O divórcio, ao romper a sociedade conjugal, exige a divisão justa dos bens comuns, guiada pelos princípios de justiça e boa-fé que orientam as relações familiares. No entanto, a prática comum de um cônjuge ocultar bens durante a dissolução revela uma falha no sistema jurídico brasileiro: a falta de punições específicas no direito de família para combater essa conduta. No contexto das heranças, o ordenamento prevê a perda dos bens escondidos pelo herdeiro que os oculta [1], mas essa regra não se aplica diretamente ao divórcio, gerando discussões sobre sua possível extensão a esse cenário.
A sonegação de bens no divórcio não apenas prejudica o direito do cônjuge lesado à sua parte legítima, mas também compromete a dignidade das relações familiares. A ausência de sanções claras incentiva comportamentos fraudulentos, especialmente em divórcios conflituosos, onde um dos cônjuges pode tentar, de forma ilícita, reduzir a meação do outro. Apesar de proposta legislativa [2] para incluir a penalidade de perdimento de bens no Código Civil, ela ainda não foi aprovada, deixando o tema em um limbo jurídico.
A jurisprudência reflete essa incerteza, com decisões divergentes: algumas rejeitam a aplicação da pena de sonegação ao divórcio [3], enquanto outras a aceitam por analogia [4] [5]. A doutrina também se divide, com autores que restringem a sonegação ao contexto sucessório e outros que defendem sua aplicação no divórcio, destacando a necessidade de maior clareza e proteção patrimonial.
Falta de sanção para sonegação no divórcio
A ausência de uma sanção expressa no Código Civil para a sonegação no divórcio exige uma reforma legislativa que alinhe o direito de família aos padrões de proteção do sucessório. Essa reforma tornaria as normas sobre partilha mais cogentes, justificando uma sanção que transcenda a mera recomendação. Modelos estrangeiros, como o artigo 1.768 do Código Civil Chileno, que impõe a restituição dobrada do valor sonegado [6], reforçam a viabilidade de uma penalidade severa. A aprovação do PL 2452/19 não só coibiria a fraude, mas também alinharia o Brasil a sistemas que valorizam a transparência patrimonial, fortalecendo a confiança no instituto do divórcio e protegendo a dignidade das relações familiares.
Enquanto a reforma legislativa não se concretiza, uma solução processual intermediária pode adaptar a pena de sonegados ao divórcio dentro do ordenamento atual, utilizando a ação de sobrepartilha com pedido incidental de perdimento. O pedido incidental na sobrepartilha evitaria a necessidade de uma ação autônoma de sonegados.
Além da reforma legislativa e da solução processual, recomendações práticas podem fortalecer a prevenção e a repressão à sonegação no divórcio. A primeira é incentivar a transparência prévia por meio de acordos claros na separação consensual, evitando cláusulas genéricas que inibam a pesquisa de bens omitidos.
Maria Berenice Dias alerta que, “depois de realizada a partilha litigiosa ou consensual, muitas vezes o cônjuge […] afirma ter havido indução em erro” [7], sugerindo que a declaração detalhada de bens, homologada judicialmente, reduz o risco de fraudes. O uso de medidas cautelares, como o arrolamento, também é crucial, especialmente em divórcios litigiosos, para assegurar a identificação do patrimônio antes da partilha.
Conciliação para evitar litígio
Outra recomendação é promover a conciliação como alternativa à litigiosidade. Por fim, a adoção de sanções pedagógicas, como multas ou perda parcial de direitos sobre outros bens, poderia ser implementada judicialmente enquanto a reforma não ocorre, funcionando como medida dissuasória até a consolidação legislativa da pena de sonegados no divórcio.
Essas recomendações, combinadas à solução processual intermediária, oferecem um caminho prático para enfrentar a sonegação no divórcio, equilibrando a proteção da meação com a eficiência processual. A aprovação do PL 2452/19 seria o ideal, mas, na sua ausência, a interpretação judicial baseada na boa-fé e na analogia com o sucessório pode suprir a lacuna, desestimulando quem tem a intenção de fraudar, e promovendo uma partilha justa e transparente.
Assim, a adoção da pena de sonegados no divórcio, seja por reforma legislativa ou interpretação judicial, é mais que uma medida técnica: é um imperativo ético para evitar que a dissolução do casamento se torne um terreno fértil para fraudes, preservando a família como espaço de justiça e equilíbrio, onde a sanção ao sonegador reafirme que a harmonia patrimonial não é uma fantasia, mas um direito efetivo.
[1] Art.1.992. O herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário quando estejam em seu poder, ou, com o seu conhecimento, no de outrem, ou que os omitir na colação, a que os deva levar, ou que deixar de restituí-los, perderá o direito que sobre eles lhe cabia.
