítulo I do Título X do Livro III da Parte Especial deste Código e, no que for específico, à legislação especial pertinente, não se equiparando, para quaisquer efeitos, à propriedade plena de que trata o art. 1.231.
O artigo acima transcrito dispõe de modo absolutamente claro o que já afirmava a doutrina, ou seja, que a propriedade fiduciária, malgrado o seu nome (propriedade), tem a natureza jurídica de direito real de garantia, e, por consequência, é regulada e produz os seus efeitos de tal categoria.
Ainda que haja especificidades que concedem ao credor fiduciário maiores garantias do que aquelas advindas do penhor e da hipoteca – não sujeição a concurso de credores, por exemplo, a natureza da propriedade fiduciária é inegavelmente de garantia real, com a vinculação do bem ao cumprimento de determinada obrigação. A diferença é a de que se trata de garantia sobre coisa própria e não sobre coisa alheia, o que subtrai a coisa do concurso de credores. Trata-se de verdadeiro patrimônio de afetação que não retira do devedor fiduciante os poderes de usar e fruir da coisa.
O parágrafo único do art. 1.368-B do Código Civil, do mesmo modo, revela que a propriedade fiduciária de propriedade plena nada tem, equiparando-se quase completamente aos direitos reais de garantia. Não é por outra razão que proprietário fiduciário somente “passa a responder pelo pagamento dos tributos sobre a propriedade e a posse, taxas, despesas condominiais e quaisquer outros encargos, tributários ou não, incidentes sobre o bem objeto da garantia” a partir da data em que, por qualquer modo, se tornar proprietário pleno do bem.
Assim, no caso em tela, embora tenha o credor fiduciário a titularidade da propriedade em caráter resolúvel, se investe somente de um direito real de garantia.
Por sua vez, aos devedores fiduciantes, além da posse direta e dos poderes de usar e fruir da coisa, é conferido direito real de aquisição (art. 1.368-B do CC). Tal direito real de aquisição tem valor patrimonial e pode, em tese, ser penhorado por terceiros. Caso isso ocorra, os direitos aquisitivos serão levados à hasta pública e o arrematante se sub-roga na posição jurídica do devedor. É contra tal possibilidade que a devedora fiduciante pediu instituiu o bem de família convencional.
Na condição de devedora fiduciante juntamente com seu marido (fls. 10), titular de direito real de aquisição, portanto, pode a apelante instituir bem de família sobre o imóvel gravado por direio real de garantia.
Destaque-se, ainda, que o art. 1.714 do CC, ao preceituar que o bem de família voluntário constitui-se pelo registro de seu título no Registro de Imóveis, não limita essa prerrogativa ao titular da propriedade plena do bem. Imóveis gravados por direitos reais sobre coisa alheia podem ser objeto de instituição de bem de família. Tome-se como exemplo o imóvel hipotecado, sobre o qual o proprietário e devedor pode almejar que terceiros não possam penhorá-lo. É evidente que a instituição de bem de família, em tal hipótese, não produz efeitos em face do credor hipotecário, mas sim de terceiros e futuros credores.
Autoriza-se, do mesmo modo, que o devedor fiduciante institua o bem de família sobre o bem cujos direitos aquisitivos dos quais é titular. A particularidade é que os efeitos do bem de família recairão, neste momento, sobre os direitos aquisitivos, e não sobre a propriedade plena, como, de resto, expressamente previsto na escritura pública.
Pode-se questionar acerca do que ocorrerá com a instituição do bem de família se a obrigação garantida pela propriedade fiduciária for extinta pelo cumprimento da obrigação. Sabido que a propriedade garantia é resolúvel. Ocorrendo o implemento da condição resolutiva, consistente do pagamento, a garantia se extingue pela resolução da propriedade. Independentemente de novo negócio jurídico, com a prova do pagamento a propriedade retorna por inteiro à titularidade do ex-devedor fiduciante. O instituto do bem de família, de igual modo, incidirá então sobre a propriedade plena, independentemente de nova instituição.
A razão de tal entendimento é simples: o direito real aquisitivo do devedor fiduciante já se encontra protegido pela instituição do bem de família convencional. Tal direito aquisitivo, é bom lembrar, é propriedade em potência, sujeito apenas ao implemento de condição suspensiva, consistente da solução da obrigação garantida.
A condição resolutiva da propriedade do credor fiduciário tem a face inversa de condição suspensiva do devedor fiduciante.
É por isso que o direito aquisitivo do devedor fiduciante, quanto se converte automaticamente em propriedade pelo pagamento da obrigação garantida, carrega consigo a proteção do bem de família convencional anteriormente constituído.
À evidência, a proteção advinda do bem de família cuja constituição ora se autoriza não será oponível ao credor fiduciário. E essa ressalva explica-se tanto pelo fato de a dívida garantida pela alienação fiduciária estar devidamente inscrita na matrícula do bem (cf. R.10 da matrícula nº 131.032 – fls. 65/66), como pela interpretação a contrário sensu do art. 1.715 do Código Civil. Ora, se “o bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição”, responde normalmente por dívidas constituídas em data anterior.
A reforma da r. sentença, portanto, se impõe.
Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro da escritura pública de instituição de bem de família (fls. 10/15) na matrícula nº 131.032 do 18º Registro de Imóveis da Capital.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator (DJe de 25.02.2025 – SP)
Fonte: DJE
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