A adjudicação compulsória é o meio legal para se obter o domínio de um imóvel que tenha tido a sua venda prometida a alguém que, tendo pagado a integralidade de seu preço, ainda assim não consegue obter do proprietário o título necessário para registrar o bem em seu nome.

 

A questão que se discute neste artigo é saber se pode a adjudicação compulsória recair sobre bens imóveis considerados públicos, lembrando que estes são de três categorias: os dominiais, os de uso comum do povo e os de uso especial.

 

Os bens de uso especial são os que estão destinados a alguma função pública específica, como é o caso de um hospital, uma escola ou uma delegacia de polícia. Os bens de uso comum do povo são aqueles que podem ser utilizados livremente pela população, como as praias, as ruas e as praças. Os bens dominiais não têm nenhuma dessas finalidades e apenas fazem parte do patrimônio público. São bens que não estão afetados a um fim público.

 

Os bens dominiais podem ser alienados, exatamente por não terem uma utilização pública, normalmente com autorização legal, avaliação e alguma forma de licitação. Há bens públicos que existem exatamente para ser alienados, especialmente quando o Estado desempenha uma atividade econômica, por vezes até mesmo em concorrência com a iniciativa privada.

 

Vejamos o caso das moradias. Existem várias empresas públicas e sociedades de economia mista, que constroem imóveis para servir de moradia, como é o caso das Companhias de Habitação. Há outros imóveis que são construídos por particulares, mas são financiados por órgãos com alguma feição estatal, como era o Banco Nacional da Habitação (BNH) e é a Caixa Econômica Federal. Até mesmo o INSS já desempenhou a função de fomentar o mercado de imóveis para moradia.

 

Recentemente foi noticiado que o Governo Federal1 quer destinar imóveis sem uso para a habitação popular, como se pode ver aqui. A notícia é oficial e diz que o presidente Lula assinou um decreto de criação de um grupo de trabalho interministerial dos imóveis não operacionais do INSS, que tem o objetivo de aprimorar a gestão desse patrimônio. Dos 3.213 imóveis do órgão, 483 já foram identificados domo elegíveis para o programa, sendo 12 prédios para projetos habitacionais e 471 glebas ocupadas e conjuntos habitacionais a serem regularizados. Outros 2.730 imóveis estão em análise.

 

Nem todos sabem, mas o INSS já fez e financiou várias unidades habitacionais, que em muitos casos foram adquiridas por entidades ligadas ao setor previdenciário. Isso ocorreu há várias décadas e muitos desses imóveis ainda pendem de regularização porque estão ocupados por pessoas que adquiriam a posse e os direitos aquisitivos de outras pessoas, algumas delas hoje já falecidas, as quais sim originalmente contrataram com o INSS.

 

Esses imóveis devem ser considerados públicos? E em caso positivo, há algum impedimento que eles sejam adjudicados compulsoriamente ou até mesmo sejam usucapidos? Sustentamos que não há impedimento para essas formas de aquisição, o que vamos demonstrar a seguir.

 

Ainda que sejam considerados públicos os imóveis do INSS, é preciso considerar que as construções habitacionais não se destinam à sua atividade fim, mas à venda a pessoas para isso qualificadas. E os imóveis que foram prometidos à venda, depois de devido pagamento do financiamento, devem ser transmitidos aos adquirentes ou seus sucessores.

 

De fato, é princípio de direito a proibição do enriquecimento ilícito. Se o INSS recebeu pelo imóvel que foi construído e vendido, é natural que deve ser deferida a adjudicação, se por qualquer motivo não foi feita a tempo o título transmissivo do domínio. O caso não é de indeferimento liminar de um requerimento assim, mas de notificação do INSS que poderá inclusive concordar com o pedido, tornando os fatos incontroversos e o direito líquido e certo.

 

Em situação semelhante, mas versando sobre imóvel da Caixa Econômica Federal, a Ministra Hellen Grace, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 536.297, em 16/11/2010, entendeu que é privada a natureza dos bens das estatais quando estes são ligados a uma atividade econômica. Por isso, foi deferido o pedido de usucapião.

 

No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, admitiu a possibilidade de usucapião de imóvel da Caixa Econômica Federal que nem sequer estava ligado ao Sistema Financeiro da Habitação, no julgamento da apelação 5001313-25.2016.4.04.7105, Relatora Vânia Hack de Almeida.