[2] É o Projeto de Lei 2452/19, apresentada pela Senadora Soraya Thronicke, que busca suprir essa lacuna ao acrescentar os §§ 2º e 3º ao artigo 1.575 do Código Civil, prevendo a perda do bem sonegado em favor do cônjuge lesado. A redação dos referidos parágrafo ficaria assim:
[…]
§ 2º O cônjuge que sonegar bens da partilha, buscando apropriar-se de bens comuns que estejam em seu poder ou sob sua administração e, assim, lesar economicamente a parte adversa, perderá o direito que sobre eles lhe caiba.
§ 3º Comprovada a prática de atos de sonegação, a sentença de partilha ou de sobrepartilha decretará a perda do direito de meação sobre o bem sonegado em favor do cônjuge prejudicado.
[3] Processo 1002426-58.2020.8.26.0004 – Divórcio Litigioso – Tutela de Urgência – V.B.T.D. – J.E.D. – Vistos. Chamo o processo à ordem. 1. Primeiramente, não é o caso de se aplicar pena de sonegados neste particular. Isso porque a pena de sonegados aplica-se, tão somente, às hipóteses descritas no art. 1.992 do Código Civil, na questão sucessória que envolva diretos à herança. Nesse sentido bem esclarece a doutrina de Rubens Limongi França, que, ao dispor sobre sonegados, diz tratar-se de instituto complementar à execução da herança que tem por fim prevenir, compor e punir a omissão de bens do espólio, por parte de algum herdeiro, do inventariante ou do testamenteiro (Instituições de Direito Civil São Paulo Ed. Saraiva 1999, pág. 925). Assim, fica afastado o pedido de aplicação de pena de sonegados. […] (TJSP; Processo nº 1002426-58.2020.8.26.0004; Foro Regional IV – Lapa – 1ª Vara da Família e Sucessões; Data da Publicação: 08/02/2023).
[4] AÇÃO DE DIVÓRCIO PENA DE SONEGADOS. Em primeiro lugar, deixo registrado que é perfeitamente possível a aplicação da pena de sonegados ao divórcio, em analogia ao que dispõe o artigo 1.992 do Código Civil. Com efeito, não se pode premiar a conduta de sonegação de bens e valores, pela qual um dos cônjuges busca vantagem própria em prejuízo do outro. […]
(TJSP; Apelação Cível nº 1008152-50.2020.8.26.0606; Relator(a): Fernando Marcondes; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro de Suzano – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/08/2022; Data de Registro: 27/08/2022)
[5] INDENIZAÇÃO POR ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DECORRENTE DE PATRIMÔNIO OCULTADO À OCASIÃO DE AVENÇA QUE EQUACIONARA PARTILHA EM UNIÃO ESTÁVEL. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE DETERMINA A EMENDA DA INICIAL. INCONFORMISMO. ACOLHIMENTO. AUSÊNCIA DE PEDIDO DE ANULAÇÃO OU RESCISÃO DA PARTILHA, SEQUER COGITADA A EXISTÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. AÇÃO ADMISSÍVEL, MERCÊ DA DESPROPORÇÃO ARTICULADA, SOB PENA DE ENRIQUECIMENTO DE UM EM FACE DO EMPOBRECIMENTO DO OUTRO, SEM CAUSA JUSTA E LEGAL. TEORIA DO ENRIQUECIMENTO IMPOSTO. ACORDO PRETÉRITO QUE NÃO IMPORTA EM RENÚNCIA ABDICATIVA DE PATRIMÔNIO OCULTADO. PEDIDO INICIAL QUE DEVE SER ADMITIDO TAL COMO FORMULADO. CUMULAÇÃO TECNICAMENTE ADEQUADA. IRRELEVÂNCIA DO NOME DADO À AÇÃO (SONEGADOS OU SOBREPARTILHA). DECISÃO REFORMADA. AGRAVO PROVIDO (TJSP; Agravo de Instrumento nº 2284350-05.2020.8.26.0000; Relator(a): Mary Grün (vencida); Órgão Julgador: 25a Câmara de Direito Privado; Data da Publicação: 10/08/2021).
[6] DINAMARCO, Marina Cardoso; LOPES, Anderson. Aspectos cíveis e penais da fraude à partilha de bens no divórcio. Migalhas, São Paulo, 6 jul. 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/330256/aspectos-civeis-e-penais-da-fraude-a-partilha-de-bens-no-divorcio. Acesso em: 15 fev. 2025.
[7] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 757.
Fonte: Conjur


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