Introdução

 

O título do artigo tem por objetivo chamar a atenção, até porque o leitor mais atento logo percebe o erro técnico. Para que possamos voltar aos trilhos e de modo a evitar maiores equívocos, deve ser esclarecido que os direitos potestativos e as pretensões que decorrem do aparecimento de vícios construtivos estão (ou deveriam estar) sujeitos aos prazos decadenciais ou prescricionais estabelecidos em lei. Não há imprescritibilidade em tal matéria.

 

Contudo, tal como será verificado, a jurisprudência, ao longo dos anos e a partir de interpretações ao CC e ao CDC, optou por aplicar prazos alongados, além de fixar o início da contagem do prazo em momento muito posterior ao efetivo aparecimento do vício, tornando as opções conferidas aos lesados em medidas que podem ser propostas praticamente a qualquer tempo.

 

Além disso, também é objetivo do presente artigo demonstrar que, a respeito da matéria em análise, o atual ordenamento jurídico brasileiro não é claro e não atende ao princípio da operabilidade, resultando em jurisprudência confusa e pouco sólida. Todos esses elementos reduzem a segurança jurídica necessária para qualquer indústria, inclusive a da construção civil.

 

Para avançarmos, necessário analisar o ordenamento jurídico brasileiro no tocante ao tratamento conferido aos vícios construtivos, bem como o entendimento jurisprudencial e doutrinário mais atual.

 

  1. Código de Defesa do Consumidor

 

Como é notório, nas relações jurídicas envolvendo a incorporação imobiliária e o consumidor final, aplicam-se as disposições do CDC (lei 8.078/90 – CDC) por se tratar de uma relação de consumo firmada entre o fornecedor e o destinatário final. É relevante destacar que o CDC pode ser aplicado até mesmo em favor do condomínio, ainda que seja um ente despersonalizado, segundo jurisprudência dominante.1

 

Nesse sentido, especificamente sobre os vícios construtivos, aplicam-se as seguintes disposições da lei 8.078/90:

 

Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em:

 

I – trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis;

 

II – noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis.

 

  • 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços.

 

  • 2° Obstam a decadência:

 

I – a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca;

 

II – (Vetado).

 

III – a instauração de inquérito civil, até seu encerramento.

 

  • 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito.

 

Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na seção II deste capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.

 

A primeira observação é que o CDC permite a reclamação dos vícios aparentes. Tais vícios são aqueles facilmente identificáveis a partir do recebimento da coisa, tais como pintura irregular, ausência de vaso sanitário, porta quebrada ou sem fechaduras, vidros trincados, dentre outros problemas. O prazo para a reclamação de vícios aparentes é de 90 dias, contados a partir da entrega efetiva do produto (entrega das chaves) (art. 26 § 1º do CDC).

 

Isso ocorre porque, ao receber o produto, o consumidor tem o dever de reclamar no prazo aludido, pois, caso contrário, estará caracterizada aceitação tácita do produto nas condições em que foi entregue.

 

Ultrapassado tal prazo, a construtora não está obrigada ao reparo. Caso admitido que a reclamação dos vícios aparentes fosse apresentada em prazo maior, haveria enorme insegurança jurídica.

 

Imagine, por exemplo, a hipótese em que o consumidor, no momento do recebimento das chaves, realiza vistoria e não faz apontamentos a respeito da sua unidade. Dois anos após a entrega do apartamento o consumidor apresenta reclamação aduzindo que os vidros das janelas estavam quebrados quando do recebimento do imóvel. Permitir que a reclamação de um vício evidente fosse realizada em tão longo prazo traria enorme segurança jurídica, repita-se, além de proteção exacerbada em favor do consumidor que, mesmo diante de um vício de fácil constatação, quedou-se inerte. Fosse entendido de outra forma, seria até mesmo desnecessária a vistoria de entrega de chaves, considerando que os vícios aparentes poderiam ser reclamados muito tempo após a ciência inequívoca. O prazo decadencial de 90 dias para reclamação dos vícios aparentes, portanto, deve ser respeitado.

 

A questão de maior dificuldade envolve os vícios ocultos, ou seja, aqueles que não podem ser identificados com facilidade na entrega das chaves, mas que são descobertos a partir do uso da edificação ou mediante vistorias e exames mais minuciosos. Para tais hipóteses, estabelece o CDC que o prazo para a reclamação é de 90 dias, mas a sua contagem “inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito” (art. 26, § 3º, do CDC).

 

Assim, também para a hipótese do vício oculto, o prazo de reclamação seria de 90 dias, mas contado do seu aparecimento. O fato é que ultrapassado esse prazo decadencial, tal como será verificado oportunamente, ainda restará ao adquirente/condomínio a possibilidade de propor outras medidas, com fundamento no Código Civil.

 

É relevante observar, contudo, que algumas situações podem obstar o curso do prazo decadencial:

 

Reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca; ou

Instauração de inquérito civil, até o seu encerramento (art. 26, § 2º, incisos I e III, do CDC). Assim, a abertura de chamado no departamento de assistência técnica antes do prazo de 90 dias interrompe o prazo decadencial.

 

Não se perca de vista que os prazos estabelecidos no art. 26 do CDC tem natureza decadencial, por tratarem do exercício de direitos potestativos.2 A reclamação referida no dispositivo, para a hipótese de vício construtivo, deve ser compreendida como solicitação de reparo e não pleito para a resolução contratual.