 

Nem se diga que a natureza jurídica da CEF é diferente da natureza jurídica do INSS, pois o mesmo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul admitiu o processamento de uma ação de adjudicação compulsória contra o INSS, no julgamento da apelação 5986423-31.2021.4.04.7100, Relator Murilo Brião da Silva.

 

O julgado acima não é isolado, pois o mesmo Tribunal, na apelação 5017330-54.2001.4.04.7108, Relator Roger Raupp Rios, entendeu que, na promessa de compra e venda, havendo recusa à outorga e quitação integral do preço, sobressai o direito à adjudicação compulsória em favor da parte autora para a satisfação de sua pretensão, sendo descabida a exigência de abertura de inventário.

 

No mesmo sentido, na apelação 5003313-53.2020.4.04.7106, relator Luís Alberto D’Azevedo Aurvalle ficou decidido que a adjudicação compulsória de imóvel pertencente ao INSS, adquirido por particular hoje falecido, se mostra possível, desde que munido do contrato de promessa de compra e venda e que não logrou obter a escritura definitiva do imóvel, ante a recusa do promitente vendedor em concedê-la.

 

Os julgados acima estão em harmonia com o de número 5019578-51.2020.4.04.7100, Relator Rogério Favreto. Também na apelação 5006434-24.2013.4.04.7110, Relatora Vivian Josete Pantaleão Caminha afirmou em adjudicação compulsória contra o INSS que deveria ser reconhecido o direito à transferência da propriedade do imóvel em que a autora reside desde 1963, pois provado o pagamento e apresentada efetiva oposição do Instituto de Previdência.

 

Enfim, os julgados acima são evidentes exemplos de que os imóveis do INSS vendidos para serem utilizados como moradia das pessoas que dele os adquiriram, devem receber um tratamento idêntico aos bens privados, pois está o INSS agindo como empreendedor imobiliário, seja construindo ou financiando, não havendo porque não ser feita a transmissão compulsória do domínio, lembrando que a moradia é também um direito social constitucional que deve ser assegurado nessas circunstâncias.

 

O ingresso da propriedade plena na esfera dos direitos dos particulares adquirentes faz com que estes tenham segurança jurídica para dela cuidar e tirar proveito e realizar o sonho da casa própria, que depois é transmitida aos herdeiros, vendida ou serve de garantia para obter empréstimos com juros mais baixos, o que para o Estado gera a arrecadação de tributos como IPTU, ITBI e ITCMD, fazendo que esses valores custeiem serviços e políticas públicas causadores de mais bem estar a todas as pessoas alcançadas.

 

O presente artigo além de comprovar a possibilidade de adjudicação desses imóveis públicos – desafetados -, apresenta caso prático um procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial iniciada pelo 1º Tabelião de Notas de Santo André, qualificada autuada pelo 1º Registro de Imóveis de Santo André/SP.

 

A irregularidade remonta à década de 70, ou seja, são mais de 50 anos de ausência de formalidade registral, sem a matrícula, escritura, documentação necessária para alienação formal, financiamento e todas as características inerentes ao exercício pleno de um direito fundamental.

 

Essa situação imobiliária resulta em uma marginalidade legal, subtraindo o imóvel das possibilidades de financeirização, o que aliás, diminui até o valor do imóvel para venda, obrigando inúmeras famílias a formalização dos “contratos de gaveta”, uma informalidade sem segurança jurídica e prejudicial a todo sistema econômico e tributário do país.

 

O caso que apresentamos a toda comunidade jurídica foi viável, além de atender todos os requisitos legais, foi adicionada manifestação da própria Superintendência do INSS, que participou ativamente com nosso coautor no cumprimento das exigências elabora pelo Registrador Imobiliário, alcançando assim o direito fundamental de propriedade.

 

Em conclusão, seja em âmbito judicial ou notadamente extrajudicial, não deve o pedido de adjudicação ou de usucapião ser proibido desde o início só porque há um ente estatal envolvido. Ele deve tramitar, sendo perfeitamente possível que haja até mesmo uma concordância com a pretensão formulada. É intuitivo que quem vendeu e recebeu por isso deve entregar o que foi vendido e que a posse exercida deve se transformar em domínio quando preenchidos os requisitos legais.

 

Fonte: Migalhas

 

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