 

É verdade que o CDC determina, no art. 18, que se “produtos de consumo duráveis ou não duráveis” forem entregues com vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo, após o prazo de 30 dias conferidos em favor do fornecedor para o reparo e não sendo sanado o vício, o consumidor poderá exigir a restituição imediata da quantia paga. Essa situação, inegavelmente, impõe a resolução do vínculo contratual, determinando-se a devolução do produto e a restituição dos valores pagos.

 

Contudo, parece que esse cenário se aplica para o que se intitulou “produtos industrializados dissociáveis”3, tais como eletrodomésticos, aparelhos eletrônicos, veículos automotores, armários de cozinhas, dentre outros. Assim, se o celular do consumidor parou de funcionar poucos dias após a aquisição, antes de requerer a devolução do bem e reembolso dos valores pagos, deve permitir ao fornecedor a possibilidade de reparo. Ultrapassado o prazo de 30 dias e não havendo o reparo, a resolução contratual se mostra possível.

 

Mas essa mesma situação, em nossa opinião, não deveria ser aplicável a todo vício de construção. Imaginar que o construtor seria obrigado a realizar qualquer tipo de reparo nas áreas comuns ou na unidade autônoma em apenas 30 dias, sob pena de resolução do contrato, seria imputar um ônus extremamente oneroso e injusto, além de eventualmente impossível de ser cumprido, a depender da natureza do reparo. Parece claro que o conserto de um aparelho celular pode ser realizado com certa facilidade no prazo de 30 dias (a maior parte dos reparos é realizada na hora), mas que esse prazo nem sempre será adequado para os vícios construtivos verificados nas edificações.

 

Uma coisa é o reparo de uma janela quebrada, outra coisa o refazimento da manta de impermeabilização das áreas externas do térreo de um edifício residencial. Caso fosse admitida a resolução do contrato pelos condôminos se o refazimento da manta não fosse finalizado em 30 dias, a resolução contratual seria banalizada, fragilizando as relações jurídicas. O princípio da conservação do negócio jurídico deve ser observado, inclusive na relação de consumo.4

 

Assim, penso que a resolução contratual admitida no art. 18 do CDC não deveria ser aplicada aos vícios construtivos, embora também tenhamos localizado julgado que admitiu a resolução do contrato com fundamento no referido dispositivo.5

 

Para finalizar o regime jurídico dos vícios construtivos no CDC, o art. 27 estabelece o prazo prescricional para a reparação dos danos causados “por fato do produto ou do serviço”, “iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria”.

 

A hipótese do art. 27 do CDC aplica-se exclusivamente para as situações de acidentes causados por defeitos nos produtos.6 Seria o caso, por exemplo, de má execução no assentamento de pastilha da fachada da edificação, que acaba se desprendendo e atingindo alguém que praticava esportes na quadra do empreendimento. Nessa hipótese, nasce para o lesado a pretensão para propor ação judicial em desfavor do causador do ano. O prazo prescricional, portanto, será de cinco anos. É verdade, contudo, que inadvertidamente, localizamos alguns julgados que, mesmo não sendo a hipótese de acidente causado por defeitos nos produtos, determinou a aplicação do prazo quinquenal para a ação indenizatória.7

 

Não sendo a hipótese de reparação decorrente de acidente e tendo sido ultrapassados os prazos decadenciais estabelecidos no CDC, ainda haverá a possibilidade do exercício de algumas pretensões com fundamento no Código Civil. É o que se passa a demonstrar.

 

Confira aqui para a ver a íntegra da coluna.

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1 Nesse sentido: Superior Tribunal de Justiça, REsp n. 1.560.728/MG, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 18/10/2016, DJe de 28/10/2016; e Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 1026074-95.2022.8.26.0554; Relator: Pastorelo Kfouri; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santo André – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/01/2024; Data de Registro: 29/01/2024.

 

2 Como bem referido por Agnelo Amorim Filho “[.] daí se infere que os potestativos são os únicos direitos que podem estar subordinados a prazos de decadência, uma vez que o objetivo e efeito desta é precisamente a extinção dos direitos não exercitados dentro dos prazos fixados” (AMORIM FILHO, Agnelo. Critério Científico para Distinguir a Prescrição da Decadência e para Identificar as Ações Imprescritíveis. Revista dos Tribunais, v. 744, out. 1997. p. 725-750).

 

3 Expressão utilizada por Zelmo Denari (DENARI, Zelmo Art. 27. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 246).

 

4 Nelson Nery Jr. também entende aplicável o princípio da conservação do contrato nas relações de consumo (NERY JR., Nelson. Art. 51. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 606).

 

5 TJSP; Apelação Cível 1024317-36.2018.8.26.0577; Relator (a): Augusto Rezende; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro de São José dos Campos – 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/06/2021; Data de Registro: 23/06/2021.

 

6 Nesse sentido, cf. DENARI, Zelmo. Art. 27. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 246.

 

7 A exemplo disso, cite-se: TJSP; Apelação Cível 1001176-81.2023.8.26.0069; Relator (a): Donegá Morandini; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de Bastos – Vara Única; Data do Julgamento: 19/03/2024; Data de Registro: 19/03/2024; TJSP; Agravo de Instrumento 2232631-76.2023.8.26.0000; Relator (a): Miguel Brandi; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ribeirão Preto – 10ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/12/2023; Data de Registro: 06/12/2023 e TJSP; Apelação Cível 1011514-84.2021.8.26.0037; Relator (a): J.B. Paula Lima; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Araraquara – 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/09/2022; Data de Registro: 13/09/2022.

 

Fonte: Migalhas

